A História das Três Irmãs

Alguns anos atrás - não me recordo exatamente quantos - travei relações com três simpáticas irmãs que viviam num sítio às margens da estrada que liga a Capital mineira a Juatuba, município da Região Metropolitana de Belo Horizonte e antigo ponto de parada dos bandeirantes que percorriam a Colônia em busca de ouro e pedras preciosas.

Eu as chamava simplesmente de “as minhas tias”, embora não existisse entre nós qualquer grau de parentesco. Ao que me consta aquelas mulheres não possuíam outros parentes vivos neste ou em qualquer outro mundo e nenhuma delas chegara a ter filhos, ainda que as duas mais jovens se houvessem casado cedo e muito apreciassem a companhia das crianças...

Dessa forma, sem terem tios, primas ou sobrinhos que as viessem visitar no sítio ou as acolhessem em visita, as três irmãs levavam uma vida sossegada e caseira. Entretanto, sabiam elas viver e conviver de uma forma tão gentil e amável, que acabaram se fazendo queridas e admiradas por todos os demais sitiantes e granjeiros daquelas redondezas. Constantemente uma ou outra família se via convidada por elas a provar do bocado de uma geléia de jabuticaba, de um doce cristalizado de laranja, de uma deliciosa maria-mole ao chá ou ainda de uns tantos bolinhos de chuva que saborosamente preparavam...

A mim, por residir logo ao lado delas, gritavam-me mesmo da janela da casa. Daí a pouco eu me via diante de uma bandeja enfeitada por deliciosas cocadas e quindins ou por um maravilhoso "flan" de chocolate. Nessas ocasiões, acabava permanecendo ali por algum tempo ouvindo as suas prosas-sem-fim e participando um pouco daquelas vidas. No final da tarde despedia-me e partia, sempre levando comigo um pote de goiabada e alguns pastéis de carne, queijo ou banana, pois elas raramente me deixavam sair de “mãos vazias”.

Vivendo de uma forma tão acomodada e pacífica, aquelas mulheres passavam a maior parte do tempo em casa e não era um dos seus costumes abandonarem o sitio. No geral tal fato ocorria uma única vez por mês quando se dirigiam a uma agência bancária da Capital. Naqueles dias saíam sempre juntas e de mãos dadas: tia Lilica, tia Laurita e tia Ju. Olhando-as de longe, era possível que lembrassem vagamente três jarrinhas de porcelana, tão frágeis e atarracadas aparentavam ser...

Do lado direito vinha tia Lilica. Sendo a mais velha das irmãs, sentia-se madrinha e protetora das outras duas. Fora assim desde a infância, desde que se sabia por gente, como se o destino a tivesse disposto durante toda a vida com as obrigações decorrentes daquele arranjo imutável, a ordem de chegada de cada uma delas a este mundo...

Tia Laurita ia do lado oposto e tia Ju, por ser a mais jovem, permanecia no centro. Seguia escoltada pelas irmãs e não era raro de se ver algum cidadão parar em plena rua e sorrir diante daquela cena. O certo é que as três repetiam hoje o mesmo gesto aprendido e decorado na infância: era dever das mais velhas resguardar a mais nova dos males e mazelas da vida. Sob esse aspecto, Lilica e Laurita sentiam-se ainda hoje diretamente responsáveis por tia Ju, sem conseguirem se aperceber que aquela atitude anteriormente valida achava-se hoje obsoleta e destoante...

No entanto, para os fins propostos nesta narrativa, basta retroagirmos alguns pares de anos até a época em que se deu o divórcio de tia Laurita e o falecimento do marido de tia Ju. O fato foi que naquele momento acometeu-lhes em conjunto uma saudade estranha e doce dos tempos da infância. Assim, depois de muitas idas e vindas e de longa conversação, concluíram que talvez fosse interessante voltarem a viver juntas debaixo de um mesmo teto, já que se sabiam mais velhas e que aquilo ainda lhes proporcionaria a possibilidade de economizarem algum dinheiro. Além disso, sempre poderiam relembrar as histórias da juventude e a infância vivida com os pais no interior...

