Reflexos

Pedro desceu a rua, vindo do ponto de ônibus. No caminho, lamentava-se pelo cansaço de mais um dia de serviço; demorava cerca de uma hora no retorno para a sua casa. Voltava certo de que não teria novidades. Entretanto, observou na garagem mais um carro e viu o seu pai feliz comentando com a sua mãe:

— Sofia, você não sabe, não tem idéia da felicidade que estou sentindo. Afinal, estou concretizando um objetivo de três anos de luta!

Ela estava ao lado, observando o carro com uma certa preocupação. Carlos fala com ela sem ao menos olhá-la. Quando o escutou repetindo a frase, ela vira-se para ele e, fitando-o nos olhos por um momento intenso, procura descobrir o que se passava naquela alma.

— Mas o que é isso, Carlos? Sabe que estamos juntos também nisso... Quando foi que nossos sonhos passaram a ser apenas teus? Por acaso eu também não trabalho? Dividimos todas as responsabilidades, não é?

— Hei, chega! Desculpa, tá? Você tem razão. Nós vencemos, ok? Tá melhor assim?

Eles agora discutiam, simplesmente ignorando a presença do Pedro. Então, ele joga a mochila sobre o banco da garagem e interrompe:

— Ô... Cheguei. Que carrão bonito... Vou dar uma banda hoje com ele, falô véio? - Pedro vai para dentro de casa e o casal se entreolha, retomando a discussão.

— Tá vendo? “Isso aí” é o seu filho, Carlos!

— Que segue a tua boa educação, minha querida...

— Ok... Vamos ver se eu entendi. Quando ele passou no vestibular, você fez um churrasco com os amigos e comemorou... - a sua irritação era nítida; ela seguiu falando.

— Naquele dia você o exibiu como um troféu. Agora que ele mudou até a linguagem em razão das amizades, a culpa é da educação que eu dei? Dos erros eu serei a única responsável?

Da sensação de injustiça que ela sentia brotaram lágrimas em seus olhos, escorrendo por sua face. Deixou Carlos a sós, que mostrava pouca atenção ao que ela falava, e tampouco observou que ela chorava. Ele estava fascinado com o carro; todo seu ser vibrava de contentamento. Dever cumprido, assim pensava.

Pouco depois de ela entrar na sala, ligou a televisão e começou a assistir à novela. Ele caminhou para sala e retomaram a discussão; ou melhor, ele reclamava de Pedro e ela pouca atenção prestava, enquanto assistia à novela.

Preparando-se para ir à faculdade, Pedro não interferiu na discussão dos pais. Sua preocupação era logo “vazar”, como ele dizia.

— Bom... É o seguinte: tô indo! Vou pegar o carro novo... Fui!

Saiu sem mais nada dizer, seguindo como sempre seus impulsos e sem nenhuma ponderação. Nesse ínterim, Carlos e Sofia continuavam:

— Escute, por favor... Me entenda! Porque você não tenta conversar com ele, Carlos? Estou cansada de ser colocada contra a parede!

— Sofia, preste atenção, você é quem deve entender. É só você quem ele procura. Não viu? Ele nem sequer fala comigo quando chega!

O desentendimento entre aquelas pessoas fazia parte do cotidiano. Cada um deles, na melhor das hipóteses, cuidava apenas dos seus interesses pessoais. Todavia, Pedro tinha uma forte motivação interior para suas atitudes. Buscando sempre sua própria satisfação, encontrava justificativas para tudo. Depois dos acontecimentos ele criava boas desculpas, mesclando fatos concretos com alguns elementos da sua imaginação e trazendo, assim, credibilidade ao que afirmava.

Quando Pedro retornou à sua casa já eram três horas da madrugada. E mais uma vez justificava-se, sentado com os pais na sala de estar. Pegou o casaco e levantou-se bruscamente do sofá.

— Vou me deitar... Já tentei me explicar, mas você não quer me entender! Como vamos fazer, eu não sei... Olha só meu pai, estava chovendo forte e o carro derrapou, já falei! Tá bom que capotei o carro; bebi demais e não podia ser diferente... Me dei mal, só isso. Amanhã a gente se fala, pô! Passei uma hora me explicando pro Delegado. Dá um tempo, vai!

Retirou-se da sala, indo para seu quarto. Seu pai permanecia calado e irado; a tudo ouvia e assimilava como mais uma prova da irresponsabilidade do filho, assim concluía. Passou mais um tempo na sala, junto à esposa, que a tudo escutava calada. O choro tomava seu rosto, eliminando aquela felicidade que sentira. Os olhos apertavam-se e as lágrimas corriam soltas...

— Carlos, porque chora? É apenas um carro batido! O Pedro nada sofreu! Veja bem, olhe por um ângulo melhor: ele vive bebendo de noite e, mesmo depois da faculdade, e sempre dirigiu em seguida à bebedeira... Por sorte não aconteceu coisa pior!

— Tá bem... Teu otimismo poderia imaginá-lo vivendo com mais responsabilidade, não acha?

Sofia olhou-o com um pouco de bom-humor, raro nesses momentos, se bem que era quase um humor negro. Disse-lhe:

— Queria eu que fosse você quem estivesse bêbado e batesse o carro... Como gostaria de ser tratado? Vamos dormir, vamos... Já é quase manhã de sábado e precisamos descansar, não acha? Amanhã veremos o que fazer.

Carlos aproximou-se um pouco mais dela, intimidando-a com olhar acusatório; em tom ameaçador falou lentamente, soprando as palavras à Sofia.

— Bom... De amanhã não passa! Deixarei que ele acorde e vou ter uma conversa definitiva!

Carlos deitou-se. Ao lado de sua esposa, fiel companheira de tantas alegrias e dificuldades, sentia-se um pouco melhor e menos perturbado com o acontecido. O que ele realmente considerava um problema para si mesmo – e sempre relevava este fato – era estar inteiramente ao lado dela; com o corpo, alma e coração voltados a ela.

Ele esteve por horas esperando notícias do filho. No início da madrugada, quando assistia ao telejornal sobre acidentes na Marginal Pinheiros, preocupara-se em saber como estava Pedro. No entanto, quando ele chegou e logo foi lhe despejando uma infinidades de desculpas, sem ao menos lhe dizer boa noite ou cumprimentá-lo, sentiu-se traído. Imaginava que o filho devia ter por ele a mesma consideração que oferecia. Ele queria, enfim, reciprocidade num sentimento que era só seu e totalmente fundamentado no seu egoísmo.

Sem muita demora Carlos adormeceu. Apesar da situação estressante, sentia-se aliviado por rever Pedro ileso do acidente, ainda que não admitisse isto nem a si mesmo. A sensação de relaxamento que sucedeu àqueles momentos de tensão lhe trouxe um sono perturbado, povoado de sonhos.

Viu-se em sua infância, projetando-se como filho do Pedro; ele era então seu pai e não seu filho. A casa onde viveu quando menino era destas antigas, com quintais enormes. Dispunham-se neles reduzidos pomares – maravilhosos aos paladares juvenis – e espaços onde a alegria nascida de brincadeiras perpetuava-se na memória. Inconsciente e ressonando, seu sono avivava lembranças criando situações com elementos atuais e reminiscências da sua mais tenra juventude.

Carlos estava em seu quintal colhendo frutas; surge correndo Zequinha, seu companheiro das estripulias e correrias, todo esbaforido e falando em desespero:

— Vamos, vamos, chegou o circo! - gritou Zequinha, esbaforido - Tem até macacos! Corre, vem logo comigo! Venha, quero ir vê-los!

Pedro agitou-se; refletindo em si a alegria incontida de Zequinha, respondeu de pronto.

— Tô indo! Também quero ver se chegaram as girafas!

As casas daquela vila divisavam umas das outras por cercas feitas em plantas chamadas flagras; elas tinham troncos retos, folhagens juntas e não possuíam galhos; estas cercas verdes tornavam os quintais do menino Carlos e os do seu amigo quase um só. Passavam de um ao outro lado se esgueirando por entre as plantas. As meninices eram facilitadas e as amizades faziam-se com cumplicidade maior, intensificada pela convivência e troca de experiências; a época dos muros altos com as crianças presas entre eles não havia ainda chegado.

