Solitude

Já soara a muito as doze badaladas que encerram um dia para dar inicio a outro. Já não podia se lembrar a quanto tempo estava ali sentado a beira da janela, de frente para a rua, deserta, fria, escura, silenciosa. Propícia a vagabundagens e coisas perdidas. Atos ilícitos. Sobre a penumbra, a sombra que encobre, esconde, camuflam seres de hábitos noturnos, zumbis.

Sobre a mesa, folhas de papel em desalinho, rascunhos de textos inacabados, frases soltas, retalhos de uma obra prima que nunca terminava. Nem terminaria. Onde fora parar sua inspiração? Escritor medíocre, enganador, uma farsa. O cinzeiro cheio de bitucas de cigarros a impregnar o ambiente, garrafa de uísque barato e copo sujo completavam o cenário e a morbidez do local.

Queria reagir, levantar-se, tomar um banho, fazer a barba, cortar as unhas, escovar os dentes, com capricho e alguns cuidados básicos até poderia voltar a ser um ser apresentável. Há quanto tempo entrara naquele estado de letargia?

Uma corrente de ar entrou pela janela e fez seu corpo cansado se contrair em um longo arrepio, o cheiro da noite o comovia, não conseguia bem explicar porque, mas amava a noite e odiava o dia. Ainda devia ter uma garrafa fechada, largada em algum canto do pequeno apartamento, entre a desordem. Com esforço sobre humano levantou-se, deu uma olhada rápida em sua volta. Precisava contratar uma faxineira, talvez em quinze dias, trabalhando rápido, ela pudesse colocar as coisas em ordem.

Procurou por entre as coisas armazenadas no velho armário de fórmica, encontrou-a no canto, entre panelas sujas e amassadas, abril ali mesmo e deu um longo gole, o liquido amarelado e quente desceu queimando tudo, dando um novo ânimo, era reconfortante.

Seu editor havia lhe dado um prazo para terminar o romance que começara a escrever há dois anos. Se não terminasse logo o contrato seria cancelado. O problema é que já havia gasto um terço do que recebera antecipadamente pela “obra”.

Tinha o argumento em sua cabeça, mas ao se sentar diante da velha máquina para tamborilar as teclas e gravar no papel amarelado, as palavras lhe fugiam, entrava em pânico ao ver aquela folha em branco na sua frente.

Estava escrevendo uma história de amor, dessas que o ser humano ainda insiste em acreditar que existe. Por que o ser humano necessitava tanto se iludir? Por que insistir em se alimentar de frases compostas, juntadas para contar histórias de amor que conscientemente sabiam se tratar de histórias da carochinha? Imbecilidade humana. Almas incongruentes. Exasperava-se com as atitudes das pessoas ao seu redor, como podia ser tão bitoladas?

Há dez anos entenderia melhor, também já tivera seus momentos de tolo romantismo, numa época em que a insensatez da juventude permitia algum excesso. Hoje, mais maduro, consciente, ria-se da ingenuidade, das promessas fúteis que nunca iria cumprir, das juras de amor que nunca se realizariam, das mentiras contadas em momentos de entrega ao prazer. Juras falsas, faladas e ouvidas com o simples objetivo de “se dar bem”, ou ficar bem.

Olhou novamente para rua, ainda deserta, ainda mais fria. Acendeu outro cigarro, precisava parar, já sentia os efeitos que a droga licita lhe causava depois dos vinte anos de veneração.

Sentou-se novamente a máquina, precisava começar logo a escrever, o dia ia surgir em algumas horas e precisaria dormir.

Luciano de Assis
Enviado por Luciano de Assis em 09/09/2011
Código do texto: T3209686
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