Mendiga Duzinha

Nas ruas, seu nome ninguém sabia ao certo, sua origem era meio duvidosa, sua família, diziam que era um amontoado de gente numa casinha pequenina num bairro distante...também nem queriam saber dela....era o que ela dizia, sempre.

Quando criança, Duzinha era ‘’o problema’’ da escola , quando lá aparecia...descabelada, esfarrapada , ‘’boca suja’’ que pensava que assustava alguém quando largava um ‘’ Ô seu filho de uma puta, num meche cumigo não !!!’’ e se azedava prontamente, como se, com aquilo botasse alguém para correr. Que nada! era tudo o contrário, quanto mais ela esbravejava, mais a meninada corria atrás dela e lhe puxava os cabelos em desalinho, mais cutucavam-na com pequenas varinhas e a pobre espumava os cantos da boca de pura raiva e caprichava nos palavrões.

Ô menina !!! quem te deu esse coração e esse sentir ???

Sempre tinha palavras doces para quem precisava, trazia alguma novidade para as colegas (depois sabia-se que ela havia roubado para agradar as meninas ) e tomava conta delas como se fosse irmã mais velha, protegia os meninos fraquinhos dos fortões, não permitia que um adulto da escola ou da rua maltratasse alguém, tomava as dores e , por isso, sempre apanhava de ficar com o olho roxo e inchado.

No dia seguinte, lá vinha ela, cambaia e torta, trazendo consigo um ou dois cadernos dentro de um saco plástico ( talvez embalagem de arroz ou açúcar). Entrava, dava uma cutucada na vizinha e mandava um: ‘’ Oi gente fina, cê tá boa de onte ??? e deixava um sorrisão enorme, faltando um dente, escapar para a colega e iniciava o bate papo com todos, (completamente esquecida do episódio do dia anterior) contando todas as novidades da beira do rio, lá da casa das quengas. Isso tudo antes de sua professora entrar na sala. Naquele momento era seu aquele reino, pois somente ela sabia de tanta putaria, e era disso que os moleques gostavam; e as meninas ? curiavam de soslaio e rolavam entre risos e pulinhos, admirando a coragem e atrevimento da colega meio doida e estranha que andava feito macho.

E Duzinha debulhava seu rosário de novidades:

__Ôcês conhece o Zé Priá ? pois é, se ocês subé cumé que ele tava onte de noite, lá pras tantas.... hhum, hum, hum !!! kkkkkkkkkk . e gargalhava até não mais poder, despertando cada vez mais a curiosidade dos meninos que pediam:

__ Ahhhh , Duzinha, deixa de sê ruim, conta, anda...que hora foi isso ???

__Sei lá, os galo já cantava pra tudo que é lugá.

Eles insistiam :

__ E aí, que foi que Zé Priá aprontou dessa vez ?

Toda poderosa ela dizia ?

__ Conto não, cês faiz sacanagem cumigo e depois, cês pode contá pra muié dele e daí ele vai sabê que foi eu e daí vira merda mermo.

Os meninos apertavam-se em curiosidade.

__A gente num conta nada não Duzinha.

Neste conta não conta, entra a professora e torna-se a admirar daquele rebuliço em volta da garota, mas desta vez não era para ‘’mangar’’dela não, e sim, curiosos pelas tantas que ela aprontava. Com uma piscada e um aceno ela avisa que conta depois e todos tomam seus lugares. ‘’Hoje o dia promete ‘’ pensa a professora, mas correu tudo tranquilo: corrigiu os deveres de casa, iniciou uma nova matéria, caprichou na matemática e não é que a manhã rendeu ? ‘’Puxa, será o que aconteceu hoje’’. Ouvem então a campanhia anunciando o recreio e olham todos para a professora esperando que os liberem para a melhor parte que era a merenda gostosa e a farra do recreio.

Como Duzinha não perdoava a merenda, jamais, todos lá se foram atrás dela pra fila pegar a sopa.