Foram em desabalada carreira até um largo próximo ao final - ou começo - da cidade, onde o circo estava instalando-se. Andaram próximos às armações das tendas, imaginando como ficariam depois de montadas. Quantos palhaços o circo teria? Será que trouxeram leões? Estas e outras perguntas pululavam em suas mentes, já ávidas por novidades. E só observando cada detalhe seriam respondidas!

— Você viu, Zequinha? Parece que encurtaram as patas da girafa! Seu pescoço continua grande, mas ela está mais baixa!

Dois anos passaram-se entre essa e a última visita do circo à cidade. Ambos cresceram e a girafa tornou-se menor, é claro. Tudo era questão do ponto de observação que dispunham. Bem como o macaco da vez anterior era enorme, quando comparado com este! E tinha o realejo. O homem bigodudo e de farda azul era o mesmo. Mas, o papagaio era outro, com um verde todo especial. Era lindo... Cada vez que o homem parava de rodar a manivela ele descia do poleiro e tirava com o bico o cartão. Suas comparações e análises seguiram-se a esmiuçar as atrações do circo. Perguntavam-se quem seria o palhaço, agora disfarçado de gente normal. Tiveram vontade de ficar aguardando para ver quem é que tiraria o disfarce e voltava a ser o palhaço. Mas, não haveria apresentação hoje. Só amanhã... Suas infindáveis perguntas, mantendo as duas mentes ocupadas, tornaram o tempo veloz. Lá ficaram do início da manhã até o final do dia espreitando tudo e todos no circo. Com o passar das horas, tamanha era a empolgação que nem mesmo fome sentiram. As sensações intensas que tiveram supriram suas almas e seus corpos, entorpecendo-os com alegria. Nem sequer sentiram qualquer falta de alimento.

De repente, Zequinha quase grita:

— Carlos, olha lá o seu pai! Está chamando você! O que ele está fazendo junto com o guarda?

Carlos sempre admirou o esmero com o qual o guarda da cidade vestia sua farda. Olhava aqueles imensos botões e imaginava o quanto o guarda devia sentir orgulho de possuí-los; se os seus, cerzidos junto à camisa, eram bacanas mesmo pequenos, imagine como seria ter uma roupa com aqueles imensos botões dourados? Desta forma, o respeito e admiração pelo guarda surgiam junto com o brilho daqueles botões de latão ao sol, que agora se aproximavam ao lado do Seu Manoel.

No sonho o pai de Carlos, Seu Manoel, tinha as mesmas características físicas do seu filho Pedro; e Seu Manoel, suado e cansado, disse em tom ríspido:

— Meu filho! Desde o almoço estamos à procura de vocês... Vamos já pra casa! Você também Zequinha! Corre que teu pai está lá do outro lado te procurando. Pedimos até ajuda para a Polícia, tamanho foi nosso desespero!

Carlos olhou para o rosto transfigurado e enraivecido do pai e para os botões da farda do guarda. De repente eles perderam o brilho e mostravam-se sérios e acusadores. Abaixou a cabeça e seguiu o pai para casa. Quando lá chegaram, ele foi surrado com uma cinta de couro. Apanhou até que toda a raiva que seu pai sentia desaparecesse em meio aos gritos e choros, na fiel aplicação da crueldade que julgava necessária para a boa educação do filho. Houve pelo seu pai satisfação pessoal na aplicação do corretivo, achando-se na obrigação de fazer Carlos entender que deveria respeitá-lo através da imposição de castigos. A satisfação que seu Manoel teve só não foi maior que a alegria de encontrar Carlos feliz e sorridente no circo. Essa ambigüidade esteve presente na formação de Carlos e queria manifestar-se agora em sua relação com seu filho - e de fato sentiu vontade de surrar Pedro quando ele chegou em casa.

Tocou o despertador. Carlos acordou com o traseiro doendo, como se tivesse novamente apanhado do pai.

Seria preciso dar um corretivo ao Pedro? E se fosse, como poderia aplicar um corretivo? Nunca recorreu à violência e não acreditava nela como solução; e se ele estivesse no lugar do Pedro?

Observou Sofia que ainda dormia; pensou em beijá-la no rosto para acordá-la. Porém, ele levantou-se. Pouco depois resolveu antecipar os afazeres do café da manhã. Colocou a água para esquentar na cafeteira elétrica; trocou de roupa rapidamente e foi à padaria. Sofia adorava pães frescos e ele queria que ela estivesse mais próxima pela manhã. Queria o apoio dela e sabia que algumas atitudes matinais ajudariam. Voltando, dispôs sobre a mesa alguns pães, leite morno e algumas frutas.

Foi até o quarto deles e acordou-a, com um delicado e gentil beijo na face. Sofia abriu lentamente seus olhos. Sonolenta, mas não desatenta, virou de lado e resmungou, com a voz embargada de sono.

— Hum... Já sei... Quer alguma coisa, né? Aposto que até fez o café e arrumou a mesa! - Com voz pausada e triste virou do lado; cobrindo a cabeça, concluiu:

— Você, além de tudo, agora é previsível!

Ele fechou a cara e desceu, xingando:

— Vá à merda! Vou tomar meu café sozinho.

Ao contrário do que dissera, deixou de lado o café e aconchegou-se no sofá da sala, tamanho era o seu tormento pelas dúvidas. Poderia aplicar um corretivo? Não! Afinal, não educara seu filho desta maneira... E se ele estivesse no lugar do Pedro? O que Pedro faria ou falaria pra ele? Com estes e outros pensamentos, ficou prostrado no sofá até que Sofia levantou e dirigiu-se também à sala.

— Carlos, vamos tomar café... Desculpe pela demora. Vamos, benzinho...

Recebendo um ligeiro beijo de Sofia, um sorriso parcial brotou no rosto de Carlos; animou-se em acompanhá-la para a cozinha.

Pedro acordou próximo ao almoço e, logo depois, procurou pelo pai, sentando-se no sofá onde Carlos procurava ler o jornal de domingo.

— Paizão, eu preciso conversar. De todas que aprontei até hoje, essa foi a maior. Ainda bem que escapei ileso. Se eu continuar assim, pode ser que eu me meta em uma enrascada maior. Você sempre foi meu grande amigo... Vou considerar melhor isso a partir de agora! Não lhe trarei maiores transtornos. Sabe que eu te amo?

Assim, Carlos o olhou nos olhos e não pôde negar um perdão paternal. Abraçaram-se. Pai e filho reconciliavam-se; Carlos chamou-o para almoçar, junto a Sofia, a qual já os esperava. Enquanto Pedro almoçava, com o típico apetite juvenil, Carlos ponderava: "Pedro já é um homem... Imaturo ainda, mas um adulto! Fará vinte e um anos daqui a cinco dias...".

Em meio a esses pensamentos, - e entre uma garfada e outra-, disse em tom suave ao filho.

— Sabe Pedro, teu aniversário está próximo e gostaria que soubesse. Este carro que acabei de comprar - e que você capotou - era presente pelo teu aniversário.

Quando Pedro entrou na faculdade, o pai observou com atenção a dificuldade de ele chegar em casa a altas horas. Imaginava o momento no qual poderia presenteá-lo com um carro, facilitando-lhe o fim do dia. Com o passar do tempo, este desejo de ajudar o filho transformou-se na satisfação do próprio ego. E esse aspecto agora se manifestava nas atitudes...

Rapidamente o tom suave desapareceu e deu lugar ao ressentimento do desejo frustrado. Em rudes palavras agora dizia ao filho:

— Pedro, gostaria de saber. Porque sempre destrói o que construo para você? Tira o meu sabor de vitória, minha realização...

Pedro então se levanta exaltado. Caminha um pouco, quase saindo da sala. Vira e responde, em tom agressivo, totalmente exaltado:

— Que merda! Quando você vai entender que eu vivo? Eu tenho a minha vida! E se quer saber, vou fazer dela o que bem quiser... To saindo. Não dá nem pra almoçar nessa casa! Vou pra casa da Marta. Só volto quando me der na idéia!

Pedro namorava há algum tempo com Marta. Ambos tinham problemas de relacionamento com a família e serviam de amparo um ao outro; tentavam compensar a ausência de diálogo nessa proximidade. Chegando à casa da Marta ele a encontrou chorosa, com as lágrimas ainda quentes sobre a face, totalmente transtornada. Pedro a abraçou, enquanto ela soluçava.

