NO QUINTAL DA VIRGEM

“Lendas ancestrais: o Modesto”

Na aldeia do “monte dos rouxinóis” – nas redondezas da cidade de Éfeso – sempre se tem contado, desde tempos muito antigos, esta lenda ternurenta. Ali morava, numa casa feita de pedra calcária-rústica, rodeada por um quintal bastante arborizado, uma simpática anciã chamada Maria, acompanhada por um alegre rapazão, chamado João, e uma serva ainda juvenil, de nome Salomé. Tinham vindo há alguns anos atrás do sul da Judeia, receosos das perturbações ocorridas naquelas paragens, causadas pela morte de um famoso agitador popular conhecido com o nome de Jesus, filho da veneranda anciã referida nesta história.

Que família era esta? Perguntavam uns aos outros, todos os vizinhos das redondezas. Ninguém os conhecia propriamente mas, pela sua simpatia e convivência fácil, todos os respeitavam. Dedicavam-se, durante as horas do dia, às tarefas tradicionais da cultura de subsistência familiar. A anciã trabalhava, dentro da humilde casa, confeccionando as suas mantas de farrapos e os dois jovens ocupavam-se das tarefas habituais, no quintal. Sempre muito contentes, iam ouvindo o passaredo das árvores, dentre as quais sobressaía uma vistosa cerejeira. Estava-se no mês de Maio, durante o qual esta anciã se sentia especialmente feliz pelas flores – que ela regava todas as manhãs ao nascer do sol – pelos aromas primaveris e pelo canto dos pássaros.

Entretanto, não havia dia nenhum, tanto de manhãzinha como à tardinha, em que os vizinhos não reparassem que eles cumpriam as suas orações acompanhadas de cantilenas singelas. Uma coisa era certa: aparentavam ter uma vida muito feliz e partilhavam voluntariamente, uma ou outra vez, a colaboração nos trabalhos rurais a quem os solicitasse.

Numa solarenga manhã uma vizinha, muito amiga deles, assomou ao eido da casa e chamou:

– Salomé, ó Salomé! Onde está a tua ama? Salomé veio do jardim ao eido e saudou a vizinha.

– Olá, bons olhos a vejam, senhora Justina! Olhe, Mami está lá em cima tecendo a sua manta. Mas ela deve estar bem acompanhada, como de costume…

– Com quem? Perguntou intrigada a Justina, já que não conhecia visitas estranhas por aqueles lados.

– Está com o Modesto. Todas as manhãs ele a vem visitar, pela varanda.

– Mas quem é esse Modesto? Voltou a perguntar Justina.

– Olhe, é um passarinho que vem sempre visitá-la, todos os dias. Minha ama, cantando, dá-lhe migalhas de pão e ele traz-lhe à mão um brinquinho de cerejas frescas e rosadas.

– Posso subir? – Com certeza. Ela vai gostar de a ver.

– Quem está aí? Perguntou Maria, surgindo no topo das escadas.

– É a vizinha Justina, como passa vossemecê?

– Muito bem obrigado, bem-haja pela sua visita. Eu já estou um pouco melhor da maleita, que me aborrecia, e neste mês tão galante pus-me bem e tenho recebido sempre muitas visitas dos meus amiguinhos pássaros… olhe, foi-se mesmo agora embora o Modesto – o mais lindo pintassilgo desta área – que é o que mais vezes cá vem. Tome lá este brinquinho saboroso que ele teve a delicadeza de me trazer no seu bico. Vai ver que gosta. Os pássaros têm um gostinho muito apurado. Sabe, a semana passada esteve cá o Jairo – que é o gaio- azul que ajuda o João no quintal – e trouxe-me um raminho delas. Tenho ali uma cestinha cheia delas. Se quiser, pode levar que eu digo ao João para colher mais, logo à tarde.

– Ai, muito obrigado, minha santinha! Sabe, vinha cá trazer-lhe esta minha mantilha que está a ficar meia desfeita e não sei como arranjá-la. Mas, como a vizinha sabe arranjar bem estas peças, aqui lha deixo, e venho cá pra semana buscá-la e trago-lhe também aquelas tâmaras, de que vossemecê gosta, e que o meu Tomé me vai trazer um dia destes, está bem?

– Pode contar, Justina, mas olhe que não me falta nada aqui e, quando não tenho, como vê, há sempre quem me traga. Bem-haja, volte sempre!

Justina, fazendo a saudação da ordem, lá se foi colina abaixo. Entretanto a Salomé, aproximou-se de Maria, e segredou-lhe:

– Esta Justina é muito simpática, não é?

– Sim, Salomé. Ela é muito simpática porque nós também o somos para ela. E para todos os vizinhos que temos à volta, os quais muito nos têm ajudado!

– Mami, o que lhe disse hoje o Modesto? Ele parece que estava muito eufórico…

– Estava sim e cantava belos chilreios, como nunca. Sabes o que foi? Já saíram dos ovinhos os seus meninos. E, claro, voa muito e canta para os outros pássaros. Até o Jairo já esqueceu a zanga entre eles e foi dar-lhe ontem efusivamente um terno afago. Os pássaros são quase como os humanos e por vezes conseguem mesmo ultrapassá-los. Vê lá tu que o Modesto até já lhe perdoou por ele lhe ter alagado o primeiro ninho que fizera há dois meses. Eu porém, fiu ao seu esconderijo e coloquei-lhe lá um ninho novo. E ele nunca esqueceu e vem sempre carinhosamente todos os dias visitar-me e trazer-me cerejas. E eu apenas tenho umas migalhitas de pão, às vezes secas, para lhe dar …

– Vem ali o João. Sobe, Janinho!

– Olá, mamãe, minha Santa! Olá, Salomé!

E juntaram-se os três e foram de mãos dadas para junto do lago fazer as costumeiras orações e cantar o seu habitual e alegre Magnificat.

Frassino Machado

In CADA FRUTO SEU PALADAR

FRASSINO MACHADO
Enviado por FRASSINO MACHADO em 13/05/2019
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