Libório, o Locador de Caixões

Já me apregoaram muitos nomes pela vida afora: nomes e sobrenomes, apelidos e alcunhas. De tão feios, alguns me dão até arrepios; outros nem tanto: brigão, casmurro, pachorrento e merencório já não me ofendem nem representam qualquer novidade. Agora: isso de me chamarem de turrão foi a primeira vez...!

Quando ouvi aquela palavra seca brotar da boca de compadre Tenório, fiquei vermelhinho que nem pimentão maduro; com mais um tiquinho me fiz azul feito um céu de azul-anil para em seguida me tornar da cor da abóbora roxa, de um roxo assim escuro e esquisito, quase um preto de casquinha de ferida.

Então contei devagar de zero até dez, dei meia-volta e tornei daí para trás sem esboçar reação. Se tivesse escutado aquilo de uma pessoa qualquer, não teria sobrado pedra sobre pedra: o sujeito ter-se-ia visto – num zás! - emborcado e de cara virada no chão, solapado por uma pernada ou sopapo no ventre.

Mas saindo da boca de um amigo – e de um amigo tão especial, é verdade! – aquilo teve foi o dom de me apaziguar. Eu bem sabia que se o compadre assim falava com tamanha rispidez era por pura amizade, por gostar demasiado da minha pessoa. Então me estanquei por completo durante uma quantidade de tempo que eu nem sei dizer e senti que toda aquela raiva lentamente se dissipava de dentro de mim, feito água abrindo fervura e borrifando em bule de café.

Ô minha gente, no normal da vida sou um sujeito pacato: carrego comigo a quietude e a simplicidade do interiorano. Gosto de me apoiar no alpendre de casa e picar devagarzinho o meu fumo de rolo enquanto fico observando de longe a hortinha de couves e a galinha Marmota ciscando feliz no galinheiro; seguro um cigarrinho de palha à-toa nos beiços e passo um pedaço esgaravatando a terra com um raminho qualquer enquanto vou pensando que o melhor dessa vida é isso mesmo de se viver assim sem incomodar nem ao bom Deus nem a outrem, levando sempre comigo os mandamentos e cuidando da criação que o Senhor me concedeu por empréstimo.

Mas não pensem que por ser assim desse modo pacato que eu seja um sujeito medroso feito o compadre Tenório: este um se enregela todo de medo só de pensar em morcego ou em alma penada. Comigo não, que comigo é diferente! Dou um boi pra não entrar numa briga e uma boiada pra não sair. Se me cutucam é um Deus nos acuda, um sacolejo de lado e um pulo sentado: desando a falar feito lavadeira na beira de rio, dou pernada, cacete, pescoção e tudo mais a que tiver direito.

E tenho mesmo dito e muito falado pro compadre: deixa de ser besta, homem de Deus! Medo a gente tem que ter é das almas encarnadas, dos fantasmas de dois pés que caminham muito apressados pra nos fazer todo tipo de coisas ruins e não das inocentes alminhas do além.

Certo também que a presença de tantos apelidos deve-se mesmo em parte ao meu próprio jeito de ser: em várias ocasiões andei expressando opiniões bastante divergentes daquelas vistas e encontradas entre os viventes dessa região. E se essas minhas idéias ou concepções não eram bem aceitas nem acatadas, partia logo pro vapt-vupt ou não me chamava Mané Libório. Foi daí que me vieram as alcunhas de brigão e casmurro.

Mas esclareço um bocadinho, que não sou assim tão merencório quanto alguns querem fazer acreditar: creio que se por um lado a vida se apresenta com uma série de males que não raro nos causam o mais profundo pesar e desgosto, por outro nos reserva uma boa safra de antídotos para os mesmos. Um destes às vezes é o amor, força suficiente para tornar a vida mais bela e suplantar um tanto da dor que por ai se vê; outros podem ser um vício ou um ideal capazes de esboçar sentidos ao bocado de sem-sentido que nessas brenhas se estende; por fim, uma grande amizade é talvez o maior tesouro que um homem pode encontrar nessa vida. Mas de todos eles os de melhor fortuna são a meu ver o amor e a amizade.

Como exemplo desta última, posso citar esse caso ocorrido comigo e que me tem deixado deveras abalado, bambo das pernas e da cabeça. Escute a historinha que eu vou lhe contar - amigo leitor! - balize tudo direitinho no seu coração e depois me diga se tenho ou não tenho razão...

Pois bem: eu e compadre Tenório temos tão grande amizade que às vezes até parece que somos irmãos. Aliás: bem mais que irmãos, pois que a fraterna amizade não raro se estremece e a deste amigo que vos fala jamais apresentou qualquer vinco no fino tecido que a mantém. Quando cutucado, costumo dizer o seguinte:

- Cunhado não é parente; sogra é castigo e irmão às vezes é destino de sorte ou azar, como no jogo de dados. Mas amigo - meu velho! - amigo a gente escolhe do jeitinho que se escolhe fruta madura e verdura viçosa em véspera de feira: vai-se apalpando devagarzinho para sentir-se a consistência, até que ele nos rouba o coração...

A minha sorte nessa história toda adveio precisamente dessa grande amizade. Se não fosse o compadre ter logo me contado que andam falando muito mal de minha ilustre figura pela cidade, eu teria acabado me tornando o palco da risota e a piada geral de toda essa gente sem-quê-fazer.