— Meu, não agüento mais viver aqui... Quero sair fora, desaparecer... Será que não é possível viver?

— Que foi mina? Que é que rolou?

— Esse mala do meu pai me mandou embora de casa... E dessa vez, não fiz nada! Cheguei da faculdade meio grogue e ele disse, e continua repetindo, que não quer uma vagabunda bêbada em casa. Cê acredita? Falou isso ontem à noite e hoje já me dispensou duas vezes. Disse pra eu arranjar trabalho e me mandar daqui.

— É... Lá em casa eu também tô mal na fita. O velho comprou um carro novo. Ontem à noite, peguei sem pedir... Pô, tava zerinho e até sem placas. Fui num boteco - até nem fui à “facul” - tomei todas e capotei, deu perda total. Tô enrolado na delegacia! Tá mó clima no barraco!

Marta tinha a tendência de ser evasiva, tal como Pedro. Ficaram um pouco em silêncio, como se procurassem alternativas. De repente, Marta olha sorrindo para Pedro e comenta:

— Vamo dá um tempo disso tudo. A gente pode pegar umas roupas e viajar um pouco... Sei lá, meio sem rumo... Só mochila nas costas. Tá dentro?

— É isso aí. Não to nem aí... Mesmo! E é nessa que a gente vai.

Viajar. Diante da situação estressante optaram por fugir da situação. Pelo menos naquele momento, sentiram que se distanciar de todos era a melhor possibilidade. Dali a pouco, Marta já estava com a mochila nas costas.

— Vamos Pedro. Vai na tua casa e pega uma mochila com algumas roupas. Seguiremos qualquer direção, sul ou norte, tanto faz... Qualquer rumo serve!

Traçar um caminho inusitado em busca de sensações que lhes entorpecessem os sentidos, inebriados por acontecimentos inesperados. Comportamentos impulsivos tomam todo um ser e até contagia os mais próximo daquele coração afoito. Pedro e Marta uniram-se nessa empreitada. Morando na mesma rua que a sua amada, logo Pedro ressurgia diante dela com uma mochila nas costas. Estavam próximos a uma rodovia e seguiram em sua direção para pedir carona; e lá, na Rodovia Régis Bittencourt muitos caminhões passavam rumo ao sul do país. Um desses seguia apenas com o motorista, rumo a Iguape, litoral sul do estado de São Paulo, retornando de uma entrega de bananas ao Ceasa.

Elias era um condutor ao qual os caronas chamavam de uma boa alma; desses sujeitos sempre dispostos a ajudar alguém. Quando observou os dois à margem da estrada, sentiu vontade de ajudá-los. Parou um pouco à frente, e seguiu atentamente pelo retrovisor a aproximação dos dois caronas. Fitava-os tentando identificar qualquer possibilidade de perigo. Temia fosse uma armadilha e estava tenso, com seu semblante duro e fechado, na expectativa do lhe dissessem.

Pedro dirigiu-se a Elias de forma alegre e descontraída, porém respeitosa:

— Boa tarde! O senhor poderia nos ajudar? Estamos indo para sul, nos daria uma carona?

Elias olhou-os. Observou os rostos suados e francos dos jovens. O gestual direto e respeitoso de Pedro lhe inspirou confiança, demovendo-o da insegurança anterior. Sentiu que pareciam pessoas de boa índole. Enquanto passava a manga da camisa no suor que corria em sua testa, disse-lhes:

— Serviria o sul de São Paulo? Vou até um sítio próximo à cidade de Iguape, e de lá faltarão apenas vinte quilômetros até o centro. Se quiserem, subam...

No mesmo instante em que terminava de falar, abria a porta para os passageiros. Da boléia, observou-os circundando a frente do caminhão. Entrementes, um pensamento lhe corroía a serenidade habitual. Ponderava porque ali estariam dois jovens bem vestidos, de boa aparência e provável boa educação, lhe pedindo carona.

Pedro gostou da idéia. Quando não se sabe o destino, qualquer caminho serve. Ao espírito aventureiro, as novidades seduzem não pelo que de imediato apresentam, mas sim pelas surpresas que reservam. Abre-se mão da segurança do conhecido; o risco é parte de uma alma decidida a conhecer novas rotas.

O velho caminhão Mercedes 1513 de Elias ia devagar, mas seguia bem. Na boléia, entre as sacudidas dos inúmeros buracos e outras imperfeições da pista, pouca conversa mantinha-se. Elias, entretanto, gostava de falar e procurava sempre encontrar algum assunto. Era parte de sua personalidade conhecer pessoas e nutria também o gosto por escutar as pessoas. Deixava-as à vontade. Com um benevolente sorriso e um olhar franco, tranqüilizava quem estava consigo. Induzia-os ao diálogo com pequenas observações, enquanto sorria. Olhou para Pedro e comentou:

— Por acaso não estão em lua de mel, não é? Seria interessante alguém sair em lua de mel com mochilas e de carona!

Estando à vontade com as simpáticas palavras de Elias, Pedro esboçou em sorriso ameno e lhe disse:

— Olha, até que a idéia não é ruim! Mas não é o caso...

Com um sorriso evasivo, porém seduzido pela franqueza e cordialidade de Elias, Pedro disse seriamente:

— Quer saber mesmo o que nos levou a estar com esta mochila nas costas?

Fechou o semblante, num ar sério e compenetrado. Elias meneou a cabeça afirmativamente e mais uma vez olhava nos olhos de Pedro, fortalecendo a empatia inicial;

— Fique tranqüilo. Como é mesmo o seu nome?

— Bom, o meu é Pedro e esta é minha namorada Marta... Elias observou a ambos, ponderando sobre a necessidade real de ele saber sobre a vida alheia; até que ponto insistiria? Por fim concluiu:

— Olha, falem sobre os motivos desta sua viagem somente se julgarem que lhes fará bem. Elias então fitou os olhos de Pedro e percebeu-os um pouco choroso, com aquele brilho adicional da emoção; lágrimas contidas na alma perturbada e que ameaçavam rolar face abaixo...

Marta sentiu a insegurança de Pedro e intercedeu.

— Pedro, às vezes conversar pode nos fazer bem, meu amor!

Ela era perfeita nas indicações que lhe fazia; Pedro dificilmente deixaria de atendê-la, numa tentativa continuada de integrar-se a ela.

Pedro contou o que lhe passara em família, omitindo que bebera demasiadamente. Atribuiu à chuva a causa do desastre, não demonstrando sua responsabilidade. Entretanto, seu ouvinte era experiente; e, a cada inflexão ou mudança de tonalidade da voz de Pedro, Elias compreendia que havia algo a mais naquela história. Porém, deixou-se fazer de rogado. Em seu íntimo tinha a convicção de que a verdade acabaria surgindo - e mesmo quando se deparava com mentiras, com alguém tentando enganá-lo, considerava o quanto é terrível às pessoas teimar em não enxergar suas próprias verdades.

Descendo a serra, já passavam das três horas da tarde. Elias resolveu então parar para almoçar.

— Vamos parar um pouco. Há aqui perto um restaurante razoável, com comida barata e boa! E vocês serão meus convidados. Que acham?

O casal se entreolhou. Ambos se surpreenderam pela solicitude de Elias. Pedro interrogava-se: Por qual motivo aquele sujeito desconhecido lhes pagaria uma refeição? Entretanto, Marta logo respondeu, sem hesitar:

— Agradeço o convite! E realmente estou com fome. Pedro! Vê se não emburra!

Notou a praticidade de Marta. Numa situação tão atípica, restavam-lhe minguadas alternativas, principalmente porque dispunham de pouco dinheiro. Recompondo-se da surpresa e deixando de lado suas indagações, Pedro voltou-se a Elias:

— Será um prazer! Da forma como saímos de casa, sem almoçar, estou mesmo com fome...

— Ótimo! Respondeu Elias, e continuou: Vamos aproveitar e almoçar bem, em paz, aproveitando bem a companhia um dos outros. Com este gesto espero apenas cultivar duas boas amizades.

