Maricília

Maricília chegara meio tonta à casa. Meio tonta era pouco. Chegara completamente feliz. Inevitavelmente feliz. Esfuziante e serelepe, ela diria.

Já na porta da entrada chamara a mãe e os irmãos aos gritos e anunciara:

- Acabei de ganhar um livro. Ganhei um livro na escola. O livro de uma autora viva, vivinha da silva...

A mãe e os irmãos se entreolharam interrogativos e sem entender nada.

- Meu Deus, ainda existem autores vivos, bons autores vivos e boas histórias, continuara ela como num êxtase ou um transe mediúnico.

Maricília sempre gostara de ler. Lá pelos oito anos, logo que aprendera a escrever, passara a transformar em palavras muitas de suas ideias e sentimentos. E isso acontecia aonde quer que ela se achasse ou fosse: numa folha de caderno, no papel que servia para embrulhar o pão que o pai trazia à noitinha ou na parede clara junto de sua cama logo que os irmãos adormeciam. Nesse caso, assim que a manhã nascia, Maricília corria a apagar os muitos versos de pé quebrado ou não que acabavam se sobrepondo uns sobre os outros e tecendo uma mancha escura naquele canto do quarto.

Mas fora mesmo de uns tempos pra cá que ela se pegara num desejo real de se tornar escritora. Escritora de renome e sucesso, com tudo o que uma escritora teria de direitos e obrigações.

Por esse motivo ela ultimamente vinha se dedicando com muito afinco e dedicação às aulas de português. Preocupava-se, sobretudo, em retratar as coisas da forma mais clara e correta possível. Às vezes, porém, punha-se a corrigir as pessoas com quem tinha convivência mais próxima e quem acabava sofrendo com isso eram seus irmãos Pedro e Marcos.

- Mas é só um livro, menina! – declarara a mãe pensativamente assim que pudera observar melhor o estado da filha.

- Não, mãe, não é só um livro. É um livro de uma autora viva. Viva – entendeu! Ela se chama Ana Elisa de Almeida Sales e a Ana Elisa está viva e em plena atividade artística. E olhe que ainda não fez nem quarenta anos. Todos os livros que eu li até hoje são de autores consagrados. Consagrados, mas também falecidos sem exceção. Grandes escritores e escritoras – é bem verdade – mas todos mortinhos da silva. E eu supus então que todos os grandes autores já estivessem mortos. Mas vem essa autora agora e me pega de surpresa: ela está viva, viva, vivinha da silva. E isso me diz claramente que eu também posso me tornar uma escritora.

Nos estudos de literatura Marícilia acabara por concluir que todos os bons romancistas e poetas já estavam mortos, naturalmente estar mortos: Machado de Assis, José de Alencar, Cecília Meireles, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Lima Barreto e muitos outros. Sem contar os estrangeiros, Julio Verne, Madame de Stael, Balzac, Baudelaire, Melville e Dostoievski. Decerto não existiam mesmo bons autores vivos.

E o detalhe é que fora a própria autora quem lhe dera o tal livrinho de poesias. E ainda escrevera numa letra miúda na parte superior da folha inicial da obra uma pequena dedicatória:

“Para minha prezada amiga e futura escritora, Maricília Chagas Beltrão, com um abraço carinhoso da Ana Elisa A. Sales. De escritora pra escritora!”.

Talvez poetisa tivesse percebido na menina algo peculiar em seu modo de falar ou se expressar por escrito. Talvez tivesse entrevisto na adolescente uma coisa qualquer que assistira em si mesma anos atrás. Talvez, finalmente, quisesse apenas fazer-lhe um agrado, como a natural reação de um ídolo para com uma fã. O fato é que aquele encontro e aquela dedicatória tiveram todo um efeito na vida futura de Maricília.

- Foi a própria autora quem colocou a dedicatória, mãe! – voltara a adolescente com toda a carga – Uma autora viva, vivinha da silva, insistia.

Durante a palestra, Maricília era só ouvidos e olhos para aquela autora viva e resplandecente sentada diante de si numa mesa disposta no centro do auditório e de onde ela lançava de vez em quando olhares enviesados na direção da menina e palavras recheadas de uma sabedoria especial que lhe enfeitiçavam a mente e o coração.

Ana Elisa fora convidada a fazer uma palestra na escola estadual frequentada por Maricília e acabara literalmente por fascinar a menina. Maricilia não despregara os olhos da escritora e se encontrara muito ansiosa durante todo o tempo. Terminada a palestra e aberta a possibilidade dos ouvintes fazerem perguntas para a palestrante, Maricília aproveitou a deixa e o pequeno silêncio que se estabelecera por um segundo no recinto para praticamente entabular um verdadeiro monólogo com a autora.

Passados uns quinze minutos, praticamente havia sobrado na sala a autora, as organizadoras da palestra que eram algumas das professoras da escola e a Maricília. E fora nesse momento que a menina se lembrara das palavras de outro escritor já falecido a quem admirava muito, o argentino Jorge Luis Borges. Ela se lembrara de ter lido em algum lugar uma das famosas frases do escritos afirmando que somente os livros escritos a mais de cem anos deveriam ser lidos.

Mas não – pensara a menina discordando completamente da ideia do argentino – as coisas não eram daquela forma não. Existiam bons escritores vivos que produziam na atualidade uma literatura da melhor qualidade. E a Ana Elisa era a prova viva daquele fato. Aliás, vivinha da silva.

Foi então que a autora solicitara que a adolescente se aproximasse e se assentasse junto a ela na mesa em que se encontrava. Poderiam conversar melhor uma vez que os demais alunos já haviam se retirado da sala.

Fora dessa forma que Maricília travara conhecimento pela primeira vez em sua vida com uma autora viva e em atividade. E não demorou muito para que ela concluísse para si mesma e para a Ana Elisa:

- Quando crescer quero ser assim como você...!

- Assim como – perguntara a escritora - viva, vivinha da silva?

- Não, respondeu-lhe a menina. Eu quero ser exatamente como você é. Eu quero dar palestras e falar sobre os meus textos. Gostaria de saber interessar e comover aos leitores e aos ouvintes que forem ouvir minhas palestras. E, mais que tudo, desejo escrever bastante e ser muito feliz por toda a minha vida...