JOÃO DOIDO-HOMENAGEM PÓSTUMA AO JACARÉ

Era alegre, extrovertido, feliz e levava a vida como se fosse uma festa.
Era muito pobre, tanto quanto eu, talvez menos um pouco, mas isso não significava necessàriamente uma postura de humildade e timidez.

Pelo contrário, era um moleque daqueles chamados de rua, tipo travesso, esperto, batendo bola em campinhos improvisados e que aprendera todas as malandragens fora de casa, muito embora sob controle de uma rígida educação familiar, nos moldes conhecidos daquele tempo. Era um dos mais bonitos da familia Guima de Ponte Nova, Rasa, Palmeiras, MG a BH, Nova Lima, Rezende RJ, e adjacencias mil, que na verdade tem muito pouca gente feia.

Sabia todas as piadas, todos os palavrões, era irreverente e extremamente gozador. Mas era gente, como ninguém. Era diferente, quando alguém chorava, ele chorava junto de verdade, sempre foi companheiro pra todas as horas.

Cheguei de uma cidadezinha do interior, Ponte Nova, MG, o berço da nossa grande familia, minha querida terra natal, como teria dito meu conterrâneo João Bosco Mucci, um lugarzinho perto de Ouro Preto (mas é a terrinha que eu mais amo) e o procurei em BHte.

Era meu primo. Poderia ser um protetor, um guia para que eu me adaptasse o mais rapidamente aos entraves naturais de uma capital, para onde eu estava me mudando para tentar a vida melhor, embora naquele tempo (1961) possuisse apenas uns 300 mil habitantes.

Andavamos ainda de bonde e creiam, o cobrador andava por fora nos trilhos recebendo as passagens e ninguém descia sem pagar e a TV ainda estava chegando em nossas vidas e eu cheguei com emprego arrumado, lembro-me bem na Rua Caetés. Bons tempos aqueles.

Primeiro dia de contato um passeio na lagoa do parque municipal. Eu o adverti: - Não sei nadar João Luiz, "pelo amor de Deus, eu te conheço de sobra pelo que já me disseram de você em Ponte Nova e ainda me dizem aqui. Sua fama de sacana, corre longe.

Ele ria, mas ria escancarado e disse: (em lembro bem)

– Que nada, sem problema, você aprende logo.
- E em sem cerimônia me empurrou sorrindo inocentemente para fora do pedalinho. Quase me afoguei, xinguei, esbravejei, lembro-me do sorriso dele até hoje, da minha roupa molhada, das pessoas olhando e eu preso ali, no sol, me secando pra poder tomar o onibus e ir embora e ele lá com aquela cara de sacana, me dizendo que ia me ensinar a ser macho. Rssss.

Sei que não foi por mal. Sempre soube. O perdoei. Também não sei e nem quero entender, como consegui chegar até as margens do outro lado, bebendo um pouco de agua, mas nadei. E também nunca consegui entender suas loucuras.

Mais tarde, sei lá, meses depois, atravessou a avenida Paraná e gritou do outro lado chamando atenção de todos que estavam comigo no ponto de ônibus:

- “hoje você vai me pagar aquele dinheiro que você me deve, de qualquer jeito, nem que eu tenha que te matar, te encher de porrada, seu caloteiro de uma figa”

(sic) – Que nada, eu nunca pedi dinheiro pra ele, pelo contrário, eu já havia arrumado um emprego melhor que o dele e ocorria o contrário, sempre me devia a entrada do cinema, o sorvete que eu pagava pra mim, pra ele e pra namorada dele. Não liguei, sabia que ele era assim, gozador. E sabia que naquele momento eu estava sendo vítima de mais uma dele. Rsss. Só não sabia se ficava naquela fila de onibus ou se saia correndo.

Mas não adiantou, porque quando ele acabou de atravessar a avenida, eu vermelho de raiva e de vergonha, ele, na cara de pau não desmentiu e toda aquela multidão na fila de onibus, me chamando de caloteiro, "que vergonha", etc. Fazer o que? Sabem o que mais? Dando uma de vítima ele ainda entrou na frente de todo mundo, inclusive na minha frente e ninguém chiou.

Depois, mais um tempo se passou, pediu carona de BH para o Rio para um motorista de caminhão, fez travessuras em cima da carroceria e caiu na ribanceira perto de Barbacena e o motorista não viu, foi embora, ou fingiu que não viu. Eu não estava junto, fiquei sabendo depois. Arrastou-se morro acima, conseguiu socorro, foi pro hospital, encanou a perna e nunca mais foi o mesmo. Ficou mancando, não merecia aquele castigo, queria ver o Fla x Flu, um clássico que naquele tempo enchia o maracanã com 130 mil torcedores e viveu a vida inteira marcado por aquela fatalidade.