Logo em seguida o caminhão estacionava e desciam os três, já como se fossem velhos amigos, em busca de uma refeição e uma conversa ainda mais próxima. Assim que desceram ao pátio de estacionamento do restaurante, Marta resolveu por fim a uma dúvida:

— Elias, me perdoe pela pergunta que vou fazer... Mas estou intrigada demais para ficar quieta! Você sempre foi caminhoneiro? Pela tua linguagem é difícil imaginá-lo com pouca instrução - e isto é o mais comum nesta tua profissão...

— Vejam bem, - respondeu ele - saibam que existem simples motoristas de caminhões que lêem habitualmente, e bastante! Concluí apenas o que chamavam de ensino secundário. No entanto, me informo de muitas coisas através da leitura e, além disso, a própria vida é uma universidade a céu aberto. A cada dia temos um novo ensinamento... Basta que sejamos bons observadores! Concordam comigo?

Numa abordagem direta e franca, como lhe era de hábito, Elias pôde confirmar as suspeitas de Marta. Ele verdadeiramente procurava pelo aprendizado, partindo da observação apurada de sua vivência.

Marta suava em demasia; ao calor da tarde associava o cansaço da viagem na boléia do caminhão. Entretanto, escutava com toda a atenção e nem hesitou em responder:

— Nós dois estamos cursando faculdade e tampouco isso nos leva a expressar-nos corretamente. O senhor, por outro lado, nos fala naturalmente usando de expressões bem organizadas.

Elias estava influenciando até mesmo a linguagem deles, sem que Pedro e Marta percebessem.

Aos galhos verdes e frágeis é dado acompanhar uma suave brisa, moldando-se em conformidade com sua direção; porém, as ventanias ferozes os derrubam sem nenhuma compaixão. Assim pareciam-se aqueles dois corações agora próximos de Elias. Do mesmo modo, as espécies vegetais que buscam nutrientes em solos mais profundos e criam raízes mais fortes, resistem melhor a quaisquer tempestades. Elias parecia-se aos dois como alguém com uma sólida estrutura pessoal, calcada em forte filosofia.

Entrando no restaurante, os dois convidados logo perceberam a simplicidade do local. Nas mesas de madeira pequenas, forradas com plástico transparente por sobre uma toalha com quadrados vermelhos e rosados, havia galheteiros engordurados e empoeirados, evidenciando a pequena preocupação com higiene que tinham naquele restaurante.

O local tinha amplas janelas laterais, o que mantinha o ambiente bem arejado. Ao fundo ficavam dois bufês para auto-serviço, sendo um para os pratos frios e outro para os quentes. Elias, bem humorado, foi apresentando as instalações; gostava do local, apesar da discutível higiene das dependências. Enquanto mostrava o salão, direcionava-os à lateral da construção, levando-os à área onde estavam os sanitários.

Durante o almoço pouco falaram. Logo que retomaram a viagem, Pedro observou que o almoço de Elias fora uma refeição farta em carnes e rica em gorduras. Não deixou também de notar que antes daquela refeição, Elias tomara um aperitivo – a título de lhe abrir o apetite –, e algumas cervejas durante o almoço.

Talvez Elias estivesse enfastiado pelos excessos durante o almoço, mas o fato é que as conversas minguavam mais a cada quilômetro, até que cessaram. Pedro ficou então pensativo enquanto observava a estrada. No trecho pelo qual trafegavam, a pista era única e em mão dupla; em alguns trechos não havia sequer acostamento. Em algumas curvas passavam próximo aos veículos que vinham em sentido contrário. Desciam a serra ao mesmo tempo em que um temporal se anunciava no horizonte. As nuvens escuras de tempestade já eram visíveis. A tarde estava demasiada quente para a primavera; e Elias já avisara aos dois que era um sinal típico de que haveria uma bela trovoada. A pista esburacada não oferecia qualquer indício de que os cinqüenta quilômetros seguintes, em descida da serra, seriam de todo fáceis para o motorista.

Elias observava as mudanças de condições – de pista e de clima de humor dos caronas –, como algo perfeitamente normal. O mesmo tempero apreciado por paladares diferentes. Aos caronas, a tempestade que se aproximava – principalmente para Pedro –, deixava-os apreensivos; já para Elias era apenas mais um de seus retornos de viagem. A sensibilidade de cada um deles diferia em conformidade com as experiências pessoais.

Pedro, a exemplo de Elias, também excedera na quantidade durante o almoço. Ao mesmo tempo em que ficava apreensivo, começou a sentir a sonolência típica dos que comeram mais do que o suficiente. A tarde até então estava clara. Agora escurecia e os primeiros relâmpagos já se mostravam em meio a nuvens escuras. Elias ligou os faróis e as luzes da carroceria do caminhão, enquanto já se avistava à frente uma forte chuva. O tráfego não era muito intenso; mas, em razão da unificação das pistas, parecia muito maior. A velocidade do caminhão caíra o bastante para Elias considerar adequada. Os passageiros agora observavam – até um pouco assustados – a ventania, que balançava os galhos de árvores próximas à pista, e a chuva ressonando ruidosamente, tamborilando sobre a cabine do caminhão.

Pedro e Marta entreolhavam-se com freqüência, como se estivessem consultando um ao outro sobre os perigos que a viagem agora representava. Os limpadores dos pára-brisas entraram em funcionamento, com seu vai-e-vem monótono e cadenciado, envolvendo Pedro em meio a sua sonolência; ao mesmo tempo sobre a boléia havia o barulho da chuva, os vidros fechados e o ar abafado. Tudo colaborava para aumentar o sono de Pedro. Suas lembranças da noite anterior começaram a juntar-se ao que lhe acontecia neste momento. Num perturbado cochilo, observava os veículos em sentido contrário. Nas curvas mais acentuadas, os fachos de luz vinham em sua direção e pareciam tocar o interior do caminhão. Lembrava-se do acidente e as cenas lhe vinham à mente, misturando-se com o que de fato acontecia naquele instante. Começou a suar frio e sua respiração tornou-se ofegante, tamanho era seu pânico. Elias o vê de lado e pergunta à Marta:

— Ô moça, ele está bem? Parece dormir, mas é nítido o quanto está intranqüilo!

— Não se preocupe. Ele não teve uma boa noite ontem...

A pista acompanha a sinuosidade da serra e proporciona uma bela visão, juntando a preciosa vegetação da Mata Atlântica ao belo relevo da Serra do Mar. À sua esquerda está um despenhadeiro e à direita uma das encostas da montanha que abriga em suas curvas um caminho transposto em rodovia. Em alguns pontos, essas características, aliadas à falta de calhas para escoamento, permitem a formação de pequenos riachos que atravessam a pista, acompanhando as depressões do asfalto.

Pedro estava totalmente envolvido naquele perturbado sono. Carros e caminhões os ultrapassavam e a tudo ele assistia. Estando quase inconsciente de sono, novas cenas dominavam seus pensamentos. Sua imaginação associava o que lhe ocorria agora aos fatos da noite anterior...

... A chuva cai torrencialmente, descendo com rapidez do sopé da encosta. O veículo segue em alta velocidade, a mais de cento e vinte quilômetros por hora; um riacho desce rápido por sobre uma depressão ao tempo que as rodas em giro rápido encontram-se com ele. Acontece então da frente do veículo deslocar-se para a esquerda. Deslizando por sobre a água em direção à pista contrária, desesperadamente o motorista aciona o freio. Essa atitude o faz travar de imediato as rodas traseiras, girando agora em torno do próprio eixo de gravidade. Atrás dele vem um furgão frigorífico carregado e o atinge na lateral, tombando-o e capotando por várias vezes. Assim que ele pára, vem ao seu encontro um outro veículo, em que Pedro vê o seu pai dirigindo; tentando desviar-se, derrapa saindo da pista, batendo de frente à proteção lateral. Esse impacto violento o faz cair em seguida na ribanceira, parando em cima de uma árvore a uns vinte metros abaixo do nível da pista...

Pedro sentava-se ao lado de Elias e tinha a cabeça no ombro de Marta. Elias observa suor frio e gritos roucos, abafados no sono inquieto de Pedro, em cuja face haviam lágrimas misturadas ao suor. Liga a ventilação da cabine para resfriá-la, pois estava abafada porque mantiveram as janelas fechadas por causa da chuva.

— Marta, eu vou parar no final da serra para tomar um café, o que pode ser bom também pro Pedro. Vejo que ele está passando mal.

