O Caso das Gafes

I

Vou iniciar esse caso propondo aos leitores duas questões da maior importância em relação ao presente tema: quem dentre nós ousaria afirmar que jamais cometeu uma gafe? E, praticada a coisa, quem já não tentou disfarçá-la ou corrigi-la?

Explicando melhor: gafe é uma palavra de origem francesa importada para as nossas terras tupiniquins com o mesmo significado com que no bom brasileiro costumamos dizer “chutar a bola fora” ou cometer um “mico”.

Já o termo “gaffeur” representa as pessoas vorazes em cometer as gafes. E elas, as tais pessoas vorazes, podem ser naturalmente classificadas em três grupos distintos que algumas vezes se unem para florescer viçosamente numa só pessoa: os que cometem as gafes, os que buscam disfarçá-las e os que tentam – ainda que inutilmente! - remediá-las. Foi especialmente nesse último caso que se costuma dizer que “a emenda saiu pior do que o soneto”.

Isso porque a gafe é, por si só, irremediável e indisfarçável e o querer corrigi-la só vem demonstrar a nossa ignorância intelectual a respeito desse assunto.

Cabe comentar, finalmente, que as gafes são também conhecidas em nosso meio por outros termos e nomes pitorescamente brasileiros, como: chutar a bola fora, pagar um mico, vacilar, dar mancada, cometer erro de etiqueta, dar um fora, quebrar a cara ou o protocolo, agir fora dos padrões habituais e cometer inconveniência ou deslize.

Vou relatar nesse caso duas gafes que cometi e uma terceira que quase cheguei a cometer no atendimento de balcão da 3ª. Vara do Trabalho de Belo Horizonte.

II

A primeira delas decerto que pode não ser considerada 100% gafe. Talvez eu pudesse nomeá-la simplesmente por “engano”. Eu estava atendendo no balcão quando se apresentou uma jovem de pouco mais de uns vinte anos de idade. Ela se disse estagiária no escritório do procurador do reclamante e necessitava obter cópias de algumas das folhas de determinado processo.

Vestia a jovem uma saia vermelha que lhe desenhava elegantemente o contorno do corpo. E ali, na altura dos seios, o vestido se abria exultante como uma rosa se oferecendo aos beijos de um beija-flor e deixando à mostra um belo par de pombas. Diante daquelas duas aves, porém, jazia um crucifixo de prata enfeitado por extensa pedraria brilhante.

E perante aquela visão eu já não saberia dizer se olhava para as aves ou para o crucifixo. Este último como que se avolumara e se impunha como uma barreira informando ao observador à respeito do bem e do mal e dos pecados da carne. E ele se fizera tão forte que eu acabei em verdade não vendo nem a um e nem apreciando aos outros.

Nesse meio tempo, porém, após ter separado os originais que a jovem me pedira, entregou-me ela o seu documento de identidade. E foi nesse momento - meus prezados leitores - que eu vim a ter uma terrível surpresa.

Engoli em seco e, ali mesmo diante do meu balcão de atendimento - como um Napoleão perante o próprio exército e tendo à frente algumas das belas obras da engenharia egípcia – eu pude ler o seguinte nome estampado naquela identidade: Jorge Antônio Santiago.

E ao lado daquele nome, prenome e sobrenome se encontrava nada mais nada menos do que uma foto três por quatro daquela jovem que eu acabara de atender. Mas o fato é que naquela fotografia a bela jovem se apresentara vestindo mangas de camisa e portando barba e bigode no rosto. Ela nascera homem, mas acabara se transformando naquela bela mulher.

III

A segunda gafe pode ser considerada de fato uma gafe com tudo o que um “gaffeur” poderia ter de direito. Inclusive com a inútil tentativa de tentar corrigir o mal feito.

Estava eu na outra extremidade do balcão quando surgiu um senhor muito idoso portando bengala e caminhando com bastante dificuldade. Ele viera conduzido e parcialmente amparado por um jovem de uns dezoito ou dezenove anos. Ele, o idoso, imediatamente se apresentou informando ser o reclamante de determinado processo.

