Coletividade

Eu odeio coletivo. Desses, tipo esses que circulam pelas cidades do interior, ônibus sucateados, descartados de alguma empresa da capital por não estarem mais aptos a circularem. Ai, aqui na roça, sem muito rigor na fiscalização, eles ainda podem rodar por alguns anos, quem sabe décadas. Uma pinturinha, um belo letreiro com o nome da nova empresa, alguns pneus recauchutados e lá vai a “carroça”, catá jeca. Calma, não estou sendo soberbo. Sou pobre. Vivo das poucas moedas que as letras me trazem, por opção, resolvi ser escritor, muitos preferem me chamar de vagabundo, “deixa essa bobagem de escrever pra lá, isso não dá camisa pra ninguém”. Agradeço o conselho, mas vou tentar por mais um tempo. José Mauro de Vasconcelos, autor brasileiro, de quem recebi influência através de suas obras, que li e reli, também era, aos olhos de quem o “amava”, um vagabundo. Isso até uma das “bobagens” que ele escreveu chegar à grande tela, ser exibida nas salas de cinema de todo país e virar novela da globo: “Meu pé de laranja lima”. Depois desse feito, ganhou amigos que nem conhecia, pessoas que “sempre acreditaram e apoiaram seu talento”.

Tá!

Pra não render.

Mas voltando aos coletivos. Quem nesse mundão de meu Deus nunca deu uma voltinha nesse troço. A plaquinha, que estipula a quantidade de passageiros sentados e de pé, na maioria das gaiolas, foi retirada para aumentar assim o ganho dos imperadores do transporte urbano. Parece uma lata de sardinha. Todo mundo feito “bem-casado”, um coladinho no outro. Em horário de pico, aqui após as dezessete horas, parece mais sardinha estragada. Chulé, sovaco, couro, sola de EVA, cola, borracha. Posso falar porque fui freqüentador assíduo desse infortúnio por mais de quinze anos. Até tomar raiva e passar a gastar a sola das minhas alpargatas.

O troço, balançante, vai abarrotado de gente. Uns levando bolsas, outros caixas de sapatos, outros latas de cola vazia para “baterem” a laje no final do ano, depois de receberem o décimo terceiro salário. Crianças chorando, velhos reclamando, gente xingando o encarregado e jurando pedir conta no dia seguinte (perdi as contas de quantas vezes fiz isso), mas, nada como uma boa noite de sono. Já diz a máxima: o travesseiro é o melhor conselheiro.

A odisséia começa logo ao entrar no ônibus e encontrar o trocador com aquela cara azeda de quem comeu e não gostou. Deve ter o calção que cobre as partes pudentas mais apertado do mundo. Só isso para justificar aquela cara de merda. Passando dessa fase, vem o mais difícil: encontrar um lugarzinho para se acomodar sem o risco de se estatelar nas bruscas freadas e nos solavancos durante o percurso.

Tendo sorte. Muita sorte. Você encontra uma bancada vazia. O problema é o companheiro ou companheira de “viagem”.

O grande problema dos coletivos é a coletividade.

Nem sempre uma boa prosa. Essa história de que mineiro adora um dedinho de prosa é balela. Nem todos. Eu não gosto. Principalmente quando o assunto é o tempo, o trânsito, a violência... Aliás, esse último tema, aqui, “dá pano para a manga e remendo para a capanga”. – vamos bater um papinho? “vô cuá”.

Deve ser por isso que outro dia “paguei língua”. Só pode ser castigo.

Estava eu em um bairro distante da minha residência, havia chovido o dia todo. Meus anfitriões, após o delicioso jantar e já na hora derradeira da despedida, praticamente me obrigaram a tomar emprestado um velho guarda-chuva em frangalho. Não tive como recusar e lá fui eu esperar pelo coletivo. Esperar é outra coisa que me dá nos nervos, tenho desânimo quando tenho que ir aos bancos locais, principalmente os do governo. Não agüento olhar a cara de sono dos concursados. Parecem estar fazendo um favor à população, e os caras de pau ainda tem coragem de fazer greves.

Esperar é mais chato que comédia produzida no México. Dá no saco de qualquer um. Ainda mais quando um raio está prestes a partir minha cabeça ao meio. Flagelo. Chuva que Deus dava, frio, vento, vontade de fumar, e eu ali parado esperando pela jubiraca. Enfim aparece lá. Que alívio.

Aceno. Ela passa por mim. Primeiro me joga água de enxurrada. Para distante. Corro. Queria sair logo daquela tormenta. Entro pela estreita porta, pensando em não molhar muito o chão da lotação, já lotada, balanço o guarda-chuva ainda fora do veículo. A porta se fecha. Adeus guarda-chuvas. Xingo um palavrão qualquer. Pelo menos pude salvar a minha mão. Com esforço consigo vencer a multidão de braços levantados a se segurar na barra de apoio. Logo que me aproximo da roleta, vejo o cara-de-merda colocar o pé direito para impedir que eu a girasse.