O caminhão passa por um dos inúmeros buracos e o solavanco faz Pedro acordar, olhando assustado para Marta e Elias. Enquanto aproximavam-se do local onde pretendia parar, Elias comentava sobre as dificuldades que tinha em seu sítio. Marta sorvia cada informação, admirada com as explicações minuciosas que recebia e pela atenção com que ele a tratava. A voz animada e otimista dele preenchia sua mente, prendendo a totalidade de sua atenção.

Pedro, entre os dois, apenas ouvia trechos do diálogo e de certa maneira algo o incomodava, além do sono perturbado que tivera. Sentia que alguma coisa o abandonava e, no entanto, estava impassível face aos acontecimentos recentes, como se fosse um mero espectador no olho de um furacão. Tudo girava, coisas subiam e outras caíam, enquanto do centro ele observava, apático e complacente, na calmaria típica do epicentro do tufão.

Passaram numa ponte sobre o Rio Juquiá e Pedro lembrou-se de um catálogo turístico sobre canoagem, onde o Rio Juquiá é citado. Observando o rio, notou que um caiaque o descia; seus ocupantes controlavam o destino do pequeno bote, mesmo a duras penas. Impeliam os remos junto às laterais e traseira, direcionando-o, de tal forma a evitar que o caiaque atingisse as pedras. Mesmo em meio a forte corredeira, lhe imprimiam o destino que queriam. "Faltam-me remos... Simplesmente estou descendo pelo rio... O que será que ele me reserva?". Refletia enquanto Marta lhe perguntava:

— O que acha, Pedro?

— Do quê? Pedro a olha assustado, voltando dos seus pensamentos. Estivera absorto e não prestara atenção ao que Marta lhe falara.

Marta o contempla de forma carinhosa, querendo ampará-lo. Dona de uma voz macia, o timbre variava de acordo com seus propósitos. Inclina-se, apoiando-se com o queixo em seu ombro e diz suavemente, bem próxima ao ouvido:

— Cara, eu estava falando e você sequer ouviu? Onde estava sua cabeça? Meu, que é que tá acontecendo?

Em resposta, ele apenas responde, quase num sussurro:

— Deixe, vá, me deixa quieto. Eu tô legal.

A falta de energia manifestada por Pedro começava a contaminar sua relação com Marta. Ele já não lutava mais, entregando-se às circunstâncias.

Marta conhecera Pedro havia muitos anos, desde que ele tornara-se seu vizinho. Quando ambos iniciavam o curso de Publicidade, ficaram cada vez mais achegados e principiaram o namoro naturalmente, entre uma conversa e outra. E juntos vinham amadurecendo, conhecendo a vida e questionando valores com novas descobertas, incluindo-se nisso a própria noção um do outro. Esse processo, entretanto, provoca também certos desentendimentos. E ela ainda não o vira tão concentrado, ensimesmado, desatento às pessoas que estavam ao seu redor. A indiferença com que Pedro lhe respondera a fez sentir uma profunda mágoa; dessas nódoas que permanecem na memória. No exato momento em que ela foi repelida, surgiram essas marcas profundas. Ela desejava tão somente interação, enquanto ele a excluía, deixando-a sem compreender o que se passava em seu coração.

Após a parada planejada por Elias, Pedro aprofundou-se em seu silêncio, trancando-se em seu interior. A chuva diminuíra, restando o suficiente para que surgisse à frente deles um lindo arco-íris. Logo após o trevo do acesso que liga a BR 116 à BR 101, há uma longa reta num trecho onde as poucas curvas são menos acentuadas. Temos no horizonte e nas laterais, bem distantes da pista, algumas montanhas. Nuvens escuras ainda estavam no céu da tarde e da boléia os três avistavam esse belo cenário. Vistas ao longe, pequenos pontos amarelos coloriam as elevações, juntando-se ao verde predominante. Por entre as nuvens, o Sol surgia ocasionalmente e no asfalto, que agora passava rapidamente sob o caminhão, a chuva evaporava. Cruzaram o município de Miracatu, chegando ao trevo de Biguá e à saída no km 400 da BR 116, entrando na Rodovia Casimiro Teixeira. A Serra de Biguá, como é conhecida esta porção da Serra do Mar que irão atravessar, está localizada entre os municípios de Miracatu e Iguape. Avista-se da pista sinuosa algumas cachoeiras descendo vigorosamente sobre as pedras, em razão das chuvas recentes. A natureza, intocada nessas paragens, se expressa com todo o seu vigor, onde belas Caqueras Amarelas, em flores, colorem com sua beleza as lindas encostas, demonstrando a exuberância da Mata Atlântica. No ponto mais alto da Serra de Biguá é por onde, naquela Rodovia, divisam-se os municípios de Iguape e Miracatu. Para chegarem a esse divisor existe um trecho longo em aclive, o qual exige esforços maiores do velho motor do caminhão. Elias, contudo, diverte-se; uma alegria maior lhe toma quando passam pelo divisor, sentindo-se já em casa.

Em face da linda paisagem ao seu redor, Marta estava entre um deslumbre e outro; porém, procura tirar Pedro daquela apatia toda, desejando dividir suas sensações.

— Pedro, hei! Olha... Já viu tanta beleza junta? Observe que a pista tem um estreito acostamento. Nas subidas, quando o caminhão segue mais lento, é possível até mesmo avistarmos orquídeas nas árvores próximas. Não é lindo?

Pedro confirma, balançando afirmativamente a cabeça. Ela o fita nos olhos, percebendo-os chorosos, avermelhados e perdidos em si mesmo. Tudo o que Pedro sentia eram dores pelas feridas abertas, das quais não conseguia sequer falar. Conservou por tanto tempo a tendência de se esquivar dos problemas, que esta lhe ficou impressa em todas as atitudes. Ele sequer se percebia.

Marta já não encontra uma maneira adequada, a seu modo, para abordá-lo. Então, resolve questionar Elias.

— Elias, me diz... O que Pedro poderá achar em Iguape que lhe fará bem? Algo assim que o faça sair desse transe, dessa tristeza tão aparente...

Elias apenas sorri, por alguns momentos. A franqueza e a docilidade de suas palavras - e apenas elas - poriam alguma esperança no coração daquele jovem? A prudência lhe recomendava que os aproximasse devagar de suas idéias, considerando o quanto Pedro ficara arredio. Entretanto, sua ansiedade em vê-lo melhor o impelia a falar logo, de imediato.

— Meu amigo, você precisa encontrar a si mesmo, situando-se em tudo que está lhe acontecendo, não acha? Num lugar como Iguape, pela tranqüilidade daqueles casarões históricos, veremos quanto o tempo pode passar sem que ocorram mudanças substanciais. Ao mesmo tempo, verão o quanto um simples canal ligando um braço de mar a um rio pôde condenar a economia local.

Pareceu-lhe que Pedro despertava. Começou a prestar atenção no que Elias falava. Pedro interessava-se por cidades históricas e há tempos não visitava uma. A vida lhe reservou um momento difícil para lhe oferecer, em contrapartida, uma bela oportunidade.

Elias continuou ainda mais enfático, visto o quanto gostava da região em que vivia.

— Há mais de cento e cinqüenta anos, Iguape tinha um porto no Rio Ribeira e outro no canal do mar pequeno; o principal produto agrícola aqui produzido na época era o arroz. As cargas desciam o Rio Ribeira e precisavam atravessar por terra um trecho até os armazéns próximos ao chamado Porto Grande, onde seriam reembarcados para seus destinos. Consideraram que era preciso melhorar a forma de transporte entre os dois portos, agilizando o transporte entre o Porto do Ribeira e o Porto Grande. O o interessante é que chegaram a esta conclusão: seria necessário abrir um estreito canal, de apenas um metro de largura - o suficiente para as canoas passarem e descarregarem suas cargas, já próximas aos armazéns

Pedro ouvia-o atentamente. O assunto, que lhe era totalmente novo, despertava a curiosidade. Elias fez uma pequena pausa, iniciando um trecho de descida onde precisava de atenção redobrada. Havia imperfeições na pista e uma descida abrupta de quase três quilômetros, incluindo-se aí um local onde o asfalto cedeu e um remendo grosseiro unia as partes rompidas pelo deslizamento de encosta. Desse local se têm visão privilegiada do horizonte próximo àquela cadeia de montanhas, em razão do acentuado declive, onde em longo trecho a pista segue em lateral às montanhas. Pedro protestou, curioso que estava.

