O homem olhando o mar

Sentado ali naquele ancoradouro, velho como as lembranças que agora povoavam sua memória, ele pode ver ao longe o pequeno barco que se aproximava. Ali, naquele mesmo lugar, naquele chão de tábuas, hoje já carcomidas, ele passara grande parte de sua infância e juventude. Sempre terminava ali, sentado como agora, depois de ziguezaguear pelos bares, festas, teatros e boates, abertas até altas horas da madrugada.

Hoje, cabelos brancos, pele enrugada, mãos trêmulas, olhos miúdos e cansados, que quase já não enxergavam mais, não tinha mais a vitalidade e os anseios da juventude de outrora, a vida boêmia ficara em algum lugar do passado, mas aquele som, aquele cheiro, ah isso nunca sairia de sua memória, estava impregnado em sua alma.

Muitas vezes vira o sol nascer por trás das águas agitadas, quando a maré era obrigada a recuar para dar lugar a areia branca das praias. Via chegar os primeiros catadores dos tesouros esquecidos ou dispensados na noite anterior. Era o sinal de que a noite terminara e que ele devia seguir seu curso.

Adorava amanhecer sentado ali, sozinho, escutando o cantar das ondas, o gemer gracioso do mar a desabafar suas mágoas. Ele também tinha as suas, era uma troca, duas almas enormes trocando entre si suas mazelas. Ah o mar. Nunca encontrara em suas andanças um companheiro melhor, mais fiel, mais sensato ou mais bondoso.

Naquele momento, ao rever o amigo de toda vida ele tinha uma certeza: ambos estavam naquelas praias fazia muito tempo, mas o mar era um incansável, que os anos não tiraram nem jamais tirariam a bravura, a robustez. Ele por sua vez já se esgotara, queria partir, estava velho demais, cansado demais. Chega a hora na vida de um homem que ele precisa reconhecer que já dera tudo que poderia dar, já contribuíra com a sua parcela.

Lembrou-se naquele instante de uma antiga lenda contada por pescadores: Contava-se que o mar era justo e dava àqueles que dele necessitassem tudo o que precisavam, mas tragava e escondia bem no fundo de seu ser todos àqueles que o desafiassem, não se importando com o tamanho ou opulência do desafiador. Não se considerava um todo, crédulo em superstições, mas de uma coisa tinha certeza, fosse lá verdade ou não, e acreditava na alma do mar. Podia senti-la.

Levantou-se cambaleante, desceu a barranca e caminhou descalço pela areia da praia. Sentia a maciez e o calor dos finos e infinitos grãos em contato com a pele fina e enrugada contrastando com a frieza das primeiras marolas a tocar-lhe os pés. Um prazer indescritível, reconfortante.

Retirou da algibeira um pequeno brasão em ouro maciço que o acompanhava desde criança, herança de seu bisavô materno. Olhou as letras desenhadas: Honneur et courage. Nunca soubera o que queria dizer, mas entendia serem aquelas letras, um lema de seus ancestrais.

Contemplou aquele pequeno símbolo por alguns minutos, depois o atirou às águas. Era o seu presente ao velho amigo, desejava muito que ele não o devolvesse à praia na manhã seguinte.

Depois de um último aceno, caminhou claudicante, apoiado em sua velha bengala na direção do calçadão onde moças e rapazes em roupas esportivas, torneavam seus corpos em uma corrida matinal. Sentiu uma pontada de inveja. Sentia os pés pesados, as pernas fracas e tinha consciência de que era a última vez que estaria ali. Não olhou para trás, não desejava mostrar sua fraqueza diante do amigo imortal. Não queria que ele visse que seus olhos marejavam.

Para onde ia, sabia que seus olhos não mais tornariam a ver o céu azul unindo-se ao longe ao verde mar, nem jamais voltaria a ouvir o som das ondas chocando-se aos recifes.

Subiu com certa dificuldade os degraus do quebra-mar, avistou parado a poucos metros o furgão branco, sem janelas, que o levaria a seu destino, sua nova morada.

Nele se lia: Lar dos Artistas.

Luciano de Assis
Enviado por Luciano de Assis em 14/02/2012
Reeditado em 14/02/2012
Código do texto: T3499368
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