Um Conto de Um Outro Natal

“Então já é natal” pensou enquanto olhava a cidade amanhecer do 25º andar. Tinha acordado as 4:00 da madrugada para analisar e assinar as papeladas de costume do seu trabalho, geralmente o fazia sem se importar, mas era natal e por uma razão muito diferente de todas as outras pessoas o dia seria diferente. Havia decidido algo que só ele entenderia porque. Havia escrito uma carta que nem sabia se os destinatários iriam ler.

Fazia um ano que tinha saído de casa e visivelmente tinha conquistado tudo àquilo que almejava: um emprego de alta importância, sua própria firma, um status e tudo isso que todos querem. No começo até que ele se importava mais com tudo, mas depois por algum motivo que todos desconheciam cuidava das coisas só por cuidar. “É como uma criança que quando cansa do brinquedo só guarda no baú porque fora mandada” era o que todos os outros que o conheciam ou ao menos achavam isso diziam. Ele não via por esse lado e na verdade, ele nem os via – os outros para ele eram apenas algo que ele não gostava de pensar a respeito.

“Queridos pai e mãe;

Eu tentei - e isso não pode ser negado de forma alguma - ser algo que os orgulhasse, tentei não ser algo que me tornei. É muito compreensível que aceitar ou muito menos, apenas se conformar com certas situações seja de uma dificuldade só abrangente nos livros de física que papai tem guardado durante todos esses anos no porão. Mas eu, seu filho esperei mais. Esperei que amor que de alguma forma esvaiu-se do peito não só compreendesse ou aceitasse, mas sim amasse, porque amar sim é paternal.”

Saiu de casa, mas seu destino por mais incrível que parecesse não era o trabalho. Apenas saiu a procurar uma coragem que só alguém que morou nas ruas pode compreender. Uma coragem que se esconde em cada vala encardida, em cada noite mal dormida, uma coragem de quem sabe que a vida nem sempre sorri. Não a encontrou.

“Eu não quero que pensem que atribuo a decadência cumulativa de minha vida a vocês, não é isto, mas não posso deixar de afirmar que teria sido tudo bem mais fácil se ao menos tivesse recebido um sorriso na hora de partir. Teria me tornado, talvez, menos amargo, menos seco, menos algo que se apossou de mim.”

Ele se sentia estranho como um passarinho que saído de baixo das asas da mãe não sabe o mundo que o espera. Já havia sentido aquilo antes, mas em suma não gostava de se recordar. Ele nunca tinha reparado como a cidade era tão bela e majestosa vista de baixo. Andou mais ruas algumas sem reparar que ainda estava de pijamas apenas coberto por seu roupão de banho até ver-se refletido nos vidros de um posto de gasolina: magro, apático de olhos fundos e sem cor. Aquele era ele? Não! Faltava algo... Magro, apático de olhos fundos e sem amor. Agora sim, não faltava mais nada.

“Quando saí de casa aquela noite me senti como um gato que recém nascido de visão turva só vê os borrões das luzes, da rua e clama a presença de algo maternal. Andei por ruas, por bairros, por horas, por não saber aonde ir. Chegando a um posto de gasolina dormi em qualquer lugar ao menos tentei. Algo ali não me fazia bem e acreditem não era o cobertor de estrelas (que por sinal eram a única coisa que me sorria naquela noite) ou o asfalto rude que me acolhia como se fosse eu um faquir. Tentei não pensar no que havia ocorrido a algumas horas atrás ou no que me esperaria dali para frente entre as estrelas e o chão. Não pude evitar, chorei. Sinceramente? Não sei dizer se isso me tornou mais ou menos humano, mais ou menos forte, mais ou menos eu, contudo e, no entanto posso afirmar que a mudança começou ali.”

Parou no posto para comprar cigarros – quando na verdade o que ele queria era poder escolher outra vida assim como escolhia os cigarros na prateleira – e ao retirar a carteira do bolso do roupão viu-se cair ao chão. Um soldado de madeira que tal qual ele faltava um peça. Do soldadinho um braço, dele uma vida inteira. Já havia cansado de ver-se ali tão pequeno e frágil, mas simplesmente não conseguia desfazer-se do pequeno brinquedo... Brinquedo, era assim que se sentia; como algo que se pode montar e trocar as peças. Era assim que se sentia não como era. Acho que ele nunca entendeu que não se pode fazer um coração com chips e programadores, que não se pode escolher o amor.

