A inevitável queda

— Pai, o vovô já foi criança?

— Claro, meu filho! O vovô já foi criancinha igual a você; e foi bebezinho também.

— Nem parece. Ele é muito chato. Não deixa que eu brinque na varanda; reclama porque jogo bola no telhado... Reclama de tudo, pai.

— Pessoas mais velhas são assim mesma, filho. Elas perdem a paciência, se irritam mais fácil, não gostam de bagunça...

— Mas a vovó gosta de tudo isso. Ela não se importa com o que eu faço. A vovó, sim, já foi criança. Mas o vovô, não.

— Filho, todas as pessoas grandes já foram criança um dia. Brincavam, choravam, brigavam... tudo o que você faz hoje elas faziam também. Só que as pessoas envelhecem e mudam. Elas crescem e ficam diferentes. Passam a gostar de outras coisas.

— Que pena, né, pai!

Ele me olhou nos olhos, sorriu, e disparou essa:

— Mas o senhor não vai mudar não, né, pai?

Esta pergunta me pegou de surpresa. Não sabia o que responder, apesar de saber que a única resposta que ele esperava era que eu não mudaria. E foi o que disse. Ele sorriu de novo, me abraçou e saiu gritando:

— Oba!!! Meu pai não vai ficar velho.

Aquilo me doeu. Eu acabara de mentir pra meu filho. Mas logo me conformei, pois sabia que era o melhor a ser dito no momento, e sabia também que, um dia, quando eu ficasse velho, ele já teria crescido e mudado, como mudam todas as coisas.

Hoje, me vejo nas amarelas folhas de um passado já remoto as vagas lembranças de um menino franzino (correndo com os cavalos), sem preocupação, feito uma folha jogada ao vento, voando, apreciando a doce e passageira liberdade que a vida oferece. Enquanto escrevo, observo, através de minha janela, a chuva caindo e deslizando vidraça abaixo; a força da gravidade. Nada evita a queda. Até mesmo a mais simples gotinha de chuva escorrega janela abaixo em direção ao solo. O vento sopra forte agora; esse mesmo vento que soprava meus cabelos quando menino; Agora, eles estão ralos, os fios distantes uns dos outros, aqui e ali um espaço, feito clareiras no meio de uma floresta; mudaram de cor, de pretos para branco. Aqueles cabelos negros que refletiam toda a minha juventude hoje são apenas lembranças que também já amarelaram, que desceram feito as gotinhas que deslizam na minha vidraça. Eles também não resistiram à força da gravidade. Nada, nem ninguém, evita a queda.

Vejo as folhas dos pinheiros serem lançadas ao vento, rodopiando, sem destino. Aquele menino franzino dos tempos dourados também rodopia em minha memória. A sua idade fora lançada não para baixo, mas para frente — anos após anos. Olho na estante uma velha fotografia desbotada. Ainda retrata o sorriso da inocência, de um menino que também jamais sonhara em envelhecer e deixar pra trás os doces e inocentes dias de infância. Pego carona nas asas das recordações e deslizo feito uma jangada que singra os mares empurrada suavemente pelo vento, que se dirige rumo à imensidão do infinito oceano. Como estou diferente! Quem me dera ter ainda aquela pureza! Não que a pureza exista, não que a inocência também exista, mas a idade que ainda não conseguiu ver a diferença das coisas.

Já comi meu pedaço de maçã. O pecado do conhecimento já se apossou de mim. A maçã que Newton observou cair, descobrindo assim a Lei da Gravidade. A maçã que Eva comeu, obtendo assim o conhecimento. A maçã que eu comi: descobrindo que o tempo passou — que não há mais inocência — e que também devo colocar uma folha de parreira em minhas vergonhas. Não literalmente, mas em não ter tido coragem de admitir pra meu filho que eu também mudaria; ter me acovardado em não ter admitido pra mim mesmo que tudo passa.

A gotinha que caiu se uniu às outras e se fez um rio, correu para o mar, tornou-se ondas; depois evaporou e fez-se nuvem e caiu de novo. Nada evita a queda. O menino que se formou homem, que se tornou velho e que se unirá à terra. Eu, o menino; eu, o homem — evaporando, sumindo pouco a pouco, perdendo os movimentos, a flexibilidade, as rugas aparecendo assim como amarelam as folhas que estão caindo. É duro compreender, mas é necessário. Tudo tem o seu fim.

Meus dedos ficam imóveis sobre o teclado do meu computador. Agora leio minha memória já enferrujada pelo tempo e, em letras quase apagadas, vejo que nada escapa ao tempo. O tempo que torna o homem capaz de perceber que a vida não é nada mais do que uma simples passagem onde os homens se afogam em vaidades e se tornam escravos de sua própria ignorância — e que se recusa a acreditar que nada impede a inevitável queda.

Tomara que meu filho tenha entendido.

João Félix

João Félix
Enviado por João Félix em 21/01/2009
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