Carlitos - Uma homenagem a Charles Chaplin

Rosto pálido, olhos meigos, miúdos e de uma tristeza comovente, mãos trêmulas, copo vazio de uísque sobre a mesa, imagem distorcida no grande espelho a sua frente, camarim deserto.

Já se fora o tempo em que pessoas se aglomeravam à porta, suplicantes por um fio de atenção, rabiscos em um pequeno pedaço de papel amarrotado.

Pouco a pouco, o personagem ia sendo desconfigurado, desmontando, esquartejado, peça por peça. Ia sendo retirado sem piedade, arrancado da carne que o concebera, despojado de suas vestes: pobres; restos encontrados na coxia, sobras descartadas de personagens que outrora tivera sobre si os holofotes. Casaca apertada, calças largas, juntados a contra gosto, unidas novamente por pura falta de opção. Contraste, desalinho, quase uma combinação ridícula. Acessórios ainda menos compatíveis: chapéu-coco, pequeno para uma cabeça tão grande, varinha de bambu, desgastada, pequena, ideal para o corpo franzino, Botinas velhas, furadas, colossais para pés pequenos. O toque final: bigode postiço, sujo, mal cheiroso. Sob quantas narinas já estivera?

Fora o melhor que pudera fazer com tão poucas opções. Não acreditara no inicio que “aquilo” pudesse causar alguma impressão, ser aceito como figura teatral, ganhar o palco, receber os louros da glória, os aplausos.

Enganara-se profundamente. Tornara-se um ícone, uma sensação. Faziam concurso e premiavam quem mais se parecesse com ele. Participou certa vez, anonimamente, de um desses concursos: ficou em segundo lugar.

Era popular, conhecido até mesmo em outras nações, mas não se sentia feliz. O “vagabundo”, seu personagem, lhe dera mais do que sonhara ter: fama, sucesso, dinheiro, usurpara-lhe a identidade.

Teatro vazio, silêncio, solidão, a última luz da ribalta já se apagara. Fantasia despida; travestido de Spencer, medíocre projeto de ator, desconhecido sem o hipocorístico Carlitos.

Personagem hiperbólico, emudecido de nascença, crítico, ácido, ferino, um escudo. Com ele podia enxovalhar autoridades que usavam como latrina o mundo e o povo que governava.

Mais um uísque, seria o último, não queria acabar como o pai. Pegou um pedaço de papel sobre a mesa, rabiscou algumas palavras, leu silenciosamente:

“vidas que se acabam a sorrir,

Luzes que se apagam, nada mais,

É sonhar em vão, tentar aos outros iludir,

Se o que se foi, prá nós não voltará jamais,

Para que chorar o que passou,

Lamentar perdidas ilusões,

Se o ideal que sempre nos acalentou

Renascerá, em outros corações”.

Mais palavras fúteis, jogadas ao vento, morreriam e cairiam no esquecimento, assim como ele em pouco tempo.

Lembrou-se da mãe. Sem ela, talvez jamais teria se saído bem na pantomima. Ela possuía a mímica mais notável que já haverá visto. Às vezes, ficava durante horas à janela, olhando para a rua e reproduzindo com as mãos, os olhos e a expressão de sua fisionomia, tudo que se passava lá em baixo. E foi observando-a assim que aprendera, não somente a traduzir as emoções com a mão e o rosto, mas, sobretudo, a estudar o homem, seus pensamentos, emoções e caráter.

Lembrou-se do filho, era incompreensível, como ele pudera se matar? Não conhecera o sofrimento de verdade, não tivera um pai alcoólatra, não vira a mãe enlouquecer, não tinha motivos para tirar a própria vida. Quem mais sofrera com tudo isso fora sua ex-mulher, Lita Grey.

Completara oitenta e oito anos, estava feliz por tudo que fizera, mas deprimido pela certeza de que poderia ter feito muito mais se não fosse tão medíocre.

Desligou a luz do camarim e dirigiu-se à saída, era o último a deixar o teatro. Ia para casa. O eco do silêncio e seus fantasmas pessoais o aguardavam. Era Natal, talvez o último de sua vida. Estava frio em Londres àquela hora, ruas desertas e escuras. Caminhou claudicante ela calçada deserta.

Seria um longo caminho até em casa.

Luciano de Assis
Enviado por Luciano de Assis em 10/09/2011
Reeditado em 14/09/2011
Código do texto: T3211129
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