Betoneira de feijão
 
                                                   
            Certa vez fomos pescar e acampar às margens no córrego cavalo, onde há uma enorme moita de bambu e as águas formam um rebojo muito bom para pescar piau e piapara. A moita de bambu propicia um bom abrigo com o chão todo coberto de folhas secas, proteção contra o sol e o sereno. Acreditem ou não até minha mulher já pescou comigo neste local, agora só hotel cinco estrelas e ainda reclama. Bons tempos aqueles! Éramos uma turma de cinco amigos e meu filho pequeno de uns quatro anos. Aconteceram tantos fatos engraçados neste acampamento e rimos tanto que eu não poderia deixar de relatar. Desta vez o nosso transporte foi um caminhão destes com lona alta na carroceria, usado para carregar turma de boia fria para as lavouras. Aproveitaríamos a carroceria como dormitório e se chovesse teríamos um ótimo abrigo. 
            Como havia levado o meu filho para o acampamento, comprei uma Coca Cola de 2 litros só para ele. Assim que chegamos, ele já começou a beber e não durou nem o primeiro dia do acampamento! Levamos também óleo diesel para fazer uns candeeiros de bambu, no intuito de iluminar o acampamento durante a noite. De repente meu filho engasgou e ficou até roxo. Chorando muito ele correu para o meu lado não conseguindo nem falar direito. Demoramos um pouco a entender o que estava acontecendo, ele tinha bebido óleo diesel que estava em uma garrafa de Coca Cola. Como a Coca Cola era só para ele, estava bebendo no bico, e na penumbra dos candeeiros não notou a diferença, pois todos dois líquidos eram escuros. O gole de óleo diesel não fez muito mal a ele, a solução foi ele correr uns 15 km até acabar o diesel. Ô ta caboclinho econômico! Durante o resto do acampamento todos só o chamaram de “Óleo Diesel”. Pelo menos teve uma serventia: os pernilongos e carrapatos não quiseram nem beirar ele!
            Entre nós estava um colega gente boa absurdo, até esbarrar da cerca com diz meu amigo Leo do Juquinha Caminhão. Imprescindível nos acampamentos, o tratamos por “Borga” derivado do nome (Ciborg – o homem de seis milhões de dólares). Na verdade não sei se ele vale tudo isso, mas com certeza sua mãe não o venderia por menos e como não apareceu uma moça para pagar tal dote ele ainda continua solteiro até hoje. Gostava de levar umas bugigangas para a pescaria, como fomos de caminhão imaginem o tamanho de sua tralha. Desta vez cismou de levar uma panela de ferro enorme e um chuveiro de balde, daqueles que ficam pendurados feito “Tiradentes” em um galho de árvore. Quase não sobrou espaço para nós na carroceria do caminhão. É claro que tentamos tirá-lo de ideia, porém no final ele acabou levando tudo o que queria. Metade das coisas que levamos era só para satisfazer o nosso amigo!

            Na primeira noite ele fez uma propaganda danada do tal chuveiro de balde, que poderíamos ferver água e misturar com a fria na temperatura ideal. O garoto propaganda da “Bom Bril” que se cuide! Mas, como todos estavam cansados e alguns já haviam tomado banho, o chuveiro dormiu seco e enforcado no galho próximo ao acampamento, nosso “WC cinco estrelas”. No outro dia o chuveiro seria usado, pelo menos fora o que prometeu o Borga.     

          Levantamos cedo, e pescamos a manhã toda. Fizemos um almocinho corrido para não perdermos tempo de pescar. Até que a pescaria não foi das piores e pegamos bastante peixe. Quando chegou à noite, todos estavam exaustos, resolvemos tomar umas, jogar um baralho e preparar uma boia caprichada. O Borga era o cozinheiro oficial da turma, PHD em culinária masculina light, tipo: torresmão, feijoada, maçã do peito, linguiça, peixe frito... Tudo regado a um bom tempero e uma forma toda especial de preparar. Confiamos que o santo remédio, pinga com limão, corte todos os males e que os anjos digam amém ou nos aguardem. Ele logo pegou a panela de ferro enorme, sua companheira inseparável. Como dizia o finado companheiro de apelido “Couve”, aquilo não era panela, de tão grande mais parecia uma betoneira. 
            Aconselhamos o Borga a não mexer com aquela panela tão grande, a comida poderia ser feito em uma bem menor. Teimoso como uma mula o Borga meteu aquela betoneira no fogo, colocou água, feijão, tempero e muito trupicão para enfeitar nossa feijoada de pobre. A betoneira logo entrou numa fervura danada, panela de ferro quando esquenta nem o Capeta aguenta. Eu e o resto da turma agarramos no golo, baralho e papo furado. De vez em quando roubávamos um tira-gosto ainda fora do ponto na betoneira do Borga, era só ele descuidar um pouquinho. Conversa vai, conversa vem, que vira e que torna, não é que o Borga distraiu na prosa e esqueceu a betoneira num fogo lascado. Quando acudimos já tinha agarrado tudo no fundo e até apanhado fumaça. O Borga como tem saída pra tudo falou que era só descer o barranco e molhar o fundo da monstruosa panela na água fria, que ainda podia salvar nossa ceia. A turma do deixa disso tentou impedir o Borga de descer o barranco íngreme para chegar até um rego d’água. Adivinha se adiantou? O córrego naquele ponto onde estávamos arranchados recebia o deságue de um rego d’água um pouco mais estreito do que o córrego. Tínhamos cavado uma precária escada no barranco e feito um jirau de bambu sobre o rego d’água que servia para limpar peixe e lavar as tralhas de cozinha.
            O Borga já com várias na cabeça, ameaçou descer com a betoneira barranco abaixo sozinho. A panela vazia já pesava muito, imagina cheia, era coisa pra mais de trinta quilos. Eu logo fui ajudar, pois sabia que o danado ia descer sozinho se ninguém lhe prestasse ajuda. Ele desceu barranco abaixo meio escorregando até que firmou em cima do jirau. Eu desci a parte menos íngreme do barranco, alguém me passou a panela que entreguei a ele com bastante dificuldade. Naquele momento me veio um mau presságio e tive medo do meu amigo ter o mesmo fim de Dom João Ratão, acabar dentro daquela panela fervente de feijoada.          
            O Borga pesava uns setenta kg, mais trinta kg da panela que estava cheia de feijoada, chegava a uns cem kg sem muito exagero. Do lado de cima do barranco todos nós torcendo para dar tudo certo, e gritávamos para ter cuidado com o nosso jantar. O Borga desequilibrou, o jirau deu um rangido, não aguentou o peso e afundou, Borga, panela, jirau, adeus para o nosso banquete. A panela mais parecia uma poita de tão pesada, onde bateu ficou. Jogamos uma corda e ele amarrou na alça da betoneira e içamos aquele aranzel até chegar ao barranco. O Borga aproveitando que já estava dentro do rego d’água, tirou a roupa molhada e deu uma lavada mais ou menos no corpo e depois se enxugou com um pano de prato. Ele havia esquecido a toalha e jurou que aquele apetrecho de cozinha só seria usado para aquele fim. 
            Depois do acontecido o Borga queria que os demais tomassem banho. Porém, o “Minduca”, outro companheiro, veio em nossa defesa e disse:

          - Eu já vi gente morrer afogado, mas por falta de banho eu nunca vi falar que alguém morresse. Como já havíamos entrado no córrego ao entardecer, pescando de arrastão e pegando os peixes dentro das locas, em nossa consciência já valia como um senhor de um banho. E como não estávamos indo para uma noite de lua de mel, era mais do que o suficiente. E, diga-se de passagem, ô ta córrego da água fria, só tomando uma para encarar!
            A nossa refeição virou ceva de peixe e naquela altura do campeonato já tínhamos comido muito tira gosto e bebido todas. Fomos todos puxar a paia e, é claro, o único que ia tomar banho já havia tomado e o coitado do Tiradentes passou mais uma noite enforcado e seco no galho da árvore.
            Quando saíamos para acampar, quase sempre recebíamos visitas em nossos acampamentos, os nossos colegas que não conseguiram dar o nó no serviço apareciam de surpresa. E assim foi, recebemos visitas e fizemos uma farra das boas, mas banho mesmo de verdade ficou para o próximo acampamento. Quem sabe usando salva-vidas alguém arrisca a tirar a virgindade do “Tiradentes” do compadre Borga. Cabedal de primeira para um acampamento.  

Kennedy Pimenta