Foi então que resolveram juntar as economias e comprar um pequeno sítio. A única condição que as três se impuseram fora que houvesse ali um pomar com jabuticabeiras, mangueiras e um laranjal que lhes provesse as terras de avantajadas sombras. De imediato, porém, surgiu entre elas uma ligeira pendência em relação à escolha do lugar: se Lilica queria aqui e Laurita achava melhor ali, a terceira irmã não chegara a se manifestar fosse a favor de uma ou de outra. Acabaram comprando aquelas terrinhas nas proximidades de Juatuba e assim tornaram-se minhas vizinhas e minhas tias. É possível, finalmente, que tivessem se sentido um tanto constrangidas ao se estabelecerem no novo lar, mas isto ocorrera apenas no início, até se acostumarem outra vez ao jeito peculiar de cada uma. “Pouco depois” – afirmara tia Lilica – “a coisa passou a funcionar maravilhosamente bem..."

Era este, portanto, o motivo pelo qual aquelas três mulheres poderiam ser vistas em todos os sextos dias úteis de cada mês tomando o assento do ônibus intermunicipal à beira da rodovia. Após saltarem no centro da Capital, dirigiam-se a uma agência bancária do Barro Preto para receberem as suas respectivas aposentadorias. Em seguida, tomavam nova lotação e voltavam ao sítio. Jogavam todo o dinheiro dentro de uma gamela de cerâmica e iam dividindo os gastos do dia-a-dia no decorrer do mês...

É possível que nessa altura algum leitor possa estar se perguntando sobre o quê haveria de tão interessante para ser relatado numa história sobre três senhoras que viviam sem incomodar ninguém num tranqüilo sítio à beira de uma rodovia? É possível que não haja mesmo nada de muito curioso nisso. Contudo, ao lembrar-me delas nessa manhã de abril, senti um aperto no peito e percebi na ponta da língua um sabor semelhante àquele deixado pelo gosto guloso de um doce que se houvesse prendido entre o céu-da-boca e os dentes e que eu não quisesse deixar que ele se desgarrasse e se perdesse para sempre...

Foi então que eu resolvi contar um pouco da vida das minhas tias e um outro tanto de suas histórias. Aqueles, pois, que quiserem me acompanhar nesta aventura, vamos lá...

Tia Lilica era assim: mulata gorda e bonachona, bem-humorada como nunca se viu. Dava gosto ver o brilho da sua pele no reflexo do fogão à lenha. Imaginei um dia – olha só há quantas anda o pensamento da gente! - que talvez Manuel Bandeira tivesse composto a sua poesia de “Irene” para tia Lilica, de tanto que ela se assemelhava ao retrato esculpido pelo poeta naqueles versos. Tia Lilica gostava de fritar pastéis e conversar, de contar histórias e de cantar. Enquanto cantava, encantava e fritava deliciosos pastéis de carne, de queijo ou banana:

“Lá invêm o seu Noé,

Comandando o batalhão.

O macaco vem sentado,

Na cacunda do leão.

O gato faz miau

(miau-miau)

O cachorro faz au au

(au-au, au-au)

E o galo garnisé?

Faz quê-qué-ré-qué-qué-qué...”

Tia Ju era diferente: branquinha tal qual as nuvens do céu em dias-de-sol-sem-chuva. Via-se logo que fora a única filha que saíra à família de mãe Geralda: de tão pequenina e meiga, parecia um anjinho... Se tia Ju fosse um anjo com certeza haveria de ser um daqueles de igreja barroca do interior de Minas, corado e sorridente, talvez um gordo anjinho cozinheiro que gostasse de preparar e provar de suas próprias gulodices. Como tia Lilica, tia Ju também herdara o dom do tempero e da cozinha, com a diferença de que o seu forte era fazer bolo e rapadura e geléia e docinho-casadinho recheado de suculento creme de goiaba e tudo mais quanto era tipo de doce que alguém possa imaginar. Mas quem se dava melhor com aquilo tudo era a garotada da região: não havia festa de aniversário ou comemoração de nascimento de criança à qual tia Ju não fosse convidada a prestar os seus serviços de confeiteira e doceira...

Tia Ju era quieta e calada. Enquanto tia Lilica gostava de falar e de cantar, a outra era pura reserva e quietude. É possível que a dependência de tantos anos em relação ao seu falecido marido a tivesse tornado um tanto sem voz diante dos outros seres...

