O Açor e o Urubu Mané

O Açor e o Urubu Mané

Ana Esther

Região da Beira Alta, Portugal, outono de 2007.

- Brrrr... o friozinho está chegando!

Desde os primeiros sinais da chegada do outono o Açor já começava a reclamar do friozinho. Fazia isso todos os anos. Este ano, em particular, o inverno prometia ser de frio extremo. Tal perspectiva estava dando nos nervos do Açor. Sempre se prometera férias de inverno em algum lugar paradisíaco, com praias ensolaradas, árvores com sombras acolhedoras, comidinhas suculentas... Mas no final das contas acabava desistindo e ficando mesmo no primeiro lugar onde as temperaturas fossem ‘suportáveis’.

Talvez devido a alguma disfunção climática ou a sua idade, o fato é que o Açor não estava agüentando aquele frio jamais visto. Começou a preparar a bagagem para a sua viagem anual de férias de inverno. Sentiu no coração uma nostalgia, um desconforto. Todo o ano a mesma coisa. Estava entediado. Olhou sua maleta e pensou melhor. Já que iria se dar ao trabalho árduo de fazer uma viagem por que não realizar, finalmente, o seu sonho?!

- Brasil! Vou para Florianópolis visitar alguns parentes que tenho por lá!

Determinado, o Açor trocou de mala e pegou uma um pouco maior. Encheu-se de coragem, olhou o solo nativo com orgulho e alçou vôo. Voou, voou, voou. A viagem parecia interminável. Xingava-se por não tê-la feito antes quando era um jovem açorzinho, fortudo e destemido. Não que fosse velho agora mas atingira uma idade em que seu poder de crítica era mais apurado e despojado de paixões. Questionava-se se realmente a temporada naquela ilha paradisíaca serviria para compensar uma viagem tão longa e cheia de atribulações como esta. Seu consolo era que encontraria lá seus parentes, descendentes de açores corajosos que há muitos e muitos anos atrás haviam migrado para o Brasil.

Brasil, primavera-verão de 2007.

Chegou. Exausto e botando os bofes pela boca. E aquela confusão em São Paulo? Distribuição de linhas domésticas de vôos para pássaros? Quanta desconsideração e burocracia impostas aos pobres pássaros indefesos. Só podiam voar nas vias mais rápidas segundo a procedência, nível econômico, status, raça. Sorte que ele pertencia a Comunidade Européia. Num instante o liberaram para voar em uma linha de primeira, só sua. Isso não o impediu, no entanto, de enxergar aqueles maltratados anús voando todos aglomerados, sem espaço e bem ao nível da forte poluição. Entristeceu.

A chegada na Ilha de Santa Catarina foi tranqüila. Já era noitinha e o Açor, cansado, acomodou-se numa praia que nem sabia qual era. Uma árvore o acolheu sem maiores tumultos por parte dos outros hóspedes. Ali, o Açor esticou o corpo dolorido, arrumou seu cantinho e caiu num sono profundo. Não teve forças nem sequer para indagar sobre seus parentes. Deixaria os planos para o dia seguinte, quando já estivesse refeito da viagem e da diferença de fuso horário.

Nem bem amanhecera e o Açor, ainda muito sonolento, foi rudemente despertado por umas asas enormes, desajeitadas, que o empurravam. Quase caiu do galho. Seus olhos fitaram um pássaro preto com um colarinho arrepiado em torno do pescoço. Assustou-se, que bicho seria aquele? Nunca havia encontrado pela frente um pássaro tão temível e ameaçador. Tentava livrar-se das enormes penas que o pinicavam mas não conseguia. O pássaro virou-se de lado e deu com o Açor que tremia todo, seu coração batia descompassadamente.

- Oi, nanico! És novo por estas bandas, logo se vê! – O temível pássaro sorriu.

- Eu... novo por aqui? Sim, claro. Mas deve haver muitos parentes meus morando aqui. – O Açor respondeu com receio de enfurecer o enorme pássaro.

- Ói, ói, ói! Nunca vi ninguém parecido contigo aqui... Que passarinho tu és?

- Eu sou um Açor, estou chegando lá de Portugal! – Maldizendo-se por ter feito a viagem, o Açor imaginou-se de volta ao lar, num lugar bem seguro.

- Nossa, muito prazer! Mas de português eu só conheci os descendentes açorianos de gente e não de pássaros... Oh, eu sou o Urubu Mané. Mané de Manezinho da Ilha, com muito orgulho! Posso ser o teu guia aqui em Florianópolis, que tal?

- Bem... eu... eu...

- É isso aí, cara! Vou te levar pela ilha inteira, não há guia turístico melhor do que eu! – O Urubu Mané arrepiou-se todo, sacudindo-se de contentamento.

O Açor, mais aliviado quando soube que o novo amigo era um urubu, aceitou a oferta. Por sugestão do Urubu Mané os dois sobrevoaram a ilha toda para que o Açor tivesse uma visão geral da região que estava visitando. Lá do alto, o que o Açor enxergava deixou-o embevecido. Realmente estava no paraíso! Mal podia esperar para visitar cada praia e outros recantos da ilha com calma. Teria tempo para tudo. O Urubu Mané o convidou para repousarem na praia do Pântano do Sul, uma de suas favoritas.

À sombra de uma árvore, os dois conversaram bastante. O Açor percebeu a inteligência do Urubu Mané e então desandou a fazer mil e uma perguntas para satisfazer sua curiosidade. Os descendentes de açorianos que habitavam a ilha, segundo o Urubu Mané já estavam muito descaracterizados, perderam-se de sua cultura, sucumbiram aos costumes impostos pela nova onda globalizada. Mas até que ainda existem uns heróis que lutam para preservar as tradições, tentar repassar algo para as novas gerações... uma missão muito difícil. O Açor morreu de pena, seu bico caiu de tristeza. Contudo, havia mais tragédias pela frente. O Urubu Mané apontou com suas asas a praia do Pântano do Sul.

