O Caso da Galinha D'Angola

A coisa andava no seguinte pé naquela sala de audiências: do lado esquerdo da mesa que ocupava praticamente toda a área central daquele recinto judicial, sentara-se o reclamante José Firmino da Conceição. Era um sujeito sisudo, alto e franzinho, mas não falto de forças nem fraco das idéias.

Pelo contrário, era – como ele mesmo dizia – um cabra macho e cheio de vida! Tanta vida, aliás, que já tirara nada menos do que seis crias na sua patroa. E todas elas muito saudáveis e sãs de saúde, graças ao bom Deus e ao menino Jesus!

Do outro lado da mesa achava-se o reclamado Juvenal Pires D’Assunção Dantas, nome um tanto graúdo para uma criatura pequena e de mediana importância. Este era um sujeito matraqueiro, tagarela e um tanto mais velho que o anteriormente citado. Vestia-se com um terno cinza e uma calça da mesmíssima cor, ambos igualmente surrados nas agruras da vida.

Ele se posicionara na cadeira com as pernas muito abertas, o que o mantinha a uma distância considerável e respeitosa da mesa. Sustentava entre os dedos de uma das mãos um velho cajado ou bengala de madeira. Aquilo lhe dava uma aparência estranha e incongruente, mistura de potentado e andarilho.

Entre eles - numa outra mesa um pouco menor e posicionada perpendicularmente em relação à primeira - encontrava-se o meritíssimo.

A questão ali era a seguinte: o reclamante Zé Firmino trouxera o reclamado Juvenal à Justiça devido a uma pendenga financeira de que era credor: o pagamento do seu último mês e meio de trabalho numa obra que o seu patrão muito lhe encomendara.

Zé trabalhava no sítio do reclamado e este se comprometera a pagar certo valor pela execução de uma reforma num galinheiro localizado nos fundos da casa do proprietário: havia que trocar ali um madeirame podre e umas tábuas retorcidas que ameaçavam ruir, bem como substituir umas telinhas de arame enegrecido e desarranjado no correr do tempo por um conjunto novinho e brilhante de telas de aço inoxidável adquiridas numa das lojas do Mercado Central de Belo Horizonte.

Segundo seu Juvenal, as suas “bichinhas” andavam fugindo por um vão aberto entre as telhas e o madeirame lateral que sustentava o galinheiro e dava um trabalho danado capturar as benditas no finalzinho de cada dia.

Então - como fizera um serviço muito bem feitinho no galinheiro e não chegara a ver a cor do dinheiro – o Zé considerara mesmo razoável naquele caso levar o seu patrão ao “Ministério” e cobrar ali o valor de que se achava merecedor.

“Ministério” – conforme eu já tive a oportunidade de explicar noutra de nossas histórias – é como muitos reclamantes costumam se referir à Justiça do Trabalho, confundindo as funções e atribuições do órgão Judiciário com aquelas referentes ao Ministério do Trabalho e Emprego, órgão diverso e vinculado ao Poder Executivo.

Mas foram tais fatos e tais eventos que acabaram por colocar aqueles dois homens frente a frente e diante de um juiz. Então o meritíssimo se dirigiu primeiramente à criatura que se achava sentada à sua direita e lhe fez uma pergunta:

- E ai seu Juvenal, há quanto tempo o Zé vem trabalhando pro senhor?

- Ora - seu juiz - já não me lembro não! Mas é certo que os pais do Zé já trabalhavam pra mim na época em que esse menino ainda se encontrava embarrigado na mãe dele; depois eu o vi nascer e crescer feito abóbora d’água em solo produtivo, juntamente com os meus dois filhos, o Pitolomeu e a Jaciara. Mais tarde - quando o Zé já se achava maiorzinho - começou a fazer uns bicos aqui e ali para a minha pessoa. Isso foi por volta do ano de mil novecentos e oitenta e seis do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, louvado seja o santo nome do Filho de Deus! Ora o Zé transferia uns bezerrinhos e umas vaquinhas daqui para ali, ora carregava uma carroçinha de feno ou de terra batida. Foi assim que esse menino veio crescendo, crescendo até se tornar esse homenzarrão que o senhor juiz pode ver agora na sua frente. Foi nessa lida também que começamos a estreitar os nossos laços de trabalho e amizade...

- Pois então – continuou o juiz – é justamente por isso que eu não consigo entender o que vem acontecendo agora entre os dois: se os amigos se dão tão bem e já se conhecem há tanto tempo como estão dizendo; se ambos têm tamanho respeito e admiração um pelo outro, porque esse transtorno e essa dificuldade agora? O senhor reconhece a dívida para com o reclamante, seu Juvenal?

- Ora, claro que sim, seu juiz, vê se eu não ia reconhecer! Pois se o amigo Zé trabalha pra mim há tanto tempo! Deus me esconjura se eu disser que não! E ainda mais que o Zé levantou direitinho o cantinho da minha Ximbica descansar na horinha da sesta...

- Da Ximbica? Mas que Ximbica é essa, seu Juvenal?

