A alienada

Há alguns anos conheci uma mulher de nome Maria Helena, mas todos a chamavam apenas por Helena.

Era uma mulher inteligente, politizada, muito preocupada com as questões sociais em nosso país. Ela nunca se conformou com as injustiças, com os desgovernos, com a corrupção, com as condições precárias das escolas públicas, com os baixos salários dos profissionais da educação e dos trabalhadores em geral, com o descaso com a saúde, com a falência dos transportes, com a falta de moradia e com tantos outros problemas pelos quais passava a população brasileira (e continua passando).

Helena estudava Ciências Sociais. Sua faculdade pertencia à mesma Fundação a qual pertencia o colégio em que eu trabalhava como professora de Ensino Médio. Nós nos conhecemos no auditório da faculdade no dia de uma palestra que, se bem me recordo, era sobre Políticas Públicas de Saúde. Estávamos sentadas ao lado uma da outra e, de vez em quando, ela fazia um comentário, na maioria das vezes discordando do que o palestrante dizia. No final do evento, Helena me convidou para irmos à cantina tomar um café. Durante o cafezinho fomos descobrindo muitas coisas em comum, inclusive, que morávamos no mesmo bairro. Eu bem que me lembrava de já tê-la visto por lá, mas nunca houve sequer um bom dia entre nós. Desse dia em diante, porém, passamos a ir juntas para casa depois das aulas.

Nossa amizade foi crescendo e Helena passou a frequentar minha casa. Umas das coisas que mais gostávamos de conversar era sobre livros. Ela tinha muitos livros e, de vez em quando me emprestava algum. Sempre gostei muito de ler, mas quase não tinha tempo. Trabalhava na parte da manhã e à noite e, durante a tarde, tinha que dar conta das tarefas domésticas. Nessa época, meus filhos eram pequenos e eu vivia assoberbada com o serviço de casa e as coisas da escola. Aos domingos é que fazia questão de ler os jornais e, à tarde, procurava ler algum livro, ou pelo menos, começava, mas terminar é que era o problema. Às vezes ficava meses na mesma página. Quando estava num capítulo interessante, era menino gritando, chorando, correndo, brigando, pedindo alguma coisa para comer. Criar três guris não é fácil!

Eu e Helena tínhamos algumas ideias parecidas, embora ela fosse bem mais radical do que eu em alguns aspectos. Ela, uma socialista convicta, eu, uma simpatizante do socialismo, mas muito mais para liberal. Algumas vezes divergíamos sobre certas questões, mas, de um modo geral, chegávamos a um consenso.

Muitas vezes ela tentou me “catequizar” oferecendo leituras de textos marxistas ou obras de filósofos que seguiam a linha do marxismo. Lembro-me de um livro de Karel Kosik – “Dialética do concreto” – que li e não entendi, e Helena queria que eu lesse de novo. Segundo ela, seria preciso ler mais de uma vez para absorver a essência do pensamento do filósofo. Não li. Aí ela veio com o “Veias abertas da América Latina” de Eduardo Galeano, me dizendo que esse eu entenderia e, por meio dele, compreenderia seus motivos para lutar contra o Capitalismo. Confesso que o livro me impressionou. Mas eu não tinha muito interesse por romances políticos nessa época, estava mais para os melodramáticos. E, muitas vezes, sentia-me cansada de ouvir sempre os mesmos discursos: era classe dominante pra cá, classe trabalhadora pra lá, mais valia, proletariado, ideologia. Ideologia para mim era a música do Cazuza que bastava ouvir, não prestava muito atenção no sentido da letra.

Helena dizia que às vezes eu parecia a Filó, uma amiga que ela teve quando morou em Brasília, alguns anos antes de morar em minha cidade. “A Filó era uma alienada!”, dizia Helena. Filó não entendia de política e não fazia questão de entender. Era uma perua, classe média, cuja preocupação era com a moda, com as festas, com as baladas, com as pessoas que estavam na mídia, com produtos importados (num tempo de dólar altíssimo) como perfumes, maquiagem e hidratantes, com suas jóias caríssimas, enfim, com seu mundo artificial cheio de frivolidades. Filó achava que o mundo era cor de rosa, que não existia fome, pobreza, ignorância, insegurança, poluição. E, se havia, não era problema dela. Já que não podia mudar as coisas preferia não pensar nelas. Os governantes é que cuidassem de todos esses problemas. Ela já pagava impostos, considerava que sua parte já tinha sido feita. Para ela tudo era festa, a vida era uma festa. E Helena veio me comparar a uma criatura dessas?! Ah, não gostei! Mas Helena se desculpou e ficou tudo bem.

Entretanto, ela não se conformava por eu não querer participar mais ativa e diretamente da política e fazia de tudo para me carregar para reuniões, muitas em sua casa, onde um grupo de pessoas filiadas a um certo partido, discutiam sobre temas políticos. Fui a umas duas reuniões e o povo lá queria que eu me filiasse a todo custo.

Certa vez, Helena me convidou para ir com ela a Juiz de Fora. Sua filha cursava a universidade lá e ela me disse que faria uma visita à menina. Aceitei o convite, pois era uma oportunidade de passear um pouquinho, de quebrar minha rotina de trabalho e de cuidar de crianças. Estava mesmo precisando relaxar. Quando chegamos à universidade, uma “coincidência”: Aloizio Mercadante faria uma palestra exatamente naquele dia. Acho que, nesse ano, que era ano de eleições, ele era candidato a Deputado Federal. Olha a minha situação: depois da palestra, todos os presentes (é óbvio que eram militantes do partido) foram para o centro da cidade fazer uma manifestação. Quando me dei conta, estava em plena Halfeld, no meio daquela gente toda (devia ter umas duzentas pessoas), com uma estrelinha vermelha no peito, gritando “O povo unido, jamais será vencido!”. Pior é ter de admitir que eu gostei da coisa. Aquele clima me contagiou. Aquele sentimento nacionalista cresceu dentro de mim e eu sentia que, junto com aquelas pessoas, mudaria o rumo das coisas a partir de novembro daquele ano.

Na viagem de volta para nossa cidade, o assunto era a palestra, a inteligência e competência do palestrante, a passeata, o futuro do país nas mãos de um partido de esquerda. Helena estava feliz por acreditar que, finalmente, havia conseguido arrastar mais uma militante para o “seu” partido. Não foi bem assim. Está certo que me deixei envolver pelo clima, pela excitação do momento, mas, depois que passou o “efeito da droga”, voltei a ser o que sempre fui: uma simples simpatizante da esquerda, não necessariamente desse partido. Helena não desistiu fácil, continuou tentando “fazer minha cabeça”, mas, definitivamente, eu não quis compromisso com aquele nem com outro partido. E mais uma vez ela me disse que eu parecia a Filó. Pior, disse que a Filó, pelo menos, era uma alienada assumida. Já eu, ficava em cima do muro, não tinha firmeza de opinião, e que ela sabia que, quando chegasse o momento, eu me jogaria para o lado que estivesse ganhando. Helena conseguiu me ofender profundamente, de modo que eu me afastei dela. Não rompemos a amizade, mas passei a evitá-la para não haver mais confrontos.

Meses depois, vieram as eleições. Em 15 de novembro de 1989, Fernando Collor foi eleito Presidente do Brasil, fazendo cair por terra o sonho de Helena de ver o Lula na presidência.

Em 1994, nova derrota de Lula nas urnas, dessa vez, para Fernando Henrique Cardoso que governou o país durante dois mandatos.

Em 2002, finalmente, Lula chegou à presidência e, assim, Helena viu realizado o sonho de ter um presidente representante da classe operária, de um partido de esquerda, de perfil popular.

Não demorou muito, o sonho começou a se transformar em pesadelo. Começaram a surgir escândalos atrás de escândalos, CPI disso, CPI daquilo e os colaboradores do Governo foram caindo um a um. Os ídolos de Helena, os homens que mudariam a realidade vergonhosa do país, foram desmascarados e obrigados a deixar seus cargos de Ministros, Secretários, Presidentes de Estatais. Aqueles em quem Helena mais confiava foram os protagonistas dos maiores escândalos: José Dirceu, Antonio Palocci, José Genoíno, Luiz Gushiken, João Paulo Cunha, etc. O tal do Mensalão foi o primeiro de uma série de episódios que, pouco a pouco, foram derrubando as convicções de uma mulher que passou a vida defendendo os ideais socialistas.

Lula ainda conseguiu ser reeleito em 2006 e elegeu sua sucessora, a Presidente Dilma, em 2010, mas isso já não tinha a menor importância para Helena. Quando Lula foi reeleito, ela não estava mais filiada ao PT e a nenhum outro partido. Deixou a militância, os discursos marxistas, a turma dos radicalistas e passou a ignorar as notícias que vinham do Planalto.

Um dia encontrei com Helena num shopping. Fazia muito tempo que não nos víamos então resolvemos parar numa cafeteria para tomar um cappuccino e conversar. Durante a conversa saiu assunto de política. Eu não quis tripudiar, gozar com a cara dela por tudo o que a mídia não parava de exibir: a lama em que estavam atolados o governo, seus assessores, seus aliados, seus patrocinadores, enfim, todos que, direta ou indiretamente, estavam sujos dos pés até a cabeça.

Mas, para minha surpresa, Helena foi quem disse em tom jocoso:

- Feliz era Filó! Com seu jeito Barbie de ser, vivendo num mundinho cor de rosa, ela se isentou de passar pelo vexame de ter de pedir desculpas às pessoas que foram convencidas a acreditar num partido corrupto, indecente e imoral. O PT não é o Partido dos Trabalhadores e sim o Partido dos Traidores. Agora sou uma mulher alienada. E viva a alienação!

Jorgenete Coelho.

Jorgenete Pereira Coelho
Enviado por Jorgenete Pereira Coelho em 27/06/2012
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