— Vamos Elias, continue, quero saber no que deu esta história. - E de fato ele estava estimulado e inquieto quanto a informações e referências do local que iriam conhecer.

— E aconteceu da vazão constante do Rio Ribeira provocar erosão nas margens, enquanto em seu curso normal, dali até a foz, perdia forças em volume e vazão.

Abruptamente Pedro interrompe Elias.

— Como assim? Mudaram o curso do rio? O que aconteceu com o canal?

— Calma... Escutem o que aconteceu. A areia provinda daquela pequena passagem foi assoreando o canal; hoje aquela vala de um metro de largura tem mais de quinhentos metros. Chama-se Valo Grande. O braço de mar está totalmente assoreado e surgiram manguezais próprios do encontro entre a água doce e a salgada. Pelo Rio Ribeira entravam pequenos navios que escoavam a produção regional. O arroz produzido na região de Iguape chegou a receber prêmios no exterior pela sua qualidade. No Mar Pequeno, braço de mar existente entre Iguape e Ilha Comprida, era intenso o movimento do Porto Grande. O meio ambiente, de certa forma, se recompôs, adaptando-se a essas condições. Vou falar agora de aspectos mais interessantes, os que tratam da ineficiência de obras públicas impensadas e mal planejadas.

Marta o interrompe, querendo esclarecer.

— 'Pera aí, cê tá dizendo que em seguida fizeram outra obra dessas?

— Não, não é bem o caso. Vou explicar melhor. Com o alargamento daquela pequena vala, Iguape tornou-se uma ilha, costeada de um lado pelo Ribeira e outro pelo Mar Pequeno. A travessia do Valo Grande acontecia por balsa para atingir a continuação desta estrada onde estamos; aliás, ela chegará novamente à BR 116, em direção ao estado do Paraná, depois de passar por Iguape e pelo município de Pariquera Açú. Para ligar o trecho interrompido, utilizaram-se de balsas por mais de um século. Em 1978 construíram uma barragem e o Rio Ribeira voltaria ao seu curso natural. Simplesmente bloquearam a passagem do Ribeira, forçando-o a retomar seu curso. Porém, o antigo leito do Rio já estava todo assoreado até a foz. Vieram as primeiras cheias e uma vasta planície foi alagada, condenando todas as plantações que haviam, pois a cheia não tinha períodos específicos, aos quais se poderia ajustar a agricultura. Surgiram inúmeros problemas sociais e desabrigaram-se inúmeras famílias. As pessoas tiveram que sair de suas casas, deixando para trás seus pertences. Perderam animais de criações, plantações, móveis e até a própria cama. Algumas pessoas perderam até mesmo, junto aos estragos da cheia, a coragem para viver nesta região. Toda uma geração de jovens surgiu sem perspectivas quaisquer. Mataram-lhes as esperanças de progresso profissional nesta região, e esse foi sem dúvida o grande prejuízo. Em 1990 ocorreu uma grande cheia, a maior delas; nela, até a estrada, no percurso entre a ponte sobre o Rio Ribeira e cidade, ficou alagada em certos pontos, além de vários bairros também no perímetro urbano. Resolveram então estourar a barragem para eliminar as cheias. Novamente haveria forte impacto sobre o meio ambiente, considerando que por doze anos pelo Mar Pequeno circulara somente água salgada. Todo o estuário se recompusera, voltando à sua função original, a de possibilitar a perpetuação da vida marinha. Com a barragem rompida fizeram uma ponte baixa que receberia comportas, e essas se abririam somente quando o Ribeira estivesse com excessivo volume d'água. Porém, até hoje não concluíram a obra, comprometendo a vida do estuário formado pelo Mar Pequeno.

Os dois escutavam atentamente. Quando Elias parou de falar, seguiu-se um silêncio reflexivo. Pareciam absorver toda a história, tentando formar em suas mentes o cenário descrito. Pedro estava agora um pouco mais tranqüilo, ocupando seus pensamentos com as informações que recebeu.

Um horizonte diferente lhes surgia logo após descerem a serra. Pequenas elevações eram contornadas e outros sofreram cortes para a passagem da estrada. A sinuosidade de baixa intensidade permitia enxergar trechos de ângulos diferentes, e a viagem seguia atravessando a região ocupada com pequenas propriedades. Pedro já visitara algumas regiões onde observara a presença maciça de monoculturas, tal como a de cana de açúcar. Quando atravessava por essas estradas, imaginava-se apenas passando em meio a um imenso canavial. Esta era diferente por que havia vários bananais, após a descida da serra, que predominavam na paisagem. Mas, era possível notar outras culturas, tal como o chuchu e o maracujá, bem como pequenos rebanhos de bovinos e bufalinos.

Marta avistava ao longe uma cadeia de pequenos cimos, à esquerda do rumo que tomavam. Alguns eram altos e destacavam-se dos demais, formando uma seqüência disforme.

— De onde são aquelas montanhas? Também é município de Iguape? E que tem lá? Um bairro, vila ou coisa assim?

Extasiada com o panorama, disparava várias perguntas a Elias, que respondeu com a maior presteza. Sentia-se orgulhoso dos encantos naturais e amava sua terra, a ponto de empolgar-se quando a descrevia para alguém. Faria de tudo para sua terra tornar-se um local maravilhoso. Queria sempre se informar mais e mais, ver e rever seus locais, embebido pelo encanto que sentia. O interesse de Marta despertava em Elias as melhores sensações. Ela o fitou por alguns instantes, enquanto aguardava as respostas.

— Olha, vou tentar responder a todas essas perguntas de forma organizada, tudo bem? Eu fico feliz quando conheço pessoas interessadas em apreciar nossa região. A história desta terra é anterior à chegada dos europeus neste continente, considerando que esta costa era densamente povoada muito antes deles. Afinal, na época inicial da chamada “colonização”, a população existente na América do Sul era estimada em 12 milhões, muito além do que havia em Portugal. A respeito da sua pergunta, aquelas montanhas fazem parte do complexo do Itatins, e à direita delas temos o início da Juréia. Existe uma área de preservação ambiental denominada Juréia-Itatins, que abrange aquela região. Há ainda pequenas vilas cujas origens são anteriores ao início da invasão dos europeus, chamada pelos livros de História de Colonização.

Pedro também prestava atenção e resolveu então tirar uma dúvida.

— Elias, essa Juréia de que fala é aquela na qual iriam construir uma usina nuclear?

— É... Vamos observar de um ângulo diferente. Nesse caso, o Governo Federal limitou-se a fechar a área e prever, dentre suas metas, a construção de Juréia I e Juréia II; essas seriam duas usinas atômicas com investimento brasileiro e tecnologia alemã, e, entretanto, apenas ficaram no papel. Isto foi positivo; além de escaparmos do risco ambiental do uso da energia atômica, obtivemos a preservação da Juréia, onde nos restou intacto uma importante área de Mata Atlântica. O Rio Verde é um dos locais mais bonitos desta região, ainda que de difícil acesso. Em algumas ocasiões os desencontros entre planejamento e ação do Poder Público são benéficos!

Marta, percebendo a ironia, interrompeu.

— Em circunstâncias iguais - obras inacabadas - mas, com resultados diferentes! Não concluíram as obras junto ao Rio Ribeira, determinando uma situação ambiental desfavorável. Não deram continuidade ao projeto de energia atômica, colaborando com a preservação da Juréia! O curioso é que economicamente essas situações nos são desfavoráveis e traçam o perfil da ação dos Governos Estadual e Federal nesta região.

Os três começaram sorrir, em razão das coincidências, enquanto Elias acessou uma estrada de terra e em seguida estacionou.

— Vocês precisarão de outra carona para chegar à cidade. Daqui eu vou mais quatro quilômetros adentrando por esta estrada e chego ao meu sítio... Ah! Se quiserem retornar comigo, na segunda-feira, próximo das seis da manhã, levarei nova carga para o Ceasa...

— Muito obrigado! Tenha certeza de que na segunda feira estaremos aqui! - disseram os dois, quase juntos.

Pedro apertou firmemene a mão de Elias e lhe falou.

— Você nos ajudou muito, foi proveitoso conversar!