Ao lado das irmãs, entretanto, tia Ju era toda ouvidos e se manifestava com gosto quando elas lhe contavam algum caso indecoroso ocorrido nas redondezas entre homem e mulher. Ai sim, tia Ju se revelava alegre e viva e se punha a dar grandes gargalhadas e até algumas cambalhotas...

Tia Laurita, finalmente, nascera amarela, duma cor intermediária entre a de tia Lilica e a de tia Ju. Nunca se dera bem na cozinha e só servia mesmo para passar o café da manhã, sua primeira obrigação de cada dia. Diferentemente das irmãs, tia Laurita se afeiçoara à arte de bordar homenzinhos coloridos e videiras floridas em panos de prato e sacolinhas de guardar pão...

Tia Laurita era bem peculiar: aos olhos alheios poderia parecer um tanto estranha, mas aquilo apenas fazia parte do seu jeito de ser. Bastava o Sol se pôr e a negritude da noite se açambarcar dos horizontes do mundo, que ela começava a se queixar que estava morrendo. Deitava-se na cama, mãos espalmadas no peito, e gritava, cheia de dó de si mesma:

- Traz a vela, Lilica! Traz o terço, Justiniana, traz o terço que hoje eu tô indo! Põe a vela aqui na minha mão, gente! Traz a vela que eu tô me acabando! Dessa vez eu me acabo mesmo, gente...!

Era um corre-corre danado, verdadeira coisa de louco. As irmãs estancavam no meio da casa sem saber o que fazer. “Laurita tá se acabando de novo”, murmuravam Lilica e Ju, olhares atônitos, faces lívidas de medo. Seria mesmo possível – perguntavam-se indecisas – seria possível que uma delas teria o descaramento de abandonar as outras e partir sozinha naquela aventura? Ainda mais agora, depois que voltaram a viver juntas e que vinham se dando tão bem?

O pior é que aquilo se repetia todas as noites! Em certa feita, tia Laurita amanhecera tão mal disposta, que as irmãs acharam conveniente conduzi-la ao Pronto Socorro da Santa Casa. Chegando lá, a paciente quis se identificar pessoalmente junto à recepcionista. A mulher, toda solicita do lado de lá do balcão, perguntou:

- “Qual o seu nome, minha senhora?”

- “Lorita Angerga di Jisus”.

A recepcionista olhou espantada para tia Laurita e dobrou as sobrancelhas num arco. Via-se que o seu dicionário interno não continha palavras tão desconjuntadas e estranhas...

- “Num entendeu proquê, minha fia. É ansim mesmo como once oviu: Lorita Angerga di Jisus”. Sorte é que tia Lilica tomou a frente e informou corretamente o nome da irmã...

Alem disso, tia Laurita tinha a mania de escrever o próprio nome com carvão na beirada do fogão à lenha. Escrever, não!... ela desenhava - ou melhor - garatujava ali alguns esboços de letras. Tia Laurita fazia o “L” com muito capricho: colocava um pauzinho comprido de pé e outro deitado, ligados no canto esquerdo da base. Se alguém ameaçava se aproximar, ela desmanchava os rabiscos com as palmas das mãos e voltava a prestar exagerada atenção no café. Ainda que não soubesse escrever, tia Laurita não aceitava receber ajuda de quem quer que fosse, manifestando nisso uma pontinha de orgulho...

Muitas vezes tia Ju se levantava cedinho e se punha como uma gata ao lado da irmã, acompanhando-lhe com os olhos matreiros os movimentos de passar o café. Tia Laurita bem que gostava de ter tia Ju logo ali, pois não era gente de viver sozinha: gostava era de contar casos e de ser ouvida e tinha em tia Ju uma de suas melhores ouvintes:

- Vai dormir, Ju – dizia tia Laurita assim só por dizer - É cedo ainda! Volta para sua cama, Justiniana!...

Mas, voltando à hipocondria de tia Laurita, penso que ela devia chamar-se mesmo era “Maria das Dores”, de tanto que reclamava da própria saúde! Na verdade era com este apelido que as outras irmãs se referiam a ela quando se achavam sozinhas. Com o tempo, porém, elas acabaram se acostumando com as suas queixas e deixaram de prestar qualquer atenção nelas...