Nesse ínterim, o Rio deixou de ser a capital federal, deixou de ser a capital da moda, deixou de ser tudo e São Paulo tomou conta, dominou a imprensa e o futebol dos barrigas brancas prosperou.

Não tem importância, o mundo muda, até a igreja católica perdeu espaço para meliantes que se dizem Bispos, porque o meu Flamengo não pode sentir na pele o crescimento dos “manos” ? Hoje se tiver um classico no Maracanâ Fla x Flu ou um atletico e Cruzeiro, a TV bairrista Paulista, transmiti Votuporanga x Americana e o Luciano do Vale transmite como se fosse um jogo do Real Madri com o Barça e transforma um pé de chinelo daqueles lá, num Messi.

Tudo bem, meu querido primo consolidado por mim como João Doido, precisava de fazer fisioterapia para ver se recolocava no lugar a perna que mancava ou que ficou mais curta. La ia eu perder dia de trabalho (às vezes) para acompanha-lo. Era difícil, ainda muito pobre sequer pensava em comprar um carro e o transporte era o ônibus Santo Andre lotado.

Ele mesmo sofrendo dores horríveis na perna, manteve o humor e era feliz, escorregava nos degraus e “me xingava” simulando uma reprimenda só pra fazer gozação comigo e todo pessoal do ônibus, se condoia, me pedia mais calma e mais cuidado e eu ouvia ele dizer em alto e bom som: - “Eu vou falar com minha mãe pra te demitir, você como enfermeiro é um bosta” – “Não sabe me segurar quando eu escorrego e todo mundo aqui no ônibus sabe e viu que você está me sacaneando” e ria... ria... olhando pra mim com aquela cara de moleque e sabia que eu ficava puto, pois sempre fui muito comportado, muito sizudo e jamais devolveria a ele esse tipo de brincadeira de mal gosto.

Fez isso várias vezes comigo dentro do ônibus e certa vez, fingiu perto de uma velhinha que estava morrendo de dores e chorou copiosamente e ela ficou enfurecida comigo porque eu o estava "xingando". Imaginem a cena de fingimento e a fria em que ele me metia. Até mesmo um trocador de onibus queria me colocar pra fora do coletivo.Rssss


Depois de muitas outras sacanagens, o destino nos separou um pouco e eu segui meu caminho. Comprei um Monza Club zero e fui a casa da minha mãe e me surpreendi com ele por lá. Foi um encontro muito bonito, emocionante, um sentimento sincero de saudade matada por dois amigos do peito, de adolescência, que se encontravam assim, de repente, de novo.

Lembrávamos do dia que ele arrumou uma namorada pra mim e mentiu que era irmã de uma loira muito bonita e eu fui ao encontro e tive que sair correndo, desesperado pois o meu susto foi tão grande, tal era a feiúra da pobre moça que eu não tive opção. Pior que o quarteirão era enorme e era o muro do cemitério do Bonfim na Rua Jaguari. Quem conhece, sabe o pique que eu tive que dar. Sei apenas que 2 minutos eu já estava dentro de onibus na Pedro II.

Riamos ainda lembrando do dia que ele levara uma TV Telefunken que eu havia comprado 5 anos antes e que dera de presente pra minha mãe e ela queimou uma válvula (coisa de eletromestico antigo) e nunca mais vimos a tal TV ele a vendeu e ficou com dinheiro na maior cara de pau. Pra quem é mais velho, sabe que qualquer um podia trocar uma válvula de TV naquele tempo, era baratinho e a gente mais uma vez caia na gargalhada. Cobrei dele, ele me disse que ela tinha queimado o tubo de imagem.

Foi ai que eu brinquei com ele: Hoje, você não me passa mais pra traz, de jeito algum eu caio mais em suas traquinagens, ele olhou pela janela e disse: É primo, mas eu também mudei muito, jamais teria coragem de repetir aquelas coisas, ta? - Pensei comigo, minha nossa João Luiz falando assim...
Foi ai que ele continuou:
– Putz, mas você ficou rico? Comprou um Monza zero enquanto eu aqui andando nessa Kombi caindo aos pedaços? – Ah, você vai me deixar dar uma volta nesse carrinho, eu nunca na minha vida tive oportunidade de andar num carro cheirando a novo?