__Hum, diz ela , lambendo os beiços, o cheiro tá bão demais, cês capricha no repite que hoje quero cumê muito.

E claro que davam pra ela, estavam doidos pra saber o que aconteceu com Zé Preá. E assim que terminaram de comer, pegaram-na pelo braço e foram pra debaixo do pé de manga e exigiram que ela contasse .

__Tá bão, eu conto, mas se ‘’sobrar pra mim’’ arranco as oreia docês. Sabe o cabaré perto da lagoinha pra baixo do mercado ? foi lá que vi o Zé. Eu ia lá passano, quando escutei uns grito esquisito no quartinho das puta que dá bem pro murinho do lote vazio, onde os muleque fuma maconha de noite ( e disparou a rir que não se segurava, levando cutucões dos meninos para saber de quê tanto ria, a diaba ).

___ Ele tava sem roupa ninhuma, tirou tudo, só dexô as meia nos pé, kkkkkkkkkkkkkkkk, tava do jeito que nasceu, aquelas pelanca pendurada kkkkkkkkkkkkkkkk..... e cês cunhece a Maria Malagueta ? não né ? é uma rapariga de lá , ela tava só cum toco de saia, mais nada , nem por cima, nem por baixo rebolando na frente dele.

Ela deu uma pausa, como absorvendo o resultado de sua história e gostou, todos estavam no mais profundo silencio, só esperando. Ela continua :

__Os peito dela bate na barriga, cruis credo, e ‘’as coisa’’ dele ??? nunca vi troço mais pelancudo. Êta veio feio, e pelado ainda é pio, kkkkkkkkkkkk ( e nesse momento os risos aumentaram, todos ali imaginava o Zé pelado com as pelancas de fora) e ela continua :

__Teve uma hora qui o véio ficou de quatro pé e Maria trepou em riba dele, dano cada palmada na punda do coitado o que eu num entendi é por que ele gemia e ela só faltava arrancá os bago dele, e o bode veio pedindo pá contiuá. Teve uma hora que ela abocanhou o troço dele e pensei ‘’ Credo, vai engoli o véio’’ mas não engoliu não, ele continuava urrando e falano, ‘’pára não Maria, pára não’’ e ela não parou, o diacho é que.. (suspendeu a fala e olhou para a perna machucada, e os meninos gritavam :

__E daí Du, que aconteceu ??? explica direito, num tamo entendendo nada.

Ela meio triste responde :

Uai, é isso que tô falano...também num entendi direito pruquê nunca tinha visto aquilo ainda, mas achei engraçado...o veio Zé com a Malagueta na garupa e depois quase engolindo ele, pena que... (parou de novo e a meninada pedia e ria a vontade) uai, cuma eu tava em riba do muro, espiano do buraco da parede, num oiei direito, escorreguei e fui reto pro chão, por isso que tô cum a perna machucada, cês num viu não ??? depois num guentei trepá no muro de novo e fui drumi. Mas antes, no baruio da queda , o Zé espiou do buraco e me viu saino, cachingando e inda gritou:

__Bem feito sua égua, quem manda espiá os ostros ?

E ela dormia, com 12 anos de idade, sabem onde ??? na calçada mais próxima, quando se cansava de perambular pelas ruas. Ali ela roncava, enrolada a qualquer trapo velho que catava no lixo. No dia seguinte aparecia em casa dos seus pais e era xingo pra todo lado, ela ia em busca de um gole de café, um pedaço de pão, ou de ‘’bença mãe’’ ‘’ Deus te abençoe minha fia ‘’, mas não era assim, não havia café, não havia pão, tampouco o ‘’Deus te abençoe’’, e entre gritos, palavrões, ameaças, sermões inúteis e pragas sem fim, terminava a visita que mal começara. Duzinha se afasta , passa na casa da tia que lhe dá o que comer, manda tomar banho, roupas limpas e pede seus cadernos para olhar e pouco vê de escritos ali, dá-lhe alguns conselhos e , no meio deles Duzinha se afasta novamente, vai em busca das ruas, onde é sua morada, onde começou tão cedo ‘’fazer a vida’’, onde tão cedo, aprendeu o rosário de lágrimas e que tudo era terrivelmente ruim, então ela chorava e dizia ‘’ pra quê queu nasci, pra levá tanta porrada ? e de cócoras a beira de alguma calçada ela pedia uma moeda para comprar o pão daquele dia e, em dia de sorte, acabava almoçando em algum restaurante, quando alguma alma caridosa pagava ou dava-lhe restos de comida. Abandonou de vez a escola, distanciou-se dos colegas, nem os via mais. Logo cedo engravidou, perdeu o bebê, sofreu demais, ficou internada no hospital municipal e ninguém ia visitá-la. Recebeu tantos conselhos que dava para ‘’encher um tantão de saco’’, dizia ela. Mas a verdade é que ninguém queria saber, seu cheiro se tornava cada dia mais ruim, afastando todos de perto dela.

