Devaneios

Escuto o descanto melancólico dos camboeiros, o tremo de suas violas, ao longe, enquanto em vão, tento dormir defronte ao crepitar da fogueira cujas labaredas, assim como as chamas d’minha alma, a tempos se extinguiram, restando apenas o calor de brasas alaranjadas.

Saudade das reuniões, tertúlias, imitação de Byron, noitadas “satânicas” que tanto apavora os burgueses e hipócritas. Em voga a blasfêmia contra a vida e o amor. Desvarios, uma imitação de Bernardo Guimarães. Beberreira tal qual “Maneco de Azevedo”. Desejo louco de deixar o regaço da família, palestras à mesa à hora do chá, noites infindáveis de cinismo, conversadas até o romper d’alva, entre a fumaça de tabacos baratos ou mate sem açúcar, enrolado em papel de brochura pautado, na ausência de outrem, enquanto a tempestade estronda, fazendo a noite virar dia e as vielas virarem corredeiras.

Espírito de adolescente, sugado, esvaído, como a tenra planta que absorve a linfa para mais tarde desabrochar a talvez florinha. Insignificante.

Sentimento de usurpação, exílio forçado. Seria a tumba gélida, escura, úmida, silenciosa, solitária, o único habitat verdadeiramente meu? De onde jamais serei arrancado contra minha vontade?

Noites de taberna, burburinho, calorosos embates, objetivos comuns. Pensamentos certos, desejos corretos, época errada, lugar errado, viventes comuns, não desejados, herdados, sina, destino, carma, castigo.

Anseio em partir. Trilhar léguas ainda desconhecidas, sertões, serrados, ser espiado, na passagem pela corruptela, sob meia greta, olhos desconfiados, assustados, temerosos.

Pó de fina textura, colante tal qual sanguessuga, a grudar na japona, no gibão e nas alpargatas, peçonhentos como únicos seres viventes em centenas de jardas. Pindaíbas mortas, torrões, solo rachado, cenário desolador, terra esquecida pela divindade. Céu de intenso anil, nuvens passageiras, alvas como neve, gotas que insistem em não cair.

Quando se há vida ainda resta esperança. Seguirei a passos lentos, não há pressa quando não se sabe para onde se caminha. Não há ânsia de chegar quando não se tem ninguém a sua espera. Só lembranças. Madeixas longas, de negrume intenso, corpo faceiro, olhos grandes, pretos como a noite desestrelada, inquisidores, suplicantes por um sinal de correspondência ao amor ofertado. Rosto de marfim, talhado a mão, cuidadosamente, como ovo em pele, material sagrado. Montes salientes onde tantas vezes busquei repouso quando a fadiga, a desolação e o cansaço, surrupiaram de meu corpo as forças e o desejo de prosseguir.

Palavras ditas em silêncio; quando não se é preciso argumentos, nem palavras para se fazer compreender. Corpos nus, suados, ofegantes, extasiados. Pequenos gestos, olhares, toques na face. Aconchego, cafuné, entrega; vulnerabilidade total. O mundo deveria parar em certos momentos de nossa vida, para se tornarem eternos, imortais; quisera ter sido contemplado em um desses instantes por Michelangelo Buonnarroti, Donatello di Betto Bardi, Leonardo da Vinci ou Jacó Lucas, retratado em tela ou painel, caricaturado em óleo, acrílico ou mármore, registrado em arte, arquivo para posteridade. Lá Pietá moderna.

Sigo. E seguirei sempre. Com o estigma que jamais se apagará. Nem da mente, nem do corpo, nem da alma. Meu fardo, meu julgo, minha sina.

Que seja eterno.

Luciano de Assis
Enviado por Luciano de Assis em 08/09/2011
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