Lembranças de um infinito particular

(Iago Algodão)


Cheguei ao aeroporto de Dublin por volta das dez horas da noite. Estava exausto e desiludido. Queria muito ter chegado de trem, como nas histórias clássicas do velho continente, mas tive de me contentar com um vôo a partir de Lisboa. De qualquer forma, era a realização de um grande sonho, que aos poucos se concretizava, e apesar de algum combate interno, passei a minimizar o drama por conta do tipo de transporte. Fazia muito frio e eu esperava por isso. Aliás, esperar era uma condição, um estado para o qual sempre estive bem disposto. Esperei meses para curar o trauma de ver os meus pais enterrados depois de um acidente de carro, esperei anos até ser acolhido por uma nova família, esperei a vida toda até fugir de onde eu vivia. Nunca suportei a vida em Portugal depois da morte dos meus únicos familiares - meus pais.Esperei pela formação universitária e na primeira oportunidade, deixei de esperar. Fiz as malas, sem grande cuidado, e parti para a terra dos duendes, um lugar que eu idealizava a cada leitura de um conto de Joyce. A viagem fora curta, não chegara a três horas, mas havia uma pressão a esmagar o meu corpo, fazendo-me sentir cada corrente de sangue que circulava por entre as minhas veias, uma sensação que me fez sentir o cansaço do mundo, talvez, o cansaço da minha própria história. Esta viagem foi a minha primeira vitória, a minha primeira resposta ao fatalismo do destino e talvez por isso tive de brigar com ele para fazer valer a minha vontade. Depois do desembarque, segui de ônibus até o centro da cidade. O tilintar das moedas na máquina onde comprei o bilhete ecoaram como um brinde aos meus ouvidos. Nunca me senti tão feliz por gastar alguns centavos.

Desci do ônibus no centro da cidade, acompanhado de um pequeno mapa que fiz à mão. Estava certo do caminho que deveria seguir para o hostel onde dormiria, uma travessa da badalada rua O´Connel. Era suposto ser simples, mas como as minhas habilidades geográficas não são das melhores, perdi-me. Pedi ajuda a um transeunte, a minha primeira conversa com um local. Era um homem alto, barbudo e bastante magro. Tinha aspecto de quem voltava de um bar ou de uma balada, bêbado. Disse-me com algum sacrifício em interpretar o meu mapa que eu deveria seguir adiante e virar na primeira travessa à esquerda. Agradecido, já seguia o meu caminho quando o estranho virou-se para mim e gritou com uma voz rouca, quase engasgada “Você não será bem-vindo”. Por um instante tive raiva dele, mas foi muito breve. A seguir tive pena, do seu estado alcoólico, da sua imoralidade e completa ausência de sensibilidade. Concentrei-me no fato de que ele me ajudara a perceber onde estava e avancei alguns passos, com o vento a bater frio e sereno na cara. O bêbado indicara com precisão a localização do hostel, era de se esperar agora que não acertasse no restante de suas premonições. A larga e clássica porta bronca do lugar onde dormiria causou-me novamente lembrança das tantas referências irlandesas que eu tinha. O meu sonho ia se tornando cada vez mais real e minha vida mais feliz. Fui atendido por uma simpática irlandesa, cabelos vermelhos cacheados, olhos verdes, branca como a espuma de uma banheira da sétima arte. Confirmou a minha reserva e encaminhou-me para o quarto onde passaria a noite. Apenas uma noite. No dia seguinte eu partiria para a pequenina cidade de Galway, onde ficaria os próximos seis meses a estudar inglês e desfrutar da cultura local. Estava ansioso para conhecer, sobretudo, o famoso pub The king´s head, cujas noites festivas eram motivo de agradáveis comentários em todos os guias de viagens.

O quarto que reservei tinha seis camas e nenhuma delas estava ocupada quando entrei pela primeira vez. Achei estranho e pensei que poderia estar com sorte. Na verdade, antes de vir passei por grande debate reflexivo se deveria ficar num quarto sozinho ou se me arriscaria a dividir o espaço com mais gente. Por fim, julguei ser uma excelente ideia conhecer outras pessoas logo na minha primeira parada e assim optei por economizar alguns euros. Agora, encontrar o quarto totalmente vazio soava um bocado frustrante. Talvez outras pessoas aparecessem ao longo da noite, vindas dos mais diversos cantos do mundo e dispostas a me contarem histórias incríveis. No fundo, era o que eu esperava. O quarto em si não era muito amplo. Três beliches, dois virados um para o outro e o terceiro a fazer a ligação entre os outros dois. As roupas de cama eram brancas e pareciam muito limpas. Na parede havia algumas rachaduras, nada grave, e podia se observar algum bolor. O banheiro privado também não era muito convidativo, mofo, cheiro de sujeira e uma pia bem pequena, regada a pó. O espelho cheio de manchas negras completava o cenário. Havia uma janela razoavelmente grande, com vistas para uma espécie de quintal. Fios, túneis de exaustão e alguns varais era o que se podia verificar naquela escuridão. Ao menos havia aquecimento no quarto, o que me deixava bastante mais tranqüilo. Encostei a mala junto do beliche mais próximo da porta, tirei uma roupa limpa e fui para o banho. O chuveiro tinha uma espécie de cronômetro, algo bastante irritante. O jato de água não durava mais que um minuto e meio e, assim, de vez em quando era preciso suportar o frio que se sucedia a água quentinha que recobria o corpo naquelas baixíssimas temperaturas. Ao terminar, estava pronto para uma breve saída, queria jantar.