Numa ocasião mais recente, tia Laurita sentiu uma forte fisgada no lado esquerdo do peito. Gemeu alto o quanto pode, mas as irmãs não a ouviram. Justo naquele dia tia Ju tinha dormido mais que a cama e sonhara estar preparando um borbotão de guloseimas para a festa de nascimento do Menino Jesus. Então tia Laurita resolveu se “ajeitar” para ir ao posto de saúde. Quando as irmãs acordassem – calculou - já estaria prontinha e era só se colocarem a caminho. A tragédia foi que tia Laurita caiu durinha antes mesmo que conseguisse chegar ao chuveiro. Algum tempo depois, tia Lilica acordou e a encontrou desmaiada. Então as irmãs a conduziram uma vez mais ao hospital e foi ai que ficaram sabendo que tia Laurita tinha de fato um defeito qualquer numa das valvas do coração e que as suas eternas queixas tinham lá alguma razão de ser...

Quando tia Laurita regressou, as irmãs voltaram pouco a pouco à singela rotina de suas vidas. Lilica e Ju dedicaram-se como nunca aos afazeres da cozinha e Laurita parecia uma indústria de bordados em panos de prato e sacolinhas de pão... Entretanto, algo mais estranho haveria de se suceder na vida daquelas senhoras: numa linda noite de Lua cheia, tia Lilica resolvera caminhar até o pomar para observar as estrelas ou por-se, talvez, a se recordar de algum amor do passado. Tia Ju sempre desconfiara que a irmã carregasse no peito um romance secreto. “Afinal” – concluíra sabiamente – “ninguém consegue atravessar de uma à outra margem dessa vida sem se ver agitado pela correnteza de alguma paixão...”

Então, quando tia Lilica olhou na direção das Três Marias, percebeu no céu um pontinho brilhante que de modo algum poderia ser confundido com a estrela Vésper ou o cometa Halley. Chamou as irmãs e elas se puseram juntas a perscrutar o infinito. Tia Laurita demorou-se um pouco mais para chegar àquela região do sitio: “especialmente naquela noite” – declarara às outras duas - “não andava se sentindo muito bem disposta, resultado de uma incomoda dorzinha na boca do estômago”. Mas assim que elevou os olhos ao céu, ponderou que aquela “luzinha” bem poderia ser uma espécie de balão “metereológico”, desses que servem para medir a temperatura ou tecer observações sobre os ventos e as chuvas. “Decerto que haveria de ser um balão”, ainda que a negritude da noite a impedisse de precisar-lhe corretamente o formato e a distância...

Com ares de irmã mais velha e viajada, tia Lilica desconversou e comentou que aquilo lembrava-lhe o reflexo do Sol na lataria prateada do Zepelim, exatamente como ela o tinha avistado em certa ocasião por volta de 1930, na cidade do Rio de Janeiro; mas, que em sendo noite e não se vislumbrando naquela hora tardia nenhum vestígio de Sol, certamente não haveria mesmo de ser o grande Zepelim que voltara a velejar pelos céus... Tia Ju não se manifestou: como de costume, manteve-se calada e cheia de medos, vigiando noite após noite o “pontinho brilhante” crescer no firmamento...

Dias depois, as três mulheres viram – abismadas! - pousar um reluzente disco prateado no pomar do sítio, exatamente no local onde elas estiveram anteriormente a observá-lo, entre a jabuticabeira e o laranjal. Mais maravilhadas ainda se sentiram quando viram “pular” daquele estranho objeto um “homenzinho” vestido com uma bata dourada e luminescente.

Tia Lilica considerou que aquele “sujeitinho” muito se parecia com o seu ex-cunhado, o falecido marido de tia Ju, e se persignou recitando o Padre-Nosso à meia-voz e batendo por três vezes com o cocuruto da mão esquerda na madeira seca da porta, que era para espantar essa ou qualquer outra alma perdida que por acaso ali se encontrasse. Dessa vez, porém, fora tia Laurita quem resolvera discordar: afirmou que “aquilo” tinha alguma “parecença” mesmo era com a figura de um “astronarta” que em certa feita bordara numa sacolinha de pão. E tia Ju... bem... esta não achou nada, pois sentiu que aquilo tudo, de tão absurdo, não era mesmo um caso para se achar coisa alguma. Ainda mais ela, que normalmente não costumava achar nada de coisa nenhuma...