___ Facilita o troco ai chegado, só damos troco para notas de dez reais pra baixo.

Confesso que pagaria com uma de cinquenta se tivesse uma, só para criar confusão, afinal não existe essa de "troco máximo”, se acontecer com você, diga ao trocador: “valeu amigão, vou de graça então”, pode dizer que fui eu quem mandou.

Eu só tinha dois reais.

___ Se eu tivesse dez reais teria chamado um taxi – respondo mal humorado.

De braço esticado, segurando na barra de apoio, feito um morcego, lá vou eu. Às vezes tenho a impressão de que “andar” de barco em um mar agitado é como andar de lotação. O balanço deve ser o mesmo. Se for, nunca vou querer “andar” de barco.

Depois de alguns quarteirões, um passageiro, que estava sentado dá sinal de parada. Fico colado nele. Não dou esse lugar nem pro Papa.

Ele desce. Eu me sento. Arrependo-me. Devia ter dado a vaga para o Papa. Do meu lado um senhor de cabelos brancos como neve. Segundo ele com oitenta e dois anos, mas na minha não muito sincera opinião, devia ter uns cento e cinquenta no mínimo.

Eis que ele começa a conversa:

___ Sabe o que é isso?

___ Uma bengala, imagino.

___ Sim, isso mesmo. – silêncio. – sabe para que serve?

Não respondo.

___ Para que eu possa caminhar. Meu médico que mandou. Tenho um médico particular. Nunca vou entrar nesse açougue que eles chamam de hospital. – silêncio – Tenho dez irmãos. Nove já morreram. – Silêncio – Sobrei só eu.

Torço o bigode, ou melhor, onde me disseram que um dia nasceria bigodes. O velho continua:

___ Meus pais morreram quando eu tinha nove anos. Na verdade, meu pai morreu quando eu tinha nove anos. Minha mãe morreu, eu tinha sete.

Olho para o lado. Busco alguma grávida, um paralítico ou algum outro velho para que eu possa fazer a caridade de dar-lhes o assento. Ninguém. O velho continua:

___ Você conheceu meus pais?

Puta que pariu – penso – Não, não conheci.

___ Há você fala? Eu já estava achando que você era mudo.

___ Eu tive um irmão mudo.

Rio. Acho que de nervoso.

___ Ele engoliu a língua.

___ Quem? Fico curioso.

___ Meu irmão mudo. Passei um susto nele, quando era criança. Nunca Mais falou. Não me arrependo. Ele falava demais.

___ É de família. – Não me seguro.

___ O que você disse?

___ Nada – respondo.

Silêncio...

___ Eu sei atirar. Atiro que é uma beleza.

Olho instintivamente para suas mãos. O velho tremia feito uma vara verde, mal podia segurar a bengala.

___ Aprendi no quartel. – pausa – Eu era faxineiro lá, um almirante me ensinou.

___ Almirante? – pergunto. A essa altura eu já rezava para que ele engolisse a dentadura e se engasgasse com ela.

___ Sim, mas ele me fez prometer que eu nunca iria matar gente. Nem bicho. Nem nada.

Faz uma pausa, mastiga a dentadura fazendo ranger, baba, limpa com um lenço encardido que segurava em uma das mãos. Sinto asco. Ele escarra, cospe no chão e continua.

___ Criei muito boi. Boi branco. Nelore. Um número incontável deles. Mais de cem. Não era meu não. Eu só punha a ração no cocho. Falo que criei porque fui eu quem os alimentei. Com capim moído.

___ Já viu boi branco?

___ Sim, já vi. E já comi muitos também. Gosto bem passado. - respondo em tom áspero tentando encerrar o assunto.

___ Os jovens de hoje não tem mesmo amor no coração. Não gosto que matem o bichinho. Animal também tem alma...

___... Só como carne de porco – diz por fim.

Chega enfim o meu ponto. Dou graças a Deus. Puxo a cordinha, ouço soar a sirene próxima ao motorista. Não sei por que, me lembrou uma descarga sanitária. Me levanto e ouço o velho:

___ Já vai apear? Tava tão boa a nossa prosa.

___ Depois nos conversamos mais meu senhor. – respondo com sarcasmo.

Caminho em direção à porta. Passando a contra gosto por baixo de um e de outro braço estendido. Paro e fico esperando o veículo estacionar. De repente uma freada brusca me pega de surpresa, vou de encontro ao para-bisas e o choque é inevitável. Sinto doer meu rosto. Ajeito os óculos. Olho com raiva para os demais passageiros que gargalham da minha falta de costume com aquele jumento que estava ao volante. Com certeza sabiam que ele faria isso e ficaram esperando em silêncio pelo meu tombo, para então fazerem a “ola”.

Desço de um salto. Os dois pés na enxurrada vermelha que descia pela rua. Olho o ônibus se afastando e percebo os olhares furtivos a me observarem todo estropiado. Sinto-me um verdadeiro asno. Ascendo um cigarro. A chuva já havia parado. Analiso minha experiência naquela noite e confirmo o que já sabia.

Eu odeio coletivos.

Luciano de Assis
Enviado por Luciano de Assis em 08/09/2011
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