Ao passar pela recepção, a garota que me recebeu perguntou o que achei do quarto. Disse que era ótimo e que estava satisfeito. Pedi alguma sugestão para um jantar simples e ela me recomendou um fast food chamado Apache. Prossegui para lá, um pequeno restaurante às margens do rio Liffey. O vento estava cada vez mais intenso e gelado, mas não resisti parar por um momento e apreciar as águas negras, assim como a cerveja local, que escoavam pela ribeira daquela cidade. Poucas pessoas estavam na rua e naquele instante me parecia que a tão aclamada alma boêmia dos cidadãos de Dublin não coincidia com a vida real. Entrei no Apache, quando imaginei que já estava a congelar. Pedi batatas e uma espécie de “wrap” mexicano. Os atendentes com forte sotaque estrangeiro foram muito acolhedores. O preço era razoável e a quantidade de batatas surpreendente. Tudo estava muito bom. Fiquei numa mesa junto à janela, observando as poucas pessoas que percorriam a Bachelor´s Walk. Quando satisfeito, deixei a bandeja junto à lixeira e fui saindo vagarosamente, não sem colocar meu cachecol e as luvas. Enquanto o fazia, o entregador do restaurante estava a chegar. Empurrou a porta, mirou-me nos olhos e disse-me “Você não será bem-vindo aqui”. Arrepiei-me todo e praticamente inconsciente, passei por ele e bati a porta. Do lado de fora, parei por um segundo, atordoado, sem saber muito bem para que lado seguir. Em menos de quatro horas no país dos meus sonhos, já me havia deparado com as mais intrigantes pessoas que cruzaram a minha vida, desde sempre.

A caminhada de volta ao hostel foi bastante insegura. Tenho mesmo a impressão de que não enxerguei nada. Nem sei bem como consegui chegar. Era provável estar evidente em meu rosto esta sensação de pânico, porque tão logo cheguei, o recepcionista, agora um rapaz, veio até mim perguntar se tudo corria bem. Disse que sim, afirmei apenas estar cansado e subi as escadas até o quarto. Aquela frase “Você não será bem-vindo aqui” não parava de ressoar em minha cabeça. Quis acreditar que era só uma brincadeira, talvez um dito popular para o dia 16 de novembro, dia em que desembarquei. Mas me consumia todas as forças, aquela mensagem. As palavras têm este poder de num simples conjunto, fazerem-nos emendar uma reflexão sem fim, perdida, exaustiva e aterradora. Por um momento, desejei ser surdo. Deitei sem nem sequer tirar os tênis, mas não conseguia resgatar o sono que me tomara conta na viagem. O quarto permanecia vazio, no entanto, notei alguma coisa em cima de uma das camas. Levantei-me e aproximei-me do beliche próximo do meu, lá estava um envelope vermelho. Não havia nada escrito na parte externa. Abri-o e encontrei uma carta, uma longa carta.

Você não será bem-vindo aqui. Por mais que se esconda, todos saberão a partir do mais descuidado olhar quem você é. O teu mistério e a tua dor só pertencem a ti e a mais ninguém. Quando lavou as mãos do sangue que derramou por todo o lado, sabia que já não havia volta. Os seus erros não se calaram no silêncio que você assumiu. A tua redenção não se legitima com a história que inventou para si próprio. As melhores e mais profundas viagens que fazemos não são aquelas que dependem de algum meio de transporte, mas sim, aquelas que nos permitem invadir o que há dentro de nós mesmos, que nos faz mergulhar em aspectos nossos que nem imaginamos existir. O recomeço para existir exige uma verdade, autoridade, serenidade. Não fica para trás o que não está resolvido. Persegue-te, incomoda-te e acompanha-te a cada passo. Estremece na voz de estranhos, sangra na corrente de rios, se despedaça com a queda das folhas, esfarela-se na tua face junto ao vento frio. A história que narramos de nós mesmos só exerce sentido quando nos preparamos para lidar com a realidade. Realidade que advém de um passado, culmina num presente e liberta num futuro. Não é porque não se assume que se deixa de existir. A tua jornada se perde a cada fantasia inventada, a cada linha escrita por cima de um texto já digitado. Não há erros sem correção, mas há verdades sem realidade. Não se permita enganar mais uma vez, em outro lugar, outra viagem física. Revele-se, assuma-se, reconte a tua história a partir de uma realidade. Existe a realidade? Existe a tua voz? E a voz dos estranhos? Afinal, você não será bem-vindo aqui. Não se esqueça.

Terminei a leitura com lágrimas nos olhos, sem suportar o peso do meu próprio corpo, vendo as paredes se desmanchar e jatos de sangue a escorrer a partir do ralo do banheiro. A realidade corrompia outra vez os meus sonhos, os meus desejos, a minha verdade. Ajoelhado, estendia as mãos para os meus pais, via-os com clareza à minha frente, mas não os podia sentir. Há muito que tudo que sinto é imaginação, é abstrato. Mas não é o abstrato um direito de sentimento? Minha existência é um delírio. Gritei desesperadamente outra vez, ciente de que jamais haveria um recomeço. Não acredito em erros seguidos de correção. Meus ombros não agüentam o peso do mundo, do meu mundo. Quando arrombaram a porta do meu quarto, já era tarde. Ao rio vermelho do ralo do banheiro, já se havia juntado o meu sangue. Corte profundo num coração que nunca soube amar. Um carro, um freio friamente adulterado, uma curva, alta velocidade, estrondo e um ponto final - para muitas realidades.

 


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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 26/04/2014
Reeditado em 26/05/2014
Código do texto: T4784040
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