- É a minha galinha de estimação seu doutor, uma galinha d’angola que comprei numa feira lá em Matosinhos e que sabia até efetuar conta com as quatro operações. O que ela mais gostava de fazer – além de responder às questõezinhas de soma e subtração que eu e o Zé lhe fazíamos nas nossas horas de folga - era tirar uma palhinha no galho mais alto do galinheiro, junto com as suas primas e irmãs...

- Ah, entendi! Mas – e então? – que tal se a gente chegasse a um acordo e colocasse logo um ponto final em toda essa desavença?! Estou vendo que os dois estão muito bem dispostos a isso e que o senhor parece até gostar bastante do Zé, que lhe tem mesmo muita estima e afeição...

- Não fala assim não, seu doutor, que esse tipo de coisa cheira muito mal lá pras bandas de onde eu e o Zé moramos. Na nossa região esse negócio de afeição de homem para homem não fica bem não senhor e com certeza é mesmo coisa de maricas! E se isso se espalha por aí, seu juiz, então é que o negócio acaba ficando feio de verdade pra mim e pro Zé. Se o povo dessa terra descobre acerca da nossa amizade e consideração, vai ser um deus-nos-acuda, um falatório que não acaba mais! Só Jesus Cristo pra dar jeito nisso...

- Está bem, seu Juvenal. Esse então é mais um bom motivo pra gente botar de vez um ponto final nessa pendenga que se instalou entre os amigos. Pois - pelo que consta - havia até um combinado entre vocês: que o senhor haveria de pagar noventa reais para o Zé proceder a tal reforma no galinheiro da Ximbica! Não é isso mesmo?

- Mas foi isso sim senhor, sem tirar e nem por! - emendou o Juvenal. Foi assim mesmo que ajeitamos o negócio, tintim por tintim...

- Mas então por que o senhor vem agora se negar a pagar ao homem a quantia combinada?

- Ora, seu meritíssimo, foi por que ele matou a minha Ximbica, a minha galinha de estimação! A danada só não sabia era falar francês. Para o senhor ver como era, basta lembrar que a bichinha me acompanhava noite e dia e aonde quer que eu fosse como um cachorrinho de estimação. Só faltava mesmo era dormir comigo e com a patroa. O problema é que a minha Matilde não me permitia tal coisa: parece que tinha uns ciúmes ou qualquer coisa assim da coitada da galinha. Agora, com o estrago que uma ventania fez algum tempo atrás no galinheiro, andei levando a minha companheirinha para se empoleirar num pedaço de pau na varanda lá de casa. O problema foi que a bichinha me pareceu muito infeliz e tristonha longe das suas primas e irmãs e foi ai que eu pedi ao Zé para dar um jeito de vez no galinheiro...

Nesse momento o juiz se voltou na direção do reclamante e deu prosseguimento à “conversa”:

- É isso mesmo, seu Zé?! As coisas aconteceram do jeitinho que o seu patrão Juvenal me contou?

- Foi tudinho assim mesmo, seu meritíssimo. Havíamos ajeitado o valor de noventa reais pela obra completa, mas a infeliz da galinha me fez o grande favor de pular na minha frente na horinha exata em que eu estava descendo o porrete no madeirame podre do galinheiro. Vou lhe contar uma coisa, seu juiz: não sobrou pena sobre pena daquela danadinha e nem da sua alminha voadora! Não restou um pedaçinho inteiro sequer da cabecinha da bendita! Virou tudo foi um amontoado de sangue e carne misturados no chão do terreiro. Mas que aquilo aconteceu sem maldade minha, lá isso foi – e Deus sabe direitinho das minhas ações e intenções nesse mundo! – pois que não sou homem de atentar contras as criaturinhas do Senhor de jeito nenhum! Na verdade foi mesmo uma porcaria de um acidente de trabalho...

- Acidente nada, o Zé fez aquilo de propósito, senhor juiz, só porque eu não quis dar e nem emprestar a bichinha pra ele! Há muito tempo que esse infeliz vinha me pedindo a coitadinha. Ele dizia que gostava por demais de ficar agachado num cantinho qualquer apreciando o jeito inteligente e moleque que aquela galinha tinha de olhar para a gente enquanto respondia as perguntas. Ele ficava imóvel observando ela bater o biquinho amarelo no chão duro do terreiro. Olha seu doutor: eu até que aceito pagar os noventa reais pro Zé, mas desde que ele desconte do valor combinado o preço daquela galinha praticamente assassinada à “queima-roupa”...

- O que o senhor acha dessa proposta, seu José Firmino – voltou-se o juiz para o reclamante, buscando desviar o pensamento do homem daquelas últimas palavras ditas pelo reclamado.

- Concordo com o que disse o Juvenal, seu doutor. Além do mais o senhor é quem manda aqui e...

- Mando nada, seu Zé. Eu só estou intermediando a coisa e perguntando se o senhor concorda em descontar do valor que lhe é devido pelo serviço prestado na reforma do galinheiro o preço da galinha que matou por “acidente”?!

