Contando ratinhos
 
 
          
  Eu começava a me tornar um rapazinho e precisava demonstrar que não tinha medo. Queria ser igual a meu pai, destemido e valente. Devia ter uns cinco anos nesta época, mais ou menos. Sempre que fazia algum barulho no quintal, meu pai saía na escuridão da noite e sem medo procurava qual era a razão. Eu achava aquilo fantástico. Como ele era um exímio caçador o aconselhava a pegar a espingarda, mas ele afirmava que não era necessário. “Meu pai, meu herói.” Quase todas às vezes ele encontrava o motivo: hora era um gato, outra hora um cachorro ou o vento, mas nunca nada sério. Como as suas rondas noturnas sempre terminavam bem, eu comecei a tomar coragem para fazer o mesmo. Até então, sempre preferi pedir socorro a meu pai e ficar de coadjuvante na história. Como sou o filho mais velho, acabei ficando em um quarto sozinho depois que nasceram duas pirralhas que se apoderaram de meu trono. No começo fiquei com um pouco do medo, porém, ter um quarto só para mim era me tornar mais independente. E sabia que se desse um grito os progenitores viriam em meu socorro.
            Meus pais colocavam os filhos cedo para dormir, e como tinha dia que eu não conseguia adormecer, minha diversão noturna era pegar ratos. Armava a ratoeira debaixo de minha cama, com um pedaço de queijo que esquentava na brasa do fogão à lenha. O cheiro enchia o meu quarto e os ratos da redondeza não resistiam ao chamarisco.  Depois de um tempo, a ratoeira desarmava e fazia uma barulhada danada até que o ratinho morresse se debatendo desesperadamente. Essa atividade me distraía dos medos de ficar só, mas, mal sabia eu, que a coisa mais perigosa que tinha em casa era minha ratoeira. E assim as horas iam passando e eu pegava um, dois, três ratinhos até cair no sono. Uns contam carneirinho para dormir, eu contava ratinhos. Será que tem tanta diferença assim? No outro dia, pela manhã, aparecia na ratoeira mais um Dom João Ratão em sono eterno, e mais uma dona Baratinha viúva.