-Olha só que praia encantadora... mas os homens se esforçam por poluir tudo, pescar tudo, modificar tudo. Nunca estão contentes com o que vêem. Invadem cada vez mais o nosso habitat! Havia um número muito maior dos meus parentes urubus e outras aves... Mas a gente não sabe mais para onde ir. Temos que nos acomodar em tetos de casas, postes, a comida está cada vez mais escassa... Também estão acabando com os peixes de tanto que os navios grandes já pescaram...

- Mas quanta iniqüidade, Urubu Mané. Pelo que me contas estão destruindo toda a beleza natural daqui...

- Ah, vem comigo! Eu vou te levar a um outro lugar!

E os dois voaram para os lados da Lagoa da Conceição. A visão panorâmica que tinham permitia aos pássaros perceber a região como um todo interligado. O Açor nem sabia dizer qual lugar era o mais bonito. Seus olhinhos brilhavam. Era um privilégio inigualável poder admirar aquelas paisagens. Morros com árvores, cômoros de areia, o mar de intenso azul, rochas, plantas, a lagoa...!

- Urubu Mané, como tu tens sorte de morar em Floripa... me dá uma vontade de ficar aqui para sempre! – O Açor bateu as asinhas e inflou o peito cheio de alegria.

- Sei... tu e o resto do mundo! Todos que vêm para cá não querem mais ir embora... Mas a ilha é pequena, não pode abrigar a todos. Bem, não sem começar a destruir toda a beleza que atraiu o pessoal... Tu estás tão deslumbrado com as belezas naturais que nem percebeste os engarrafamentos quilométricos dos carros que abarrotam as ruas... ainda nem viste o problema do esgoto desembocando na lagoa e também no mar. É, Açor, a nossa Lagoa da Conceição está poluída e está secando... Qualquer hora ela desaparece de vez!

- Não! Não é possível?!- O Açor derrubou lágrimas, consternado.

- Vamos voar um pouco mais baixinho, vem comigo!

Lá se tocou o Açor com o seu guia turístico pessimista. Os dois voaram pelos bairros da ilha. Depois de tantas preciosidades o Açor se deparou com edifícios e mais edifícios, ruas, estradas, uns prédios horrorosos subindo e descendo morros, ao longo das avenidas, quase dentro do mar. Ele até conseguiu vislumbrar um restinho de mangue e um riozinho muito do mixuruca todo encanado com cimento. Ficou tão triste que logo cansou de voar. Resolveram pousar na Ponte Hercílio Luz. Era hora do pique.

- Urubu Mané! Urubu Mané! – O Açor piou com todas suas forças para que o amigo o escutasse. – O que é que está acontecendo aqui? Que loucura!

- Oh, Açor! Aquelas são as outras pontes que ligam a ilha até o continente. Nesse horário elas enchem de tal forma que ninguém consegue se mexer... aí o pessoal se enraivece... soltam cada palavrão escabroso! Nem te conto.

- Vamos embora daqui, por favor, Urubu Mané. Isso me deixa estressado. E eu vim para cá em férias, quero descansar... Vamos almoçar num lugar bonito!

- Deixa comigo! Vou te levar para Canasvieiras. É uma pérola!

Ao chegarem em Canasvieiras o Açor se entusiasmou novamente. Contudo, quando pousaram na árvore-restaurante notaram que ela estava lotada. Os garçons nem davam bola para eles. Ficaram lá mofando até que finalmente foram atendidos por uma garçonete com cara de sono e de poucos amigos. Quando ela trouxe o pedido deles foi um deus-nos-acuda... A comida fria e a bebida quente... e quando foram pagar? O Açor deixou os olhos da cara como pagamento.

- Vamos embora daqui, Urubu Mané! Cansei. – O Açor implorou.

Saíram dali e foram descansar numa praia limpa e sem gente, lá para as bandas do Santinho. O Açor aproveitou para desabafar com o novo amigo. O sol brilhava intensamente, o mar com seu barulhinho descansativo, a brisa gentil refrescava os dois pássaros. Isso é que era vida! Essa era a vida que o Açor pedira a Deus. Para isso é que ele enfrentara aquela longa viagem.

-Sabe, Urubu Mané, eu vou voltar para o meu lar... Fiquei muito triste com tudo o que tu me mostraste aqui. O pessoal está destruindo este paraíso com uma rapidez impressionante!

- Puxa, Açor, não foi esta a minha intenção... Eu só queria que tu soubesses das atrocidades por detrás de tanta beleza... – Comentou o Urubu Mané com pena de perder um amiguinho tão querido.

-Não fica triste, Urubu Mané! Estou indo embora logo porque vou dar um jeito de ajudar vocês a impedirem a destruição total! Vou formar um grupo com todos os meus amigos do mundo inteiro. Temos que fazer algo enquanto é tempo. Florianópolis é preciosa demais para sumir desta maneira. Mas eu preciso da tua ajuda, posso contar contigo?

- Viva o meu amigo Açor! Eu sabia que era o meu dia de sorte quando te conheci! – Vibrou o Urubu Mané ao ver que finalmente alguém prestara atenção nele. Encontrara a salvação que pedira aos céus.

O Açor alçou vôo com uma missão de vida ou morte na bagagem. O Urubu Mané retornou a sua praia de origem, a Barra da Lagoa, rapidinho. Ele não podia perder tempo... tinha que encontrar outros pássaros turistas para repetir o que vinha fazendo: conquistar mais amigos que o ajudassem a salvar a vida da Ilha de Santa Catarina.

*Este meu conto foi escrito em 2007.