O MENDIGO

Na época eu fazia um treinamento no Centro Cirúrgico do Hospital Regional de Arapiraca. Como em todo complexo cirúrgico, havia a sala de procedimentos contaminados e fui chamada até lá.

Cheguei à sala e estava o cirurgião olhando para o paciente e este sentado na maca, cabisbaixo. Era um homem de rua, mendigo já velhinho... Não lembro a idade cronológica, mas aparentemente em torno de 65 ou mais. Tinha um aspecto físico deplorável, sujo, maltratado, malcheiroso, debilitado... Sem contar na dor que sentia devido ao problema no joelho, sequer conseguia deambular e não pronunciava uma palavra.

O médico fez um breve relato da situação e do procedimento que iríamos executar. O problema era que o senhorzinho não conseguia ficar na posição correta para a aplicação da anestesia rack (é aplicada entre dois discos da coluna que deve permanecer curvada para que o processo seja realizado).

Por mais que se explicasse o resultado era o mesmo, o homem não entendia. Não sei se o quadro advinha de surdez, debilidade mental ou senilidade... O fato é que ele nos olhava assustado e continuava lá, sentadinho na beirada da maca. Após várias tentativas, sem sucesso, não agüentei e resolvi usar a criatividade. Olhei bem para ele e disse:

- Vou abraçar o senhor e segurar firme no seu pescoço, não se preocupe que não vai cair... Pode segurar e se apoiar em mim.

Sem esperar sinal se havia entendido ou não, agarrei o velhinho, me pendurei no pescoço dele e assim consegui que ele ficasse com a coluna curvada para receber a anestesia. Tive um pouco de dificuldade... Eu o puxava para baixo e ele fazia força para se erguer, mas após alguns minutos de insistência e suor, conseguimos o intento.

Fiquei impressionada com a reação do senhor, ele simplesmente “apagou” após a anestesia e a respiração era como se estivesse sufocando... Assustada, insisti com o médico que o homem estava morrendo e ele, pacientemente, me disse:

“Olhe os aparelhos... Batimentos cardíacos, respiração, pressão... Tudo em ordem. Sabe o que é isto? Sossego... Imagine a dor que este homem sentiu nesses últimos tempos, certamente sequer dormia... Agora que não sente dor está num estado de sono profundo, vai ficar assim por horas... Isto é alívio, sossego. Não se preocupe, ele não vai morrer.”

O procedimento foi realizado com sucesso, o senhorzinho sempre dormindo profundamente... O único incômodo era aquele mau cheiro do velhinho... Estava entranhado na minha roupa e narinas (apesar da máscara).

No final de um procedimento cirúrgico a equipe se reúne, ali mesmo na sala de cirurgia, para fazer o apanhado da situação, isto serve, por exemplo, para detectar algum ponto falho durante a ação e daí serem tomadas as providências cabíveis, afinal todos são humanos, portanto, propensos a erros.

Neste caso a equipe era somente o médico e eu. Num procedimento deste tipo, o número de pessoas circulando no ambiente deve ser extremamente reduzido. É uma medida de segurança para evitar a disseminação das bactérias e contaminação dos demais ambientes.

Quando terminamos, o cirurgião me deu um abraço e disse:

“Você é uma grande mulher... Não é qualquer pessoa que tem coragem de fazer o que você fez para ajudar a um mendigo... Eu não teria coragem de me “agarrar assim com um velho deste”... Saiba que a realização da cirurgia só foi possível por conta da sua força e coragem, eu jamais conseguiria sozinho.” Parabéns e muito obrigado.”

Aquele dia está entre os mais gratificantes da minha vida... Não existe sensação mais sublime do que a de dar sua contribuição para salvar uma vida ou mesmo aliviar o sofrimento físico de um irmão...

Saí da sala, direto para o banheiro, tomei uma boa “chuveirada” e fui para casa. Ganhei o resto da tarde de folga por ter feito uma boa ação.