A poetisa

Tudo pronto para mais uma jornada de trabalho. Eu, então repórter de uma emissora de TV local, cumpriria mais uma pauta de rotina. O calor, a violência, o consumismo, nada muito diferente. A expectativa era que em menos de duas horas estaria de volta ao conforto da redação, sob o ar condicionado de minha sala na emissora e concluiria então minha pauta no limite do meu deadline.

Microfones a postos, câmera com baterias carregadas, fitas de VHSs limpas e prontas para receberem novas imagens. Meu companheiro cinegrafista e motorista pronto para a jornada. Lá fomos nós. Seria uma matéria simples, tranquila. Nada de confronto entre Policiais Militares e traficantes no morro; apenas o eterno consumismo, ainda mais crescente com a chegada do verão e das altas temperaturas. O palco seria o principal shopping da cidade. Local de encontro das famílias e de lazer para os desocupados.

Entre uma entrevista e outra, meus olhos vislumbraram uma caminhante pelos corredores estreitos e abarrotados de pessoas daquele shopping. Seria mesmo? Estaria mesmo ali tão ao meu alcance aquela que fora minha companheira, através de seus livros, por noites a fio, em trovas e versos, poemas e prosas? Não poderia ser. Tão ilustre, tão amada, tão admirada por mim e por todos, tão perto, tão acessível.

Terminei logo minha oitiva e me pus a procurar por ela. Desejava uma foto ao seu lado, uma recordação para a posteridade. Poder dizer a meus filhos e netos que eu conhecera Adélia Prado pessoalmente, até tirara uma foto ao seu lado. Quanta honra; a poetisa mais querida e admirada do país, ali, imortalizada em uma fotografia, ao meu lado.

Depois de muito a vi. Linda com seus cabelos brancos, seu ar sereno, semblante calmo, harmonizado, angelical. Minhas mãos tremiam; minha boca ressequida, minha mente em confusão. Ela estava ali, a poucos metros, a musa de minha adolescência, dona dos versos que me faziam sonhar, acreditar em um mundo melhor, cheio de encanto e poesia.

Com muito custo aproximei-me, não sabia muito bem o que iria dizer. Eu, formada em jornalismo, cheia de si, decidida, tremulando diante de uma mulher comum, professora de meus pais, amiga dos amigos comuns de meus antepassados. Nenhum ser extraterrestre, apenas uma mulher cheia de sentimento, que dominava as palavras e traduzia em versos aquilo que era tão caro a nós simples mortais. Aproximei-me mais, gaguejante, voz sumida, criei coragem e enfim a pedi para tirar uma foto ao seu lado.

Surpresa, dor, decepção. Ela disse não. A poetisa simplesmente disse agora não. Vi o mundo desabar e o chão se abrir sob meus pés. Ela disse “não, agora não, outra hora, estou com pressa” e se foi como se fosse a coisa mais normal do mundo, para ela deve ser, para mim não foi. Foi talvez a maior decepção já sofrida. Não pelo não, mas pelo não de quem foi. Aquela que expressa em suas letras doçura, ternura, amor, carinho, sentimentos que acreditei de fato existirem, mas descobri, da pior forma possível, existirem apenas no mundo da fantasia, na literatura, no mundo do faz de conta.

Luciano de Assis
Enviado por Luciano de Assis em 31/10/2012
Reeditado em 31/10/2012
Código do texto: T3961102
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