Elias se despede e vai embora com enorme satisfação por encontrá-los, feliz por ter mais dois novos amigos. Pedro abraçou Marta pela cintura e caminharam alguns metros até a rodovia. Por vezes não conseguimos identificar claramente o que nos leva a tomar certas atitudes, mas os pensamentos de Pedro se voltavam ao pai. Talvez o firme aperto de mão de Elias, acompanhado de um olhar direto, o fez lembrar do pai. Decidiu que logo ligaria para sua casa informando sobre onde em que estavam, acreditando que isso tranqüilizaria o seu pai.

Há horas Carlos entretinha-se com leituras; mas, algo o incomodava, enquanto Sofia ocupava o tempo assistindo a televisão. Deixando de lado o jornal, foi à sala conversar com Sofia.

— Sô, por onde anda o Pedro?

Esta pergunta tirou um pouco da atenção que ela mantinha na TV; dirigiu-se a ele num tom um pouco irritado, face a interrupção, e respondeu:

— Olha, ele foi à procura da Marta. Não tenho certeza... Deve estar em algum shopping com ela! Agora me deixa quieta, pois quero ver este programa, ok?

Carlos voltou à leitura; se a sua esposa não estava preocupada com o filho, ele também deveria ficar tranqüilo, assim considerou. Entretanto, sua perspectiva quanto ao Pedro impunha-lhe preocupação; não conseguia manter a atenção sobre o que lia. Sua inquietação o levou novamente até Sofia. Desta vez em tom mais incisivo, a abordava demonstrando tensão no semblante.

— Sofia, veja bem... Algum tempo atrás, tivemos problemas quando o Pedro fazia o cursinho, lembra-se?

Outra vez irritada com a interrupção de Carlos, Sofia já não escondia que a sua prioridade era assistir televisão. Sem voltar-se em direção ao marido, disse agressivamente:

— Carlos, por favor... Me deixe ver esse filme! O maior receio de Carlos era que o filho encontrasse naquela situação aflitiva motivação para retornar ao convívio com as drogas. Mediante essa possibilidade, na qual já o vira envolvido e prejudicado o bastante, inquietou-se. Resolveu deitar um pouco procurando relaxar, enquanto aguardava notícias.

O sol estava poente e pelas frestas da janela, alguns lampejos invadiam o seu quarto escuro. Carlos juntava fragmentos das lembranças que saturavam seus pensamentos, indo até aquele ponto da alma em que a dor está guardada, lá onde a mágoa permanece. Isso lhe trouxe referências de amores idos, negócios mal feitos, paixões antigas e suas relações falidas; enfim, do seu espólio íntimo.

Ultimamente uma idéia fixa vinha perseguindo Carlos: precisa se reinventar. Criar novos sonhos incluindo neles uma percepção melhorada sobre a vida, separar o joio do trigo, as boas das más sementes. O que ele julga-se até agora? Um amontoado de coisas velhas sobre as quais, a cada dia, procura se apoiar para criar uma nova perspectiva. Um clarão maior projetou-se sobre a parede, decorrente da entrada do sol por uma das fendas das folhas da janela. Aquele raio de sol o fez lembrar do que aconteceu quando completara vinte e um anos.

Morava naquela casa desde que nasceu. Porém seus pais morreram quando tinha dez anos e fora criado pela avó Nina; nunca tivera coragem de entrar no sótão, seguindo a recomendação da avó de que "lá é o local do seu pai. De certa maneira, ele ainda vive lá!". Ainda assim, tudo tem a sua hora. E chegou o dia em que Carlos lá entrou. Enquanto Carlos empurrava uma velha porta, o cheiro de mofo entupia suas narinas e tirava-lhe o fôlego. Viu então uma biblioteca empoeirada de velhos manuais sobre problemas que ainda são atuais. Um ventilador antigo jogado sobre um sofá, ambos despedaçados, servindo de apoio para antigas revistas de atualidades. Outro amontoado de revistas sobre uma mesa velha, a qual tinha um dos pés quebrados, estavam jogados sobre ela e cobertos de poeira. No canto, uma enorme pilha de diários, umedecidos e amarelados, mostrava o que fora o escritório do seu pai. Pela janela, coberta de pó e teias de aranha, um vidro quebrado deixava passar pequenos raios do sol ao entardecer. Será necessário eliminar todos os apegos ao passado, até chegar ao ponto central. Passou horas naquele sótão, vasculhando papéis antigos, recortes, escritos, e tudo o mais que pôde ver no resgate que fazia da personalidade do seu pai, através dos papéis engavetados e outros materiais lá guardados por mais de onze anos. Naquele momento se constituiu o que seria o seu primeiro contato, como adulto, com o seu pai, através do que ele ali guardara. E a memória, expressa nesses materiais, foi uma valiosa redescoberta para Carlos, num diálogo silencioso com o passado do pai. Todas as lembranças vinham nítidas a sua mente.

Toca o telefone, tirando-o das divagações.

— Alo?

— "Chamada a cobrar... para aceitá-la, continue na linha após a identificação". Durante o tempo daquela gravação, Carlos sobressaltava-se imaginando onde e com quem Pedro estaria, e o que teria acontecido. E se não fosse o Pedro? Por onde ele andaria? Suas mãos suavam ao contato com o telefone, tamanha era a ansiedade. Segundos que lhe pareceram uma eternidade...

— Oi... Pai, sou eu...

Enquanto aguardava a resposta do pai, Pedro avistava alguns pássaros numa árvore próxima e um deles chamava a atenção, pois era bem maior do que os outros. Deduziu que aquele deve ser o pai ou mãe dos pequenos; sentia-se só e desprotegido, como um pequeno pássaro lançado ao vôo sem nenhum preparo, contando apenas com a intuição e o senso de sobrevivência.

— Pedro, como você está? Estamos preocupados! - responde Carlos, agora menos afoito, recuperando-se da apreensão da tarde.

Pedro hesita, mas respira fundo buscando controlar a emoção; e falava já com um pouco de otimismo - talvez o que lhe restasse.

— Pai, eu e a Marta estamos em Iguape... Sabe onde é?

— Ok, Pedro. Como você está? Estamos preocupados, pois imaginava te rever hoje mesmo para conversarmos.

— Não se preocupe mais. Estamos bem e voltaremos em poucos dias. E precisamos muito conversar. Mas eu tô legal, fique tranqüilo! Quero que me faça um favor... Ligue para a família da Marta e os informe, ok?

Silêncio do outro lado da linha. Carlos não sabia bem o que dizer; julgou que precisava estar mais perto dele para dizer algo apropriado.

— Pedro, vou ligar, pode deixar... Mas, me diga como chegou até aí...

Hesitante, temendo por repreensão, ele resumiu o máximo que pode;

— Pai, chegamos de carona com um amigo até próximo da cidade; um pouco depois um ônibus parou e nele viemos até a rodoviária de Iguape.

— Tá bom, filho... Te cuida, ok? Quero te ver logo!

Encerrando a ligação com Pedro, de imediato Carlos ligou para a mãe da Marta; então, ele procurou sentir o diálogo que tivera ao telefone com o filho. Pode notar que Pedro respondera em um tom animado, porém, não muito convincente; isto deixara algumas dúvidas no coração daquele pai. Carlos agora procurava dispor um pouco mais suas reflexões. Abandonou o jornal e foi para seu escritório, onde refletiria sobre toda a situação; o seu desejo era encontrar algum fio condutor, que o deixasse mais seguro no relacionamento com o filho.

Trouxe para a sala o jornal e o dobrou cuidadosamente, deixando-o sobre a mesa. Observou no tampo da mesa uma foto antiga, em que trazia Pedro ainda criança em seu colo. Sentou-se na poltrona reclinável, fechando os olhos. Por alguns segundos, rememorou a fisionomia de Pedro e a angustia que nele havia quando saiu mais cedo. Em seguida, veio em sua mente imagens dele enquanto bebê. A alegria que sentira quando do seu nascimento era uma das maiores da sua vida. Gravara em seu coração aquele olhar, ainda sem foco, de Pedro recém-nascido, enquanto observara também as narinas dilatando pela sôfrega respiração, tudo emoldurado num rosto rosado.