Em meio a tantas idas e vindas de tudo que era lugar, aprendeu a ‘’beber pra esquecer’’, engravidava com facilidade, mas perdia facilmente também, sabia o que era bom para ‘’tirá menino’’, apenas uma gravidez vingou e ela ficou até muito emocionada quanto viu o filho em seus braços, pois lembrava o homem por quem ela se apaixonara, pela primeira vez, por isso não tomou a ‘’buxinha’’, pois queria ter aquele filho. Enquanto passava o resguardo, ficava em casa de seus pais , ouvindo tudo que era chingamento, até que pegou seu bebê e lá se foi pra rua. Estava com 17 anos e carregava um filho nos braços que, logo passava pelos mesmos caminhos que a mãe seguia, até que um dia, sua tia encontrou-a bêbeda e caída no chão, tendo ao seu lado o pequeno menino sugando aquele peito murcho e sem leite, levou-a de volta, mais uma vez. Ao melhorar a carraspana e a gripe que mais parecia tuberculose, disse a tia que ia embora.

__Mas embora pra onde criatura de Deus, pra onde cê vai ???

__Pá rua, temo muito amigo lá né neguim? ( dirigindo-se ao filhinho que estava de barriga cheia e bem cuidado, preparando-se para pegá-lo nos braços e sair ).

A tia rebela-se e atreve-se contra ela :

__Cê pode inté ir, mas o menino fica.

Duzinha gritou, esbravejou, lembrou do seu ‘’amô’’ e disse que o menino era o que restava dos ‘’tempo bão’’, mas a tia agarrou o pequeno e se fechou num quarto, deixando a garota aos berros lá fora :

__Me dá meu fiio sua égua, sua vaca, sua piranha miseráve. Me dá meu fiinhim, ele é meu, sua ladrona de fiiio dos outro.

Seus brados carregados de soluços eram terrivelmente ouvidos por todo bairro, e começava a rodear de curiosos, na intenção de reforçar o lado da tia. Silenciosamente, a tia permaneceu em seu quarto, enquanto isso a criança dormia o sono dos inocentes. Duzinha então, saiu dizendo que ia chamar a policia ..xingando até onde não se ouvia mais....não se sabe o que aconteceu, se ela foi mesmo a polícia, somente apareceu quando o menino estava grande, estudando a primeira série e chamando a tia de ‘’Mãinha’’. Olhou-a várias vezes, ressabiado e medroso, agarrado a saia da mãe. Ali ela almoçou, conversou um pouco, dormiu ao pé da parede, levantou-se e, tentou uma aproximação inútil com o filho e novamente ganhou as ruas, onde todos a conheciam. Era seu mundo, onde era judiada, estuprada, caçoada, mas era também festejada pelos ‘’amigos de copo’’, era o mundo onde aprendeu a ver como sua casa. Qualquer lugar servia, chorava, reclamava da vida, mas permanecia ali onde sempre havia um gole fácil de pinga, alguns pedaços de pão, restos de comida em alguma casa ou restaurante. Quando embriagada, caia em qualquer canto, muitas vezes chutada, empurrada como cachorro sarnento, punham-na para fora sem dó nem piedade, também sua presença incomodava, seu cheiro ficava cada dia pior em função do cheiro de urina e cocô que iam impregnando em sua roupa, em sua pele.

