OS JOÃOS COITADOS DA VIDA E APOSENTADORIA

Dificilmente a juventude atual acredita na história relatada pelos avôs com respeito às condições de vida enfrentadas por eles no passado. Época que não havia meio de transporte, nem estradas. Os bens como o rádio, televisão, celular e tantas modernidades que hoje nos colocam em contato com o mundo em questão de horas minutos e segundos eram inexistentes.
A transição ocorrida no decorrer do tempo vai apagando a histórica dificuldade que emperrava a dinâmica da vida no passado. E o modernismo atual vai mudando a cada dia os conceitos do nosso cotidiano. A moral costumes, os bons hábitos, religiosidade tudo isso virou cafonice para esta juventude baladeira de hoje. No meu tempo de jovem, por exemplo, o horário de um rapaz chegar, com os pais em vigília o aguardando é o mesmo de uma moça sair de casa atualmente.
Tudo mudou e temos que acompanhar correndo atrás, embora seja uma corrida amarga, houve melhoria nas condições de vida, não podemos negar, mas muitos valores foram destruídos e isso dói muito.
Escrevi sobre meu compadre João usando o sobrenome fictício de Coitado, mas na verdade Coitados foram todos os lavradores que no passado tinham apenas os braços como fonte de renda para sustentar sua família. Viviam numa miséria que dava pena.As vezes num caso de doença em seu lar , sem crédito, o caboclo endividado se sentia envergonhado com a situação, faltava–lhe coragem para solicitar a ajuda do patrão que em muitos casos também não dispunha de recursos para socorrer seu agregado. O meio de transporte mais rápido e eficaz se limitava ao cavalo.
Muitos não possuíam se quer uma muda de roupas mais descente para comparecer a um evento ou qualquer solenidade de cunho social ou religioso, se tornavam omissos sentido-se humilhados e excluídos.
Não havia nenhuma cobertura social, apenas as poucas organizações filantrópicas, a exemplo da sociedade vicentina que também dependia da caridade alheia para socorrer um pobre coitado, isso quando chegava ao conhecimento de seus dirigentes, por que muitos sofriam suas privações no anonimato e por vergonha não pediam socorro.
Trabalhar no meio de tantas dificuldades sem ao menos poder amenizar um pouco aquela situação era doloroso. Quando criaram o beneficio de aposentadoria para o homem do campo com apenas meio salário. Pode se vir o brilho da esperança nos olhos dos velhinhos. Inúmeros idosos que trabalhavam entristecidos obrigados pela circunstância voltaram a sorrir.Portadores de um nervosismo, mal interpretados e humilhados pelos jovens que não compreendiam que a causa era a miséria enfrentada pelo idoso ao longo da vida, eles respiraram aliviados.
Sinto-me gratificado por ter ajudado a uma serie de idosos providenciado seus documentos para requerer o beneficio. Gente analfabeta que se sentia excluída, mas de alma pura e de uma gratidão que me fazia emocionar presenciando sua alegria ao receberem aquela ninharia tão valiosa naquela difícil fase da vida.
João Góis era um idoso ranzinza ao extremo, casado com a Tereza, uma mulata com diferença de idade, que poderia perfeitamente ser sua neta. Ambos analfabetos. Residiam as margens do córrego d’água quente no extinto povoado do Picão. Sô João tentava de todas as formas esconder sua idade. Nunca passava de seus sessenta anos, embora o filho mais velho do seu primeiro casamento tivesse já sessenta e dois. Ficava nervoso quando contestavam sua idade, dizendo que queriam saber não era a idade do filho, e sim a dele. Muitos o desrespeitavam fazendo chacota do pobre velho no trabalho:
--Que Coisa estranha seu João nuca vi filho mais velho que o pai?
-- Assim se expressavam tirando sarro do ancião.
Pobre e desgastado pelo peso dos anos, já não rendia quase nada no trabalho, mas por piedade, a gente tolerava afinal ele tinha um enteado e dois filhos pequenos e teria que alimentá-los. Vez por outra sem nenhum motivo ele se dizia não estar satisfeito com a turma de colegas e afastava. De repente forçado pela necessidade vinha novamente pedindo arrego para trabalhar. Eu o aceitava devido sua situação e em respeito a sua idade.
Quando soube do seu direito a aposentadoria pediu-me ajuda.
--Tudo bem sô João terei imenso prazer em ajudá-lo, mas tem um pequeno detalhe, o senhor precisa provar que tem sessenta e cinco anos. Com apenas sessenta anos, a lei não dá esse direito!
-Ah ma ieu vô oiá meus papér qui to guardano incasa, as veis ieu to inganado cua minha idade.
No dia seguinte voltou com uma certidão de casamento embrulhada numa folha de jornal. Sô João contava oitenta e quatro anos e alguns meses.
O levei a Bom Despacho, e junto outro idoso, Zé Rosa, um ancião afro descendente, portador de uma hérnia enorme, que sobrevivia com muita dificuldade cortando lenha em carvoarias.
Conseguimos requerer os dois benefícios. Seis meses após os dois receberam o valor acumulado. Foi a primeira vez que ambos botaram a mão num valor tão significativo. Sô João voltou irradiante e quis saber se devia pagar-me pela ajuda:
-- Que isso sô João eu fiz apenas meu dever faça bom proveito do seu dinheirinho!
-Intonse ieu vô te dá essa foto cumo lembrança minha, e quero rezá procê inquntio ieu vivê!
Tudo bem sô João fico feliz com a foto e com sua gratidão, agora o senhor poderá descansar um pouco trabalhando menos.
Já o Zé Rosa bebeu até o ultimo centavo. Seu cavalinho foi desarreado por um comerciante, desanimado de esperar pelo dono se livrou do cabresto de tanto esfregar a cabeça numa estaca aonde o amarraram. Voltou para casa sem ele. Sua velha arrancou quase todos os cabelos da cabeça. Na semana seguinte ele pegou uma carona com um carvoeiro chegou a casa com os arreios nas costas. Sem dinheiro e numa ressaca dos diabos. Foi malhar machado para comprar um pouco de comida para que a velha que estava na casa vizinha pudesse se ajeitar em casa novamente. Um mês depois ao receber seu beneficio apareceu me agradecendo pela ajuda.
--- Como é seu Zé desta vez voltou sem beber?
-- Sim... Gato iscardado de água quente morre de medo d’água fria, ieu intusiasmei cuscobre, nunca tinha visto aqueltanto na mão, bibi uas e outra, quando dei prumim num tinha era mais nada de dinhero!Agora ieu aprindi a lição num faço isso mais nunca vô bebê só incasa memo!
Geraldinho do Engenho
Enviado por Geraldinho do Engenho em 23/12/2013
Reeditado em 04/02/2014
Código do texto: T4622960
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