- Concordo sim e acho isso muito justo e louvável.

- Pois bem – completou o juiz. Agora só falta a gente definir quanto custa a “bendita” da galinha e está tudo acertado, não é mesmo?! Qual é o preço de uma bichinha dessas lá na região de vocês?

Os dois homens se entreolharam e responderam praticamente ao mesmo tempo. Entretanto, enquanto um dizia uma coisa, o outro falava outra bem diferente:

- Não passa de uns dez reais, seu Doutor – respondeu o reclamante. Na nossa região essas galinhas d’angola dão feito chuchu na cerca, igual mato ruim. Ainda mais que essa bichinha “abençoada” só aprendeu mesmo nessa vida foi a fugir do galinheiro e a passar o dia inteirinho da mãe de Deus vagabundando e cavoucando a terra seca em busca de umas minhocas e dos grãozinhos de milho que se espalham por toda a área do sítio.

- Decerto que uma “danadinha” igual a essa – contra-arrazoou de imediato o reclamado – decerto que não haveria de custar menos do que cinqüenta reais, senhor juiz.

O meritíssimo esfregou lentamente as sobrancelhas grossas e a cabeça calva. Lembrou-se de quanto cabelo já houvera perdido em intermináveis discussões semelhantes àquela: quando a coisa parecia se encaminhar num ritmo galopante para um final feliz – em verdade uma solução boa e eficaz para ambas as partes - logo surgia alguém e botava tudo a perder, feito água na fervura ou em fogueira de São João.

- Mas essa sua galinha está muito cara, seu Juvenal – afirmou o juiz tentando reverter o rumo da situação e daquela prosa que começava a ficar bastante difícil. Está tão elevado o preço da bichinha que agora quase quem lhe deve alguma coisa pelos serviços que lhe prestou no galinheiro é o próprio reclamante...

- Pode até ser, seu doutor! Mas é como eu já disse: aquela galinha era uma santa, uma santinha mesmo! Pois se até as contas do armazém era ela quem fazia para mim! Além disso – concluiu o homem com muita perspicácia e sabedoria – era uma galinha de estimação, de muita estimação, aliás - e só quem souber apreciar a importância de uma grande amizade é que saberá calcular o valor real dela...

- Mas, gente – tentava o juiz trazer a voz da razão até as cabeças endurecidas daqueles dois homens - por melhor que uma galinha seja e por mais que gostemos dela, uma galinha há de ser sempre e apenas uma galinha e não pode custar tanto assim! Mesmo quando estivermos tratando como nesse momento de uma galinha pela qual tenhamos adquirido uma maior amizade e estimação! Vamos ser mais racionais e menos emotivos, seu Juvenal. Vou arredondar o preço dessa bichinha à qual o senhor tão bem queria – continuara o juiz - para algo em torno de vinte reais. Tenho até a absoluta certeza de que a sua Ximbica saberia responder com precisão a uma continha tão simples quanto essa que eu lhe vou propor agora: do valor combinado pelos serviços prestados pelo seu Zé Firmino no galinheiro vamos descontar o preço da galinha e encontrar o resultado, correto?! Aposto que a danada certamente saberia resolver essa questãozinha de nada! E decerto que com as duas asinhas voltadas pra trás das costas, não é mesmo seu Juvenal?!

- Ora, com certeza, meritíssimo. Isso seria fácil pra ela: noventa menos vinte são setenta. A Ximbica bateria o seu biquinho amarelo por setenta vezes no chão do terreiro.

- Pois então está dito, feito e combinado, afirmou o juiz rapidamente e com receio de que alguma das partes viesse a cair em tentação e tornar atrás na palavra dada. Setenta reais lhe satisfazem, seu Zé?

- Certamente, meritíssimo! Por mim está muito justo!

- E pro senhor, seu Juvenal?

- Para mim também está ótimo!

O juiz imediatamente se voltou na direção do seu datilógrafo e lhe ditou as seguintes palavras e frases que ficaram registradas naquela ata de audiência:

“ACORDO: o reclamado, senhor Juvenal Pires D’Assunção Dantas, paga ao reclamante José Firmino da Conceição - nesta data e mesmíssima audiência - a quantia líquida de setenta reais pelos serviços prestados por aquele último no galinheiro da Ximbica. Neste ato dá o reclamante plena quitação pelo objeto do pedido, declarando ambas as partes que o valor total do acordo se refere a parcelas de natureza indenizatória. Custas pelo reclamante, no importe de R$1,40, dispensadas na forma da lei”.

Senhoras e senhores: foi exatamente assim que terminou esse caso da galinha d’angola ocorrido numa das Varas do Trabalho localizada num lugar qualquer desse infinito mundão de meu Deus a que costumam chamar pelo nome de Minas Gerais!

Deixo-lhes aqui uns versos que o tal Juvenal aprendera quando ainda era uma criança e que desde então não mais abandonaram aquela sua cabeça dura e redonda:

Era uma vez uma galinha pedrês,

Botou um ovo e deixou o indez:

Quer que eu te conte outra vez?