Mas aquela foi, em verdade, a última vez em que pus os olhos nas irmãs. Observei toda a cena do alpendre da minha casa e ainda pude ver quando o “homenzinho” fez-lhes um sinal e elas o acompanharam nave adentro. No momento seguinte senti um violento tremor na terra e me vi de joelhos no chão. Acredito que tenha perdido a consciência por alguns segundos, pois quando consegui me restabelecer e erguer os olhos na direção do pomar vizinho, vislumbrei já as três mulheres e a nave e mais o “homenzinho dourado” flutuando juntos rumo aos céus e desaparecendo no espaço-sem-fim...

De lá para cá, a casa na qual as três irmãs viveram permaneceu vazia. Voltei ali algumas vezes na esperança de reencontrá-las. Com o passar do tempo, porém, as árvores foram se multiplicando numa profusão de galhos secos e troncos retorcidos e um emaranhado de folhas e mato amarelento acabou tomando conta de todo o lugar, escondendo casa e pomar...

Ainda que tenha matutado muito no assunto, não consegui entender ao certo o que foi feito daquelas mulheres. É possível que estejam vivas, tantas são as possibilidades nesse mundo de Nosso Senhor!... É possível que o “homenzinho luminescente” as tenha levado com o objetivo de participarem de alguma misteriosa experiência cósmica!... Tanta coisa é possível, não é mesmo?! Mas era possível também – imaginei um dia - que elas pudessem estar simplesmente passeando de mãos dadas por alguma obscura estrada do além, observadas talvez por um curioso transeunte de aspecto luminoso; ou então – e se assim for, que Deus as guarde e as conserve! – que estejam bordando pequeninos homens dourados em úteis sacolinhas de guardar pão ou fritando coisas parecidas a pastéis de carne e queijo e banana para uma criançada feliz de um outro lugarejo perdido à beira de uma rodovia qualquer do Universo... E se tudo isso era de fato possível – conclui maravilhado – talvez não fosse assim tão improvável que eu tornasse a encontrá-las um dia por algum desses caminhos de Minas ou do Além, pois que o mais ilusório nessa vida é alguém se conceber perfeito conhecedor de todas as maravilhas que se ocultam entre o céu e a terra!...

Confesso que aqueles tempos de convivência tão próxima e constante deixaram em mim as suas marcas. Junto àquelas mulheres de existências simples, gestos, jeitos e gostos tão diferentes, eu me peguei repensando o meu próprio modo de ser e conviver, reavaliando valores e sentidos e redescobrindo o velho sabor da amizade. Naquela época não existia para mim nada de melhor neste ou em qualquer outro mundo do que ficar sentado ao lado delas ouvindo as suas prosas-sem-fim e provando de uma ou outra de suas iguarias ou esperando o dia amanhecer com a água do café borbulhando no bule verde enfeitado de florzinhas coloridas. Uma existência como aquela era algo mais valioso do que possuir uma nave espacial reluzente ou ter amealhado um milhão de dólares durante a vida e enfiado tudo no Bank of Boston...

E assim, eu que sempre lhes pedia as bênçãos quando as via surgir no terreiro da casa vizinha, experimentei nesta manhã de abril aquela mesma sensação antiga de provar de um doce guloso feito por elas, perdido entre o céu-da-boca e os dentes, e que eu não quisesse deixar que uma vez mais ele se desgarrasse e se perdesse para sempre o seu sabor...

Foi então que eu me peguei compondo na minha cabeça e no meu coração esta história das três irmãs: fechei os olhos por um segundo e senti brotarem do meu peito essas palavras de pura saudade e emoção:

- “Deus te abençoe, minha queridíssima tia Ju, aonde quer que tu estejas, meu doce anjinho dourado!... Que Deus te ilumine, tia Laurita, estrelinha amarela no meu firmamento!... E tu, tia Lilica - mulata gorda e bonachona - continues sempre de bom humor!...”

O mais que eu poderia dizer sobre as minhas tias é que é possível que até hoje o INSS continue depositando mensalmente algum dinheiro em suas contas bancárias. Afinal, sabe-se que é mesmo coisa do governo isto de não ter muito controle sobre as próprias finanças...