Advinhem, eu acabara de dizer que ele não me passaria mais pra traz e deixei ele dar uma “voltinha”. Na esquina da avenida eu ouvi um cantar de pneus e ele deu um cavalo de pau no Monza que eu gelei todos os ossos do meu corpo e sumiu.
Eu falei: pronto, agora eu “vou ter que matar esse FDP” e fiquei aguardando ele voltar. Não voltou. Peguei a Kombi e sai pra casa dele pra fazer a troca. Na esquina o pneu furou (estava careca), fui procurar o estepe, não tinha. Não tinha macaco também. Fui checar o pisca pisca, nada, procurei o triangulo, nem pensar. Encostei o carro num barranco próximo, peguei um taxi e cheguei na casa da minha tia. Também lá, ele não estava. Tomei um café, chorei as mágoas com a minha tia Didi e ela ria e gozava minha cara: Você conhece a peça, pôs o carro na mão dele de burro que é. Meu tio Pedro Rossetti Guimarães, ficava "oiano" de banda e fumando um cigarrinho de palha e sempre desaprovava, mas no fundo não tinha jeito, tinha que rir também.

Ele chegou, não vale a pena contar tudo que falei e tudo que vociferei, peguei o carro e fui embora e ainda dei uma carona pra ele onde estava a Kombi, fui embora e o deixei lá se virando. Por incrivel que pareça o carro não tinha um arranhão. Levei pra alinhar e balancear por via das duvidas, mas sem problema.
Depois mais tarde na casa dele no bairro Agua Branca, descubro que ele fez uma piscina enorme em cima da laje, casa de Cj. habitacional, eu disse: João, cê tá maluco? tudo isso cai na sua cabeça e pode machucar as crianças. O Jean naquele tempo era magrelo, uns doze anos e ainda tinha muito cabelo na cabeça, ficou me olhando espantado e devia estar pensando: Pô esse cara chega de repente, primo do meu pai e chega criando caso? Uma semana depois, a noticia:
A laje desabou, agua pra todo lado, felizmente ninguém se machucou.

Mas ele continuava zombando da vida, um eterno bom vivant, certo dia, após ter sido feliz em algum grande negócio com as suas muambas, ferro velhos e recicláveis, ele chegou lá em casa com muito dinheiro no bolso e jogou tudo em cima da mesa e disse: Olha ai, você é o meu primo amigo, companheiro, que eu gosto muito - se precisar, pode levar e me pagar quando puder. Era dinheiro pra comprar um carro usado em bom estado. Eu disse: João, obrigado, eu estou bem, sempre fui controlado, você sabe, agradeço, fica pra outra vez.

Esse era o lado que ele não podia errar. Era um coração bom e se eu quizesse teria me aproveitado e não o fiz, mas outros com certeza o fizeram e por isso ele nunca conseguiu acumular um bom dinheiro e ter uma situação economica boa. Soltava tudo que tinha e dividia facil como se fosse e de fato o foi, um bom samaritano.

Sumimos de novo, 20 anos se passaram, ou mais, sei lá pode ser uns 30. Recentemente, dois anos ou um pouco mais, não gosto de gravar datas tristes, estive em BH e decidi: vou ver como andava meu querido primo. Cheguei em Nova Lima, um susto, quando vi seu filho mais velho o Jean, o carregando no colo ou empurrando a cadeira de rodas pra fazer hemodiálise.

Ele olhou pra mim, seu sorriso havia sumido e a tristeza havia tomado conta de sua vida. Já não podia falar e com o derrame cerebral que teve... Chorou copiosamente. Suas palavras eram incopreensiveis, em forma de soluços e o sofrimento era escancarado.

Quando me dei conta, estávamos os dois chorando e ele cabisbaixo, soluçou continuadamente como se estivesse me pedindo socorro até que eu não suportei e tive que sair pra varanda e foi por muito pouco que não tive uma sincope cardíaca. Veio aquele aperto no peito, um nó na garganta, um sufoco.

Ali estava, meu companheiro de tantas jornadas, de tantas farras juntos, e como canta Roberto Carlos, meu amigo de fé, meu irmão camarada, meu primo, sangue do meu sangue, com o qual eu havia aprendido como ser malandro e como ser alegre e como viver a vida.

Quando retornei, pouco tempo depois soube de sua morte, levando um pedaço da minha vida e do meu coração junto com ele. Não havia em Ponte Nova, Belo Horizonte, Nova Lima e até mesmo Rezende no Rio de Janeiro por onde nossa grande familia se espalhou, quem não tivesse sido "vitima" de suas brincadeiras e de suas gostosas e inesqueciveis aventuras.

Foi a unica pessoa no mundo que conheci que fazia coisas "erradas" e era adorado, amado e perdoado. E quem na familia Guimarães, principalmente em Ponte Nova, não tiver uma história pra contar do fantástico, incrivel, inimitável João Luiz Rosa Guimarães, o João Doido, ou o Jacaré, com certeza inventa uma.

Luiz Bento (Mostradanus)
Enviado por Luiz Bento (Mostradanus) em 16/04/2012
Reeditado em 06/10/2012
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