O Caso da Cueca Vermelha de Tio Firmino

I

Quando tio Firmino chegou do serviço naquele dia com a história de que ia dar entrada num processo trabalhista contra a firma na qual laborara praticamente durante toda a vida – uma das maiores e mais conceituadas empresas de construção civil que já existiu em nosso país, com sede na Capital do Estado de Goiás – ninguém ousou discordar dele.

Tio Firmino sempre fora muito tranqüilo e reservado e era exatamente por este motivo que todas as vezes em que ele abria a boca para nos comunicar qualquer novidade ou idéia estranha que houvesse tido que cada um de nós se punha bem quietinho e de orelhas murchas, feito burrinhos ou vaquinhas de presépio. Quase sempre vinha dali um deus-nos-acuda qualquer capaz de alterar substancialmente a rotina das nossas calmas existências.

Sabia-se já há algum tempo que aquela empresa de construção de edifícios residenciais vinha passando por uma fase muito ruim nos seus negócios. No entanto, quando foi decretada a sua falência no ano de 1999, ela aparentava se encontrar em plena efervescência de suas obras. Achava-se em suposta atividade cerca de setecentas construções maquiadas e espalhadas por quase todos os Estados brasileiros.

Gostaria de esclarecer ao amigo leitor que toda vez que utilizar o termo “maquiadas” sempre estarei me referindo de uma só vez a duas questões distintas e de grande importância na presente história: primeiramente ao fato de que aquelas obras vinham há algum tempo sendo nitidamente “enfeitadas” em suas fachadas e áreas externas. A razão disto era bastante simples: que dessem aos compradores, mutuários e possíveis clientes a impressão de que as construções permaneciam em curso.

Por outro lado, os balanços e balancetes patrimoniais da reclamada começaram igualmente a ser “ornamentados” ou - por que não dizer logo - “fraudados” por alguns dos seus dirigentes no objetivo de ocultar dos bancos, dos fornecedores, de seus clientes e funcionários, a real situação da empresa.

É mesmo idéia corrente de que tudo isso tenha ocorrido ou por incompetência dos administradores da gigantesca construtora ou - como afirmam outras fontes mais severas da opinião pública e dos meios de comunicação – no objetivo de continuarem ainda por algum tempo aplicando aquele golpe financeiro no mercado da construção civil.

Em verdade, levaria alguns meses para que nos tornássemos cientes da exorbitância das dívidas deixadas em aberto e de todas as obras inacabadas daquela construtora: no mínimo quarenta e dois mil clientes e mutuários ficariam sem receber a tão sonhada casa própria e algo em torno de seis mil funcionários haveria igualmente de ficar a “ver navios” em relação aos seus salários e a outros créditos trabalhistas.

Meu tio mesmo labutara naquela empresa durante mais de vinte e cinco anos e, ao que parece, um dos dirigentes da mesma nutria por ele uma consideração especial. Apesar de não ser engenheiro e nem ter qualquer formação relacionada à área da construção civil, Firmino sabia como ninguém conduzir uma obra do seu início ao fim.

Foi por esse motivo que meu pai resolvera acompanhá-lo até o prédio da Justiça do Trabalho no dia designado para a audiência. Por ser o irmão mais velho, papai considerava-se ainda hoje o protetor e o fiel guarda-costas de meu tio. Além disso, meu pai calculou que dessa forma poderia deslindar para nós todo o mistério que rondava aquele assunto.

II

Então foi assim que - minutos depois de iniciada a audiência - a preposta da reclamada propôs ao advogado do meu tio um acordo bastante razoável e que poria fim ao processo: pagaria em audiência o valor de R$7.500,00, devendo o autor dar a quitação pelo objeto do pedido. Ao juiz caberia homologar a extinção do contrato de trabalho.

O pagamento – continuou a preposta – teria necessariamente que ser efetuado em dinheiro, tendo em vista o fato bastante patente e notório de que as contas bancárias da empresa se encontravam bloqueadas e que os poucos bens que ainda restavam no nome dela e de seus sócios se achassem indisponíveis e marcados por uma série de penhoras efetuadas tanto pela Justiça Trabalhista quanto pela Comum.

Diante de tudo aquilo, meu tio não pestanejou e nem pensou duas ou três vezes: aceitou de imediato e com um largo sorriso de satisfação aquela excelente proposta de conciliação.

Entretanto, sabedor dos problemas financeiros pelos quais vinha passando a empresa, o juiz impusera às partes uma prévia condição para que viesse a homologar o pacto. Haveria que se registrar em ata a seguinte ressalva: o reclamante daria quitação apenas pelo objeto do pedido, sem que com isso se visse no prejuízo de reivindicar em ação posterior qualquer possível diferença de parcelas não contempladas naqueles autos.

Em seguida – virando-se na direção de meu tio – o juiz ainda lhe endereçou o seguinte comentário:

- Outra ressalva eu lhe faço pessoalmente, Sr. Firmino, e é a seguinte: como a empresa está se dispondo a pagar o valor combinado em espécie, aconselho-o a guardar muito bem guardado o dinheiro que vier a receber. O fato é que anda circulando em nossa região uma súcia de pessoas não muito confiáveis, os conhecidos “amigos do alheio”. Tendo uma oportunidade, eles não perdem a chance...

Ao ouvir aquilo, tio Firmino se remexeu em sua cadeira e respondeu com absoluta segurança:

- Ora, senhor juiz: quero mais é ver se vai ter algum cabra macho lá fora para por a mão no lugar aonde eu vou guardar o dinheirinho...

Assim que pronunciou aquelas palavras, tio Firmino se levantou de sua cadeira e desafivelou o cinto que lhe sustinha a calça, baixando-a o suficiente para que pudéssemos perceber a colorida estampa da cuequinha vermelha que ele estava usando naquele dia.

Quando o meritíssimo viu aquilo, calculou de imediato que seria obrigado a dar a voz de prisão para o infeliz do meu tio, ainda que a princípio aquele reclamante meio avoado e alegre lhe tivesse parecido ser um sujeito bastante prudente e respeitoso das ordens públicas e privadas. Mas, afinal – concluíra o juiz – vai lá alguém saber o grau de insensatez que cada um de nós oculta por detrás de uma aparência a todos os efeitos normal!

O que aconteceu em seguida, no entanto, deixou cada uma daquelas pessoas de boca aberta e com o queixo caído. Para surpresa geral, todos os presentes puderam ver naquele momento tio Firmino retirar um saco plástico transparente de dentro de sua cueca vermelha. Aquele saquinho muito se assemelhava a esses utilizados em mercadinhos e mercearias que comercializam frutas e verduras.

Em seguida, Firmino segurou com cuidado o maço de notas de dinheiro recebido da preposta da empresa e o envolveu no referido saco plástico, voltando a colocar tudo aquilo no seu lugar de origem, isto é, dentro da sua mesmíssima cuequinha vermelha.

Foi nesse momento e somente nesse momento - minhas distintas senhoras e meus prezados senhores - que cada uma daquelas pessoas compreendera afinal que o meu tio não fizera nada daquilo por afronta ou desrespeito para com o Juízo e nem para com os seus semelhantes, mas por ser um sujeito de alma simples e sem malícia no coração.

Antes, porém, que as partes e seus procuradores deixassem o recinto e a audiência se encerrasse de vez, coube uma última palavra ao advogado da empresa. O sujeito se dirigiu ao meu tio nos seguintes termos:

- O problema hoje em dia, seu Firmino, é que os malandros e marginais não são tão somente “machos” e nem apenas do sexo masculino. Costumam muitas vezes ser “fêmeas” também. E algumas delas, aliás, bastante interessantes e atraentes como bem podemos supor! Então trate de tomar em relação a essas lindas moças, belas senhoras e formosas mocinhas que lhe cruzarem o caminho o mesmo cuidado que haveria de ter para com os marmanjos!...

Foi assim, meus amigos, foi exatamente dessa maneira que terminou esse estranho caso da cueca vermelha do tio Firmino!