Carta ao tempo

Valença-RJ, 12/03/2013.

                                                     Querido amigo tempo,

     Começo esta carta lhe agradecendo por tudo que tem me ensinado, por tudo que tem me permitido viver, por tudo que tem me mostrado. Aprendi com você que a vida tem muitos desafios e que não podemos deixar que eles nos amedrontem, e que precisamos lutar sempre para alcançar nossos objetivos. Você me ensinou que de nada adianta reclamar de as coisas não darem certo se não tentamos fazê-las da maneira certa. Também me ensinou que o desespero não leva a nada, que muitas vezes é preciso esperar o momento mais adequado para que algumas coisas aconteçam. Você me trouxe a maturidade e com ela a sensatez, a tranquilidade, a capacidade de compreender tantas coisas que antes eu não compreendia. Você me fez ficar mais atenta ao mundo, mais observadora da natureza, mais sensível aos problemas das pessoas que estão ao meu redor. Você me mostrou que as paixões são passageiras e que, muitas vezes, elas nos levam a cometer bobagens e nos causam  sofrimentos desnecessários. Ao contrário de um amor maduro, que pode trazer muito mais satisfação, segurança e felicidade. Nesse aspecto você tem sido um bom conselheiro, amigo.
      Entretanto, também tenho algumas queixas a lhe fazer. Na verdade, tenho alguns questionamentos, os quais têm me incomodado bastante ultimamente. Acho que só você pode me dar as respostas que procuro. Só você pode minimizar minha angústia e acalmar meu espírito.
    Em primeiro lugar, gostaria de saber por que você passou tão depressa? Por que você não parou um pouquinho lá atrás, nos meus anos de juventude, que eram tão prazerosos e intensamente alegres? Por que você não deixou que eu aproveitasse um pouco mais da minha falta de preocupações e de responsabilidades? Por que você não me permitiu conviver um pouco mais com minhas amigas da escola? Você levou todas para longe, fez com que eu me afastasse de pessoas que eram tão especiais em minha vida. Ah, tempo, por que você fez isso?
     Você deveria ter esperado mais um pouco também quando meus filhos eram pequenos. Eu quase não pude curtir a infância deles, tampouco a adolescência, porque eu trabalhava demais. Eu sabia que eles estavam sendo bem cuidados pela minha irmã enquanto eu estava fora de casa, mas eles sentiam minha falta como eu também sentia muito a falta deles. Você, sempre tão apressado e tão curto para que eu desse conta de todas as minhas obrigações, não permitia sequer que eu aproveitasse bem os fins de semana. Eu tinha tantas tarefas acumuladas que passava os sábados e os domingos tentando colocá-las em dia. Enquanto isso, muitas coisas aconteciam e eu nem tomava conhecimento. Queria levar meus filhos ao campinho de futebol, ao parque, ao cinema. Queria participar mais da vida escolar deles, queria ter percebido quando eles se apaixonaram pela primeira vez, quando arrumaram a primeira namorada. Nada disso eu soube, eu não pude ver. Você não deixou que eu visse, com sua pressa de passar, com sua impaciência, me fez sempre correr atrás de você.
     Eu também poderia ter feito outros cursos, poderia ter lido muito mais livros, poderia ter ido mais ao cinema, aos bailes de que eu gostava tanto. Mas você não me dava uma trégua. Nem sei como consegui fazer a pós-graduação com você acelerado daquele jeito.
    Durante mais de trinta anos foi assim, você correndo e eu correndo também: eu corria para o trabalho, depois corria para a faculdade, depois me casei, continuei correndo para o trabalho, corria para casa, corria de novo para trabalhar, e corria de novo para casa e, nos intervalos, eu corria para fazer a comida, para lavar a louça, para lavar e passar a roupa, enfim, para fazer as tarefas domésticas porque nem sempre pude contar com uma colaboradora.
     Nossa convivência não tem sido nada fácil nesses cinquenta e cinco anos. Quando me olho no espelho e vejo as marcas de expressão e os muitos fios de cabelo branco (que escondo quinzenalmente com tintura) trazidos por você, às vezes fico chateada. Sinto que não tenho mais a mesma disposição para certas atividades, minha visão não é mais capaz de ler sem o auxílio de óculos e, embora ainda tenha boa saúde geral, não posso mais passar sem os anti-hipertensivos. Tudo isso foi você quem trouxe. No entanto, apesar de ser implacável, você não conseguiu destruir minha alegria, não aniquilou minha esperança de viver dias melhores e de ainda conseguir realizar alguns sonhos.
    Você e sua grande amiga, a distância, também não foram capazes de destruir algumas de minhas amizades mais queridas. Vocês bem que tentaram nos afastar definitivamente, mas minhas amigas e eu conseguimos driblá-los e, por meio das redes sociais, nos redescobrimos, entramos em contato e marcamos um encontro.
    Não sei se você se deu conta, mas, quando eu e elas nos encontramos, não parecia que você havia passado tanto. Foi uma festa. Sentimos uma imensa alegria em estarmos juntas depois de mais de trinta anos. Aliás, as adolescentes que fomos estavam ali nas mesmas expressões, nas mesmas gargalhadas, na mesma descontração. Lembramos de tantas histórias vividas naquele adorável colégio, lembramos de nossos professores tão queridos e de amigas que, por várias razões, não puderam comparecer e compartilhar daqueles momentos tão agradáveis.
     Agora, tempo, nós temos a certeza de que, mesmo que você continue passando depressa, não vai nos impedir de estarmos juntas daqui em diante. Sabe por quê? Por que agora você não nos escraviza mais. Porque agora não temos mais horário para chegar ao trabalho, porque não temos mais filhos pequenos, porque não precisamos mais investir numa carreira, porque não precisamos mais ir à faculdade, porque não precisamos mais de correr atrás de você. Agora estamos aposentadas.  E, mesmo que uma ou outra ainda trabalhe, todas perceberam que não adianta entregar toda a vida em suas mãos. Agora, elas é que administram você, não é mais você quem as administra.
     Espero que não se zangue comigo, amigo. Eu precisava falar essas coisas. Quando temos um verdadeiro amigo, temos a obrigação de sermos sinceros com ele. Por isso é que estou enviando essa carta, para que você saiba o quanto o admiro e respeito, mas que há algumas restrições ao seu comportamento. Você tem sido um mestre em vários sentidos, sem dúvida, mas não tem sido nada camarada quando insiste em atrapalhar o que é tão importante em nossa vida: a convivência com as pessoas que amamos.
     Despeço-me com um pedido especial: demore um pouco mais a passar nesse meu resto de vida. Ainda tenho tantos planos e tantos sonhos. Por favor, amigo, não vá me deixar na mão.
     Um grande abraço da amiga,
 
                                                        Jô Coelho
                                                 
                             
 
 
 
  
 
   
 
 
Jorgenete Pereira Coelho
Enviado por Jorgenete Pereira Coelho em 12/03/2013
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