Numa manhã chuvosa, fora encontrada caída num beiral de casa, ardendo em febre, levaram para o hospital, deram um banho de ‘’sabugo’’, como ela dizia, trataram-na direitinho; ao final de três semanas , estava boa e, de novo, de volta as ruas. Aos poucos foi percebendo um inchaço terrível numa das pernas e, aquilo doía demais, ela bebia para suportar a dor. Inúmeras vezes fora levada aos hospital, onde virara paciente conhecida de todos...e sempre cheios de muitos conselhos...de nada serviam, de nada adiantava. Sempre voltava pra rua, onde tudo retomava seu curso normal.

Mudou de paragens, agora freqüentava as ruas do Bairro Bandeirantes, onde estava ‘’de olho num coroa lá’’, chegou a morar com esse coroa, pertinho do escritório onde eu trabalhava. Até que, não suportando mais a pinga, o cheiro ruim, a depravação, fora posta para fora da casa do ‘’coroa’’, mas ficara perambulando por ali e se acostumou a dormir na porta do escritório. Quando eu cedinho para aabrir a porta, ela sem levantar a cabeça e ainda de olhos fechados , perguntava :

__É ocê Célia ??? graças a Deus cê chegou.

E depois de ouvir minha voz : ‘’ Sim Duzinha, sou eu, Eny ! ‘’ como você está hoje??? Como sempre sabe que sou eu ??? Aí, ela levantava a cabeça e dizia :

__Conheço seus passo Célia, cê anda de mansinho como uma gata. Êta Célia, porquê num sô assim feito ocê, bunitona, cherosa, cabelão loro, ahhhh ! se eu fosse um home Célia, nunquinha que eu ia deixá cê imbora... (e continuava a murmurar sobre assuntos que eu não conseguia entender direito).

Ali, depois de tomar o café que eu sempre lhe dava, ela se despedia e dizia que ia ‘’catar’’ marido, que tava carente dumas ‘’chinelada’’ (sexo), olhava para a perna enorme, inchada e vermelha, com um aspecto horrível, parte dela enrolada em panos sujos e exclamava :

__Pena que ninguém me quer mais por conta dessa desgr...... (e soltava um palavrão, visivelmente contrariada com sua condição de doente pinguça).

Antes de sair me dizia :

__Té logo Célia !

Eu dizia sempre:

__Porquê você não me chama de Eny ? é tão mais fácil e todo mundo me chama assim, você não vê ?

Ela, virava para mim, com aquele sorriso feio, de dentes todos apodrecidos e dizia :

__Não Célia, eu num sei falá Ani, sei falá Célia porque parece nome de anjo e ocê é meu anjo, cê num tem nojo de mim, me dexa ficá aqui, conversa cumigo e ainda me dá de comê. To indo, amanhã trago manga procê ta bom Célia ??? fica com Deus.

E lá ia se arrastando rua acima.

Duzinha sumiu por um longo tempo, não fui a sua procura, nem sabia como fazê-lo, com três crianças pequenas, muito trabalho e uma vida conjugal nada fácil, me lembrava dela, sentia sua ausência , mas ficava por isso mesmo.

Até que um dia, após uma temporada chuvosa, veio a noticia: Sabe daquela mendiga que gostava de vir aqui ? amanheceu morta numa calçada lá no centro. Me senti péssima, uma pobre pessoa, inútil para ajudar um semelhante, mas o que eu poderia fazer ?

Convivo até hoje com as lembranças de Duzinha, a menina de rua que morrera antes dos trinta anos de doenças diversas e entorpecida pela cachaça e pelo passado que reclamava , ‘’ se eu tivesse uma ‘’chancha’’ (chance) eu voltava com outra vida, mesmo que fosse de um cachorro’’ e chorava, chorava como criança.

Adeus Duzinha !!!

Célia Matos
Enviado por Célia Matos em 03/08/2008
Código do texto: T1110830
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