Me explico melhor, esclareço tudo desde o início: de alguns meses a essa parte venho alugando para os infelizes da região uns caixões que ganhei num acerto de contas trabalhista. Não sei o que foi que me deu: na hora “H” acabei abrindo mão de uns trocados à-toa por esses dois bacamartes.

Mais que depressa – um pouco ligeiro demais, creio eu, talvez com o inútil receio de que voltasse atrás em minha opinião - o meritíssimo bateu forte o martelo na mesa e selou o negócio entre as partes. Achei tudo aquilo um disparate, posto não seja homem de ficar ao sabor do vento nem dar marcha-a-ré na palavra que tenha dado. Pra mim o dito está dito e dito fica: depois de sapecar o verbo ou apostar um rabisco numa folha de papel, não há nada que me faça retroagir. Palavra de homem tem marca de fogo e letra cursiva jogada fora é negócio de muito perigo, sem meia-volta. É um tanto sobre tudo isso e ainda um pouco mais que andam comentando pela cidade às bocas grandes e pequenas...

Entretanto, posso seguramente lhes afiançar que me acredito isento em toda essa falação: o que ocorre é que nos últimos tempos venho emprestando regularmente os bacamartes pra toda a gente que não tem como encomendar seus amados defuntos em caixões dignos e num velório guarnecido das honras mais banais. Faz dó: os desvalidos dessa terra velam seus mortos ao relento, sobre uma mesa qualquer ou taboa à-toa que encontrem. Na manhã seguinte enrolam o defunto num lençol ou trouxa velha que o caiba com corpo e alma e jogam tudo numa broca qualquer aberta nesse mundão de meu Deus! Sei não se isso é digno de um corpo e uma alma que muito pelejaram nos caminhos dessa vida! Vai lá alguém saber! Mas o fato é que no mais das vezes assim é como acontece nesses campos do Indaiá.

A questão então que eu vos coloco é a seguinte: se venho alugando os bacamartes a preço de banana ao invés de simplesmente permitir que essa gente se utilize deles gratuitamente é porque o povo dessa terra também não dá grande valor aos bens que lhe são meramente doados ou emprestados. Agora: se isso é um fato, outro é que uma parcela dessa gente anda nesse disse-que-disse. Uns falam que eu vivo da exploração da dor alheia e que tenho parte com o Coisa-Ruim. Outros arriscam que as almas encomendadas em meus caixões sequer conseguem encontrar acolhida na morada do Senhor. Mas o que ninguém proclama em toda essa história – e é isso o que realmente importa! - é que o povo desse lugar merecia ser tratado com mais respeito e consideração. E digo isso me referindo tanto às almas vivas quanto às almas mortas, pois que todas caminham na mesma e divina direção...

Bom! Prosseguindo neste sucinto relato, resta-me afinal informar que de algum tempo pra cá comecei também a ser assediado por uns sonhos estranhos, uns pesadelos esquisitos que me custam a sair da cachola. Depois de cada velório, costumo me deparar com toda aquela defuntada a quem ajudei a atravessar o obscuro rio e às vezes eles se põem a me rodear e a clamar para que eu os siga em seus desvarios no indefinido...

E ontem, bem... - ai de mim que ainda me aconteceu o pior! – ontem sonhei direitinho com a dita cuja, a inominável, a intransferível, a inenarrável, aquela denominada “nove graças mais uma”. No sonho ela literalmente marcou um encontro comigo no sábado vindouro...

Decerto que a indesejável me assusta como a qualquer vivente. O compadre não precisa levar tudo tão a ferro e fogo. Afinal – penso eu - sabe lá alguém de fato o que se passa por detrás das serranias do além das sombras, na outra margem do rio indefinido?! E cá entre nós: mistério é mistério e esse é o nome de tudo! Mas dizer que me assombrem espíritos e fantasmas, isso é o que não digo jamais...

Também acho esquisito esse negócio da morte mandar recado através de sonhos ou tecer julgamento sobre coisas tão terrenas quanto os dias da semana. Se a vida, no entanto, é a mãe de todas as coisas, a morte com certeza é a madrasta: se entende é por que entende e isso me basta. E vá lá também que eu tenha mesmo ficado um tantinho nervoso diante desse sonho. Mas foi só um bocadinho, um tiquinho de nada, algo assim-assim – olhe! - do tamanico daquela amorinha vermelha que daqui eu vejo no alpendre da casa do compadre.

Foi então por esse justo motivo que eu fui procurar o meu amigo, pois que é nessas horas que uma amizade nos serve e é sempre bem vinda. Convidei o compadre para trocarmos umas idéias perto do galinheiro da marmota, que ali sim era um lugar tranqüilo e perfeito para que dois bons companheiros pudessem conversar sobre determinadas trapalhadas e mazelas da vida.

De imediato o compadre disparou uma matraca que ninguém nem imagina. Falou e cacarejou mais que a Marmota na hora de botar ovo pra fora. De tanto falar, o velho escumava pelos cantos da boca e ainda cuspia que era uma beleza. Durante todo aquele tempo eu procurei encontrar alguma razão que me justificasse e me fizesse ganhar em parte o apoio de Tenório.

