A casa do "Ti Tonho"

Noite escura, silenciosa, misteriosa, vaga-lumes a pirilampear por toda estrada de terra batida, estreita, rodeada de matos, de um lado e de outro, silêncio sacro, fila indiana, eu e meus sete primos em ordem de tamanho, meu tio na frente, sua esposa atrás, nós vínhamos depois, calados, contra a nossa vontade.

Era lei, sábado à noite, vila sem energia elétrica, pequena capela, “lumiada” por velas, ou lamparinas, o terço das oito, ninguém estava dispensado, não importa o quanto cansado estivesse.

Cresci no mato, na roça, na capoeira, segundo os antigos, assombrada, chupei manga no pé, bebi água com as mãos em concha, colhida diretamente na fonte, mineral. Andei de égua, garupa de um avô trêmulo, sistemático, às vezes grosso, mas justo ao extremo. Dormi em colchão duro, retrato da sagrada família na cabeceira, ouvindo o farfalhar da palha a cada movimento, ouvi casos de assombração, e fui dormir depois de ser ameaçado com a velha história de que o Jeca Tatu ia vir me colocar no saco e levar embora com ele.

Água de pote, de moringa ou de cabaça, caneca descascada, banco de madeira, piso de cimento, grosso, sem colorante xadrez, fogão de lenha, vermelho, estalar de madeira, cheiro de fumaça, conversa sussurrada, altas horas, muito melhor que vídeo-game.

No almoço quiabo, jiló, arroz colhido no quintal, verduras também, carne de porco matado a poucos dias, lingüiça, chouriço e torresmo, tudo da mesma criatura.

São João era festa pura. Bandeira hasteada, vara de bambu, limões na ponta, vários, fogueira acesa, desafio, crendices populares, quentão, chá de canela, biscoito de polvilho, bolo de fubá, João deitado, na folha de bananeira, pau de sebo, bandeirolas a se agitar sopradas pelo vento frio. Bombinhas e foguetes, tudo depois da “reza do terço”, tirado pelo mais velho da casa, o patriarca.

De manhã, leite na caneca, quente, espumante, com gosto das tetas da velha Laranja, ou da Zulega, não importa, o mais gostoso era o bigode branco que se formava.

Depois bater o café, esparramado no terreiro, colhido no dia anterior, espalhado para secar, peneirar e assoprar, depois torrar, finalmente fim da tarde, pescar, na garupa da velha Monark, vermelha, guiada por dos tios, Tonho ou Zé, ambos Martim, apelido, substituindo o Ferreira. Para-lamas com três faroletes, fitas no guidão, buzina de fon-fon, verde ou vermelha, farol a baterias, alimentadas pelo girar das rodas, penduricalho nos raios para fazerem barulho engraçado, beirada da BR, ouvindo o zumbido dos carretões, levando o progresso para regiões distantes.

Córrego barrento, sem peixe, uns poucos lambaris miúdos, “pito” de palha no canto da boca mais causos de assombração, ou exibição de proezas cometidas, exageros, excessos de uma juventude já tardia, ida, saudosa.

Regresso a casa, já na boquinha da noite. Casa rústica, várias águas, assoalho de madeira, ranger de tábuas, escuridão total após o sol se esconder. Banho de bacia, com caneco, sabão de barra, a base de sebo de boi e óleo de mamonas, água esquentada no fogão a lenha. Lamparinas acesas, chamas a bailar, fumaça preta, cheiro de querosene a impregnar o ambiente, colchão duro, farfalhar de palhas ao se mover.

Quisera o tempo poder voltar, minhas alegrias de criança, recolher vaga-lumes com a mão, colocar no vidro de maionese descartado e ficar espiando o seu piscar. Quisera voltar ao tempo de criança, leite na caneca, cana mordida no talo, laranja cascada a unha, roupas cheias de picão, das andanças pelo mato.

Picadas de mosquitos, quase a não se sentir, arranhão de braquiara, quase sem se notar, peniqueira das folhas de cana sem incomodar, cheiro de bosta de vacas, natural e delicioso, brincar de esconder, entrar na capoeira e desejar não ser visto por seus fantasmas.

Tempos que não voltam, lembranças do passado, momentos felizes, felicidade furtiva, saudosismo, talvez.

Por que só percebemos que algo é maravilhoso quando não nos pertence mais?

Luciano de Assis
Enviado por Luciano de Assis em 10/09/2011
Código do texto: T3211135
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