O homem era muito falante e em poucos minutos eu ficara sabendo que o rapaz era seu filho e que ele (o idoso) havia trabalhado numa das varas do trabalho do interior de Minas, se encontrando atualmente aposentado. Ele então aproveitou a ocasião para me contar uma série de casos e aventuras que vivera durante os seus muitos anos como servidor público.

Resolvidas, porém, as questões que os trouxera ao balcão da 3ª. Vara, os dois homens se foram.

IV

Alguns dias depois surge o mesmo jovem que estivera acompanhando o idoso na ocasião anterior. Desta vez, entretanto, o rapaz viera acompanhado por sua namorada e perguntou-me a quanta andava o processo de seu pai.

O jovem, no entanto, me pareceu não estar se sentindo bem. Ele afirmou que estava sentindo tonteiras e que o seu peito lhe doía bastante na região do coração. Ao mesmo tempo ele suava abundantemente e o seu rosto mais se parecia uma pequena fonte.

Supus que ele estivesse tendo um ataque do coração e pedi que a namorada o acompanhasse com urgência até o segundo andar do nosso prédio (o edifício da Rua Goitacases), pois tínhamos ali o setor médico que poderia prestar a ele os primeiros socorros no caso de estar tendo algum problema mais grave.

Então levei-os até o elevador e eu não os vi mais nesse dia.

V

Três semanas se passaram e torna a surgir o mesmo senhor idoso, acompanhado dessa vez por uma garota muito jovem e à qual eu logo supus ser sua filha e irmã do rapaz que o acompanhara na primeira vez em que estivera no meu balcão. Então imediatamente me dirigi a ele e perguntei sobre a saúde do jovem.

O homem me explicou que de fato o seu filho tinha um grave problema no coração e que fora muito bom que eu o tivesse encaminhado naquela ocasião ao serviço médico do Tribunal.

A partir dali ele houvera marcado consulta com um cardiologista que acabara por detectar o referido problema. Mas que agora ele já se encontrava bem melhor e que dera início a um tratamento.

Foi exatamente nesse ponto da história que veio o ocorrer a minha gafe. Começamos a conversar e, conversa vai e conversa vem, perguntei ao homem a respeito da linda filha que o acompanhava naquele dia:

- Além dos dois que eu já conheci, o senhor tem outros filhos? E essa sua menina, como se chama?

Ele me olhou diretamente nos olhos e começou a sorrir.

- Mas esta não é minha filha não, Luís! É a minha esposa.

- Como?

- O caso é que eu peguei essa menina para criar – e soltou em seguida uma extensa e sonora gargalhada que parecia não ter mais fim enquanto eu com certeza me fazia mais e mais vermelho do que um pimentão na medida em que conseguia captar todo o teor daquela minha “bola fora”.

VI

Mas como nada é inútil e nem se perde nessa vida, posso lhes afirmar que aquelas minhas experiências negativas acabaram não se fazendo totalmente em vão.

Vejam só: outro dia entrou na minha Secretaria uma advogada muito conhecida. Considerei por um momento ser possível que ela estivesse grávida. Achei sua barriga bastante arredondada e crescida.

Ou não, pensei em seguida. E não quis pagar para ver. Talvez fossem só umas gordurinhas localizadas ou mal dispostas aqui e acolá no abdômen daquela senhora. O fato foi que acabei optando por permanecer calado e não aumentar a minha já tão longa lista de gafes e bolas fora.

O que podemos concluir de toda essa narrativa é que quando tivermos alguma dúvida à respeito do que fazer ou dizer, talvez seja prudente nos lembrarmos de um velho e bom ditado que diz: “em boca fechada não entra mosquito”.

Agora, se mesmo assim acontecer de você não conseguir se conter, ainda poderá se consolar com um último recurso. Este é também um ditado popular que nos diz o seguinte: “se errar é humano, ter a capacidade de se divertir com os próprios erros é algo divino”.

Aliás, muito divino mesmo!

E vamos para frente que atrás vem gente. E apressada!