Aquele ser que tanto ansiava pela vida, teve uma linda recepção. O que mudara nesses anos todos, que o fazia temer as inconseqüentes atitudes de Pedro? Desejava com todas as tuas forças a felicidade do filho e agora considerava se o deixara livre demais. Carlos queria encontrar, tão logo possível, o ponto em que a liberdade de Pedro tornou-se desacompanhada da responsabilidade para com a sua própria vida.

Chegaram a Iguape já ao anoitecer e Márcia estava incomodada pelo cansaço da viagem; afinal, fizeram o trajeto entre S.Paulo e Iguape num tempo enorme. Distando apenas 200 km da capital, a viagem seria curta e não muito cansativa quando feita num automóvel; mas, de carona o desgaste foi muito maior. Do sítio de Elias seguiram de ônibus até a rodoviária e a pé foram até o centro da cidade; lá, percorreram a Praça da Basílica, cuja construção, do século XVIII, chamou a atenção de Pedro. Com pouco dinheiro, procuraram por uma pousada de baixo custo; adequaram, então, as necessidades aos meios que dispunham para atendê-las.

Em algumas pequenas pousadas o calor matinal acorda aos hóspedes sem que haja necessidade de qualquer despertador; Pedro e Marta estavam num quarto sem um forro que pudesse reter parte do calor que ambos sentiam.

Ao amanhecer e, ainda sob os lençóis, Pedro enxergava as teias das aranhas, as quais os ajudaram durante a noite... "Afinal, - pensou ele - ao menos essas aranhas consumiram uma parte dos pernilongos; preciso pedir algo para afugentá-los!".

Algo havia mudado no interior de Pedro; ao invés de simplesmente reclamar - como de hábito - preferiu pensar em dar uma sugestão à hospedaria. Deixando de lado as aranhas, ouvia passadas vindo da rua, através das frestas da velha janela. Então, lembrou-se que estavam num quarto que dava com a janela para a rua, bem próximo à calçada. Pode perceber uma conversa entre duas senhoras, que lhe chamou a atenção; não pelo conteúdo; mas, pela forma que conversavam.

Num sotaque parecido com o de Elias, falavam alegremente e lembravam, em parte, a maneira de falar dos Catarinenses e, em particular, aos moradores de Florianópolis. Talvez porque o falar delas mostrou-se um pouco cantado e com ritmo muito próprio, tais vozes pareceram-se como uma melodia aos ouvidos de Pedro. Naquele instante, fortaleceu o desejo de conversar com aquelas pessoas, conhecendo-as. Apesar de dispor em sua vida de muitos conhecidos, Pedro tinha um número reduzido de amigos. Entretanto, tinha um prazer muito particular em conhecer novas pessoas.

Naquele momento, porém, nem sequer prestava atenção ao conteúdo da conversa. O ritmo e a melodia que ele enxergou sobressaíam-se em seu coração, a ponto de inexistirem conteúdo nas palavras! Era como se ouvisse uma canção instrumental, porém, os instrumentos eram as belas vozes tecendo o ritmo e melodia... Seu pensamento, então, dirigiu-se ao pai; lembrou-se da predileção musical do pai e também dos constantes conflitos que ocorriam em razão das diferenças entre o gosto musical de ambos.

Afeito a modismos, Pedro gostava das músicas que estivessem tocando nas emissoras de rádio FM que ouvia e, sempre que podia, ligava o som do seu quarto em alto volume, sintonizado na estação de rádio em moda. Para o pai, isso era quase um desaforo; "Quanto a ele ouvir o som que quiser, tudo bem! Porém, precisa ser nesse volume?". Pulando entre um pensamento e outro, Pedro sequer observou que já estava na calçada, na porta de saída da pensão, deixando Marta a sós no quarto que ocupavam.

Poucas vezes Marta fizera uma viagem sem qualquer planejamento... Ela gostava de viajar; mas, de hábito, preparava-se para ir a algum lugar munindo-se de várias informações sobre o destino desejado. Na situação em que chegaram a Iguape, ela não tinha plano algum para um passeio que amenizasse a sua sede e conhecimento. Pouco antes de deitar ela pensava exatamente sobre esse aspecto e quanto às incertezas da inusitada viagem a que se lançaram, adormecendo e sonhando...

...Nuvens lançam granizos sobre tochas vermelhas, que ainda assim não apagam; apesar de forte a chuva, ela sequer abala as torres invertidas que há sobre um chão não visível, porém, existente e muito distante! E então, enquanto caminha nas estrelas pôde ver sobre o céu as velhas telhas amoldadas sobre as coxas dos escravos, cozidas em locais que hoje são apenas ruínas; o piso irregular das telhas, pavimento das vaidades dos senhorios, demonstrava o custo com que a história, sujeitando pessoas a vários sofrimentos, vem construindo suas civilizações a cada dia mais perversas. Se o fora em escravidão, tomados a força pelo Senhorio, também o fora por falta de melhor opção, porque, estando em Palmares, muitos que lá estavam passavam fome... Deixem-vos capturar pelo poder do capital e da autoridade! Assim é o melhor! Ao menos, teremos o que comer e o que vestir! As tochas não se apagavam e, destarte a forte chuva, o combustível é o próprio egoísmo de cada um! Em cada pé sobre uma estrela, há um singrar de sonhos que não se concretizaram...

Estava nesse ponto o sonho de Marta quando foi interrompido pela volta de Pedro para o quarto. Ao entrar, ele bateu a porta, sem que desejasse produzir tanto ruído. Rapidamente ela levantou e buscou, entre diversas coisas que havia na sua mochila, um bloco de papéis para rascunho. Desejava anotar o que sentira no sonho para uma tentativa posterior de interpretá-lo.

— Me desculpe! Não queria te acordar... Foi mal!

— Tudo bem, Pedro... 'pera ai'... vou escrever o que tava sonhando...

Pedro adorava vê-la ao acordar. Mesmo que ela estivesse com os cabelos em desalinho, era muito bem vista por ele... Assim, sem prestar atenção ao que ela dissera, foi acercando-a e a enlaçou pelos ombros, acariciando-a até a cintura. Então, ela o afastou e deixou Pedro - tomado pelo desejo - apenas a olhá-la.

— Por favor, "morzinho" espera... Depois, tá?

Pedro sorriu disfarçando a sua contrariedade, disse-lhe em tom jocoso:

— Vai, te arruma logo; vamos sair para tomar um café! Afinal, essa porra de pensão não tem nem café da manhã... Precisamos encontrar uma padaria!

O papel que Marta procurava finalmente apareceu entre várias coisas que havia dentro da sua mochila.

— Pedro, agora espera! Tive um sonho com muita coisa acontecendo e quero escrever para tentar entender, mesmo que seja depois...

Ele a olhou, tomado por inusitado desafio, e respondeu agressivamente:

— Para com isso, cara! Não sabe que sonho é só doideira? É muita coisa enrolada! Tem assunto que a gente pensa e depois, no sonho, junta com outro que não tem nada a ver...

Marta já se mostrava impaciente; levantou-se num supetão.

— Pedro, faz favor... Dá um tempo pra mim... Só alguns minutos! Por favor! Depois a gente conversa!

Resignado, Pedro voltou à calçada em que estava minutos antes e já não encontrava aquelas alegres senhoras que conversavam.

Passou a olhar o perfil das casas daquela rua. Uma lhe chamou a atenção, em especial, pela datação que havia sobre a porta principal. Na casa havia também uma sacada com motivos em rococó, os quais lembravam a ele as construções que vira em Parati Porém, naquela rua muitas casas sobressaíam-se mais pelo descaso do que, propriamente, pela conservação.

Por trás de uma fachada até certo ponto bem cuidada, notava-se que o telhado estava com ondulações próprias daqueles que estão para desmoronar! Ainda assim, mantinham uma fachada aparentemente intacta! "Isso até parece a minha relação com a Marta!", pensou Pedro.

Após um domingo de passeios por vários locais daquela cidade, ficaram maravilhados pelas suas características. No dia seguinte, pela madrugada, seguiram em um ônibus urbano até o sítio de Elias. Aguardaram um pouco e retornaram para São Paulo em carona com o amigo. Muitas conversas entre eles acrescentariam às suas vidas providenciais novas decisões.

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Julio Cesar da Silva
Enviado por Julio Cesar da Silva em 23/04/2007
Reeditado em 28/07/2007
Código do texto: T460741
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