Esqueceram de Mim... E do Gutenberg!

Dedico esta caso aos amigos e colegas das muitas 5ª. Varas que foram se formando no passar do tempo: Elcy, Gutemberg, Vanderley, Edmilson, Glícia, Joel, Seu Lúcio, Isa, Malu, Aurélia, Isabella, Marcelo, João, Eni, Jussara, Eliete, Naná, Álvaro e Geraldo Eterno. Caso tenha me esquecido de alguém, sinta-se assim mesmo abraçado!

I

O que eu vou contar a partir desse momento aconteceu alguns anos depois da minha entrada no Tribunal, ali pelos idos de 1999. Nessa época eu estava lotado na 5ª. Vara do Trabalho de Belo Horizonte e, como todos devem se lembrar, as Varas eram designadas pelo nome de Juntas de Conciliação e Julgamento e se localizavam no Fórum trabalhista da rua Goitacases. Nós ocupávamos o sexto andar, juntamente com a quarta e a sexta Juntas do Trabalho.

Por volta daquela época eu e o companheiro Gutenberg havíamos acabado de conseguir proceder a algumas importantes alterações em nossas atribuições dentro daquela Secretaria. Nós atendíamos ao público no balcão da 5ª. Vara – aos advogados, peritos, reclamantes e reclamados - ele no horário da manhã e eu na parte da tarde. Entretanto, já nos dedicávamos àquele trabalho há cerca de três ou quatro anos e começáramos a expressar a vontade de aprender os demais serviços da Secretaria.

Todos sabem, porém, que existem dois tipos de trabalho pouco atraentes para a grande maioria dos servidores: são os do atendimento ao público e os do datilógrafo de audiências. Para que um servidor deixe então de prestar uma destas atribuições é necessário que outro servidor queira assumi-las e aí é que se encontrava a grande dificuldade.

O fato é que eu e meu colega havíamos conseguido aquele feito quase heróico depois de muita conversa e diálogo com o nosso diretor e com os demais colegas. No entanto, ficara combinado que retornaríamos ao atendimento no balcão sempre que se tornasse necessário. E os motivos para isso não faltavam: variavam desde a cobertura de eventuais ausências ou saídas antecipadas dos novos balconistas para consultas médicas até o gozo de suas férias regulamentares.

No entanto, essa história só se tornou possível devido à nossa saída do balcão. Em determinado dia achávamos eu e o Gutenberg no cumprimento dos despachos: ele na confecção das intimações e publicações e eu na dos alvarás e autorizações, dos ofícios, mandados e cartas precatórias, etc. Devo esclarecer que o local onde trabalhávamos se situava mais ao fundo da Secretaria, distante alguns metros da área central onde ficavam o diretor, os assistentes e os demais funcionários. O nosso espaço era ainda separado do restante por uma fina parede divisória de madeira.

O caso foi que lá pelas tantas eu resolvi ir à cozinha tomar um cafezinho. Ao chegar à sala central, porém, dei-me conta de que ela estava completamente vazia. Caminhei até o balcão e percebi que também não havia ninguém ali, nem atendentes e nem pessoas para serem atendidas.

Voltei até a nossa sala de trabalho e comentei com o Gutenberg. Estava começando a achar tudo muito estranho. Avisei a ele que iria dar um pulo até a 6ª. Vara do Trabalho para ver se descobria o que estava acontecendo. Ao chegar lá, no entanto, encontrei a Secretaria igualmente vazia.

Finalmente, caminhei pelo saguão do nosso andar até os elevadores e as escadas do edifício. Nesse momento encontrei uma verdadeira multidão descendo em desabalada correria e agitação. Assim que avistei um conhecido, pedi-lhe que me explicasse o que estava acontecendo. Então ele me disse o seguinte...

II

- Tem uma bomba no edifício!

- Como assim, perguntei assustado e já engolindo em seco.

- É isso mesmo que você ouviu. Houve uma ligação telefônica e alguém informou que há uma bomba pronta para explodir no segundo andar. Estão evacuando o prédio e...

Nem esperei o resto. Voltei imediatamente até a Secretaria e pelo caminho já fui dizendo ao Gutenberg o que estava acontecendo.

- Tem uma ameaça de bomba no prédio! Vamos sair daqui agora!

- Como é que é, Luis? Que bomba - perguntara o colega com cara de quem não estava acreditando e nem entendendo bulhufas.

- É, Gutenberg, uma bomba dessas que explodem com força e fazem picadinho da gente. Vamos embora!

- Mas eu nem terminei de fazer o correio! Daqui a pouco o funcionário vai passar para buscar as notificações e se elas não estiverem prontas...

- Não, Gutenberg, hoje não vai ter correio nenhum. Você não está entendendo?! Tem uma bomba no prédio e ela vai explodir!

Enquanto dizia essas últimas palavras, eu já começara a me encaminhar para a saída da Secretaria. Percebendo o grau da minha resolução, o meu colega largou o que estava fazendo e me acompanhou na fuga.

III

Assim que chegamos às escadas pude ver de novo uma multidão de servidores, estagiários, juízes, advogados, reclamantes e reclamados que preenchiam quase completamente o espaço ali existente. A escadaria do edifício havia sido construída no formato de caracol e sempre ficávamos tontos só de descer um pouco mais rapidamente por elas. Naquele momento, entretanto, havia até certo congestionamento no transito, alguma gritaria e muita agitação. Ninguém queria ficar para trás e se tornar uma trágica notícia no jornal da noite.

No entanto, algo mais iria acontecer. Enquanto tentávamos abrir caminho o mais velozmente possível, percebi que a nossa juíza vinha subindo as escadas na contramão das pessoas que desciam assustadas. Só tive tempo de me virar para ela e lhe dizer:

- Doutora, não sobe não: tem uma ameaça de bomba no prédio. É melhor a senhora voltar daqui!

Até hoje fico em dúvida: não sei se ela não chegou a me entender ou se os juízes são possuidores de fato de alguma espécie particular de proteção anti-bomba. O caso foi que ela parou por um segundo, olhou para nós e respondeu muito séria:

- Mas eu tenho que deixar estas sentenças na Secretaria. A publicação delas é hoje...

- Mas, doutora – tornou o Gutenberg - não tem ninguém lá em cima para receber as decisões. O diretor, os assistentes, todos já saíram do edifício...

A última recordação que eu guardo daquela juíza foi ela dizendo qualquer coisa que não conseguíramos entender e voltando a subir ligeira as escadas. Estávamos todos muito agitados e a verdade foi que ela seguiu o seu caminho para cima e nós o nosso para baixo. Queríamos estar bem longe dali quando tudo fosse para os ares...

IV

Depois que saímos do edifício, atravessamos para o lado oposto da rua e permanecemos ali por um bom tempo junto aos demais colegas e a alguns advogados. Haviam dito que aguardássemos a determinada distância do edifício.

Mas o tempo foi passando e passando. Passou tanto que deu tempo até para que eu e o Gutenberg elaborássemos algumas reflexões sobre o fato dos nossos colegas terem se esquecido de nós naquela fuga.

Dias depois, entretanto, ficaríamos sabendo que um dos nossos amigos chegara de fato a nos avisar da ameaça de bomba antes de se por em desabada corrida. É possível que nós também não o tenhamos ouvido ou entendido corretamente, tal qual a juíza do capítulo anterior. Ou então não lhe déramos a devida atenção e continuáramos simplesmente a trabalhar.

V

Algum tempo depois chegou até nós uma nova notícia da administração do Tribunal. Informaram que não haveria audiências ou qualquer outro tipo de expediente naquele dia. A partir daquele momento um esquadrão anti-bombas da Polícia Militar iria dar início à busca de quaisquer artefatos malignos que pudessem estar escondidos em algum ponto do edifício.

Foi assim que terminou aquele nosso terrível “11 de setembro”. No dia seguinte, porém, ficaríamos cientes acerca da inexistência de qualquer mecanismo explosivo no prédio. Logo pela manhã, portanto, lá estávamos nós confeccionando os mandados, os alvarás e as notificações que seriam endereçadas aos advogados, às partes e aos ilustres peritos dessa Justiça.

Afinal, meus amigos – é exatamente como se diz naquele velho ditado - a vida segue. E deve seguir de preferência sempre em frente!