“Alguns dias e caronas e choros depois cheguei a algum lugar que por nome não se conhecia. Passei dias morando por ali e acolá, migrando entre uma calçada encardida de outros corpos e um velho abrigo que vivia lotado. Alguns meses já haviam se passado e um dia catando meus últimos centavos achei, entre o fundo e o forro da mala o soldadinho de madeira que costumava pendurar na arvore de natal. Não consegui me lembrar o porquê de ter pegado aquilo, se ali estava representado o modelo de tudo o que vocês queriam para mim: corajoso, fiel, batalhador, estudioso, honesto, extrovertido, viril... E claro! Feito de madeira! Nunca entendi como alguém poderia ser tudo em tão pouca carne, em tão pouco tempo com tão pouca humanidade.”

Saindo do posto traçara um rumo: queria ir aquela velha torre abandonada onde se abrigara uma vez, pelo que se lembrava lá era o lugar mais pacificador da cidade. O lugar era imundo e mesmo assim de uma paz límpida algo incomum naquele inferno de cidade. Chegando ao topo pôde ver ouvir e cheirar a cidade pela primeira vez desde que havia se trancado em uma vida de trabalho zumbi. Quando tudo vai mal todos precisam de algo ou alguém para culpar. Deitado ao seu lado todas as manhãs, coberto apenas pelo lençol que eles tinham comprado juntos em uma loja qualquer estava o seu alguém. O alguém que– apesar de todas as proibições – ele amava desesperadamente com a dor quem sabe que não pode amar. Mas ao final sempre soube que não se tratava dele, mas sim do artigo “o” que definia seu amor.

“Mas nem tudo foi uma queda livre, pouco tempo depois de ter achado o soldadinho e ter passado algum tempo refletindo a respeito do significado do soldadinho para mim minha vida mudou. Decidi destruir os muros invisíveis que eu vim construindo entre mim e o meu eu verdadeiro. De repente o céu abria-se para mim arrumei um emprego, – e fez-me gosto contá-los a novidade – logo já tinha a onde morar e conhecia pessoas muito interessantes. A senhora estava certa sair de casa no natal faria bem a mim. Em meu auge encontrei-o e não pude ficar sem ele um momento que fosse – e fez-me gosto preparar a noticia. Por uma fração de segundo pensei que também os agradaria. Errei. Alguma peça do soldado fora perdida no frete.”

Parado ali ao topo da cidade o seu coração se acalmava aos poucos. Ele respirava com dificuldade, como um peixe que agoniza em uma poça de lama rasa. Sua poça, seus olhos. Foi inevitável. Pensou em tudo; seus pais, sua trajetória, sua casa, seu amor, sua falta de coragem, sua peça que se foi. Mesmo assim não conseguiu achar-se em nem um desses pensamentos todos eram um pouco dele. Era um espelho que quebrados em varias partes já não reflete mais direito, mas a única que não mais brilhava era seu amor. Perguntou-se varias e varias vezes ‘se é to errado por que podemos amar?’ ‘Por que oferecer se a vontade e de que não o tomem?’ Por que amar?’

“Então, quando dei por mim – ao contrário do que eu imaginava – tudo estava exatamente no seu lugar minhas propriedades, minhas empresas, minha vida. Tudo menos eu, mas como poderia minha vida se vivida sem mim? Não consigo me lembrar de uma só vez que não desejei um resquício do menino que a muito eu já não era. Ao poucos fui fazendo tudo menos viver e quando tive tempo para abrir os olhos já nem me via mais no espelho tudo que eu via era uma versão distorcida do que vocês quiseram para mim.”

As perguntas já nem o importavam mais afinal tinha passado o dia todo naquela torre procurando respostas e não as encontrava. Agora o sol se punha. Ele precisava ver com mais clareza. Levantou-se e pois a beira, ventava forte aquele final de tarde e ele desejava que o vento levasse seu problemas embora o que claro não aconteceu. Suspirou uns dois segundos mais e abriu os braços agora ele podia voar deixava o vento embalar seu corpo entorpencendo-o e ainda assim não era o bastante, então abriu os olhos e os pés tirou do chão, agora sim era totalmente livre e naquele instante nem um dos seus pensamentos importavam mais, em segundos de queda livre seus problemas desapareceram e tudo que restou na calçada fora um soldadinho de madeira que não mais seria pendurado.

“Eu não poderia deixar que essa abominação que de alguma forma eu me tornei abrisse os olhos mais uma vez. Desculpem-me. Eu já não posso mais ser o que me tornei.

(Santiago Belmont)