                        Um dia, entre um rato e outro, antes de cair no sono escutei um barulho na horta de minha casa. Pensei em chamar minha mãe porque meu pai havia viajado. Como eu era o filho mais velho e o único projeto de homem que tinha na casa, logo abandonei a ideia de pedir ajuda. Ali estava minha chance de passar de Chita a Tarzan! Resolvi que iria sozinho, pois já estava bem grandinho e sentia necessidade perder o medo e minha mãe era apenas uma mulher. A horta era grande e muito escura. Peguei um punhado de papel e acendi no braseiro do fogão à lenha, coloquei uma caixa de fósforos no bolso e me senti invencível. Com esse artefato iria clarear o caminho que iria percorrer durante minha ronda e se encontrasse algo iria matá-lo queimado. Antes de abrir a tramela da porta da cozinha, tornei a escutar o barulho. Levei um susto tão grande que quase desisti de bancar o herói, porém, estava decidido que não ia passar daquela noite e minha família podia estar correndo perigo.    
            Abri a porta meio trêmulo e fui caminhando bem devagar para não apagar minha tocha e torcendo para não encontrar nada. De repente, o vento soprou muito forte e lá se foi minha fonte de luz e com ela toda minha coragem. Peguei a caixa de fósforos no bolso para tentar acender novamente minha poderosa arma mortífera.  Neste ínterim, eu já havia chegando ao meio da horta e tentava acender minha tocha, quando a porta da cozinha, que eu havia deixado aberta, bateu com a força do vento.  Quase morri de tanto susto, voou palito de fósforo pra todo lado e a tocha sumiu de minhas mãos. E o pior ainda estava por vir! Imediatamente após a pancada da porta fui atropelado por dois seres de outro mundo cheios de penas, que passaram por cima de mim na maior velocidade e voaram por cima do muro, desaparecendo como que por encanto. Posso jurar de pés juntos que nunca tinha visto monstros tão grandes e rápidos com estes. Eu fiquei caído entre os pés de milho esperando que os ETs voltassem para decretar o meu fim. Na hora pensei que não deveria ter acreditado na inexistência de assombrações ou monstros na horta de minha casa. Bem que meu amigo Zezinho havia me garantido que tinha visto um monstro horrível pulando o muro de minha casa. Como ele gostava de passar medo em mim e nos meninos da vizinhança eu não havia acreditado.   
            Próximo de onde eu estava, havia uma privada (fossa seca) que ficava no meio da horta, e tremendo mais do que vara verde, fui me arrastando e consegui entrar na latrina e fechar a porta. O medo tomou conta de mim, fiquei paralisado e sem saber o que havia acontecido. Aquela privadinha velha não iria resistir a um ataque de tão tenebrosas criaturas. A caixa de fósforos ainda estava na minha mão toda amassada e com alguns palitos dentro, mas cadê coragem para acender um palito. A claridade de um palito aceso poderia aparecer por entre as frestas da porta e denunciar meu refúgio, e decididamente não era uma boa ideia chamar a atenção para meu esconderijo. O cheiro da casinha, não estava dos melhores, mas eu não ia sair de jeito nenhum de minha casamata. Gritar por socorro dali, além de chamar a atenção de meus algozes perseguidores eu não seria ouvido pela minha família. As horas iam se arrastando, nada do dia clarear. Fiquei imóvel para poder escutar o menor barulho que surgisse. Depois de alguns coxilhões e sucessivos sobressaltos peguei no sono sentado em um dos cantos da minúscula casinha e com os dois pés firmando a porta. Quando o sol começou a dar o ar da graça, clareou um pouco, e percebi pelas frestas da porta que não havia nada lá fora e, além do mais, já havia passado muito tempo. Chamei por todos os santos que poderiam estar de plantão naquela hora da madrugada, abri a porta e sebo nas canelas sem olhar para trás. Entrei em casa, fechei a porta da cozinha e caí em minha abençoada cama e dormi em meio a pesadelos. Acordei assombrado pelos fatos da horrenda noite e não tive coragem de contar o acontecido para ninguém. Não queria que soubessem que eu passara a noite dormindo na privada e morrendo de medo. Pelo menos minha coragem não tinha sido em vão, pois espantara os monstros e minhas duas irmãs e mãe estavam bem graças ao herói tupiniquim, o grande Macunaíma.
            Guardei esse segredo por muitos anos, tinha certeza que era algo sobrenatural que havia acontecido, e falar disso para meu pai ia ser motivo de chacota. Depois de muitos anos descobri o que havia acontecido. Dois vizinhos tinham pulado na horta de minha casa para roubar galinha. Eles tinham muito medo de meu pai, que além de muito sistemático era um excelente caçador. Estavam no galinheiro e já haviam pegado as galinhas quando escutaram a pancada da porta, tiveram a certeza que o barulho tinha sido um tiro, que por sorte não tinha acertado a dupla de larápios. Eles saíram correndo pelo trilho no meio da horta onde eu me encontrava, encoberto pelo milho já grandinho. Na escuridão nem perceberam que haviam me atropelado, e eu não dei conta do que era aquilo, só sabia que eram enormes e tinham penas. A sorte deles é que eu ainda não era caçador, porque coragem eu tinha de sobra. “Eita, caboclinho corajoso, meu pai podia viajar sossegado porque ali tinha quem tomasse conta da família”.
            Nós acabamos desistindo de criar galinhas porque elas sumiam de forma inexplicável, e por prevenção, eu colocava escoras nas portas quando meu pai viajava, pois, outra aventura daquelas por dinheiro nenhum deste mundo. Bom, desisti de me transformar-me em um herói. Mais vale um covarde vivo do que um herói todo borrado no meio do quintal.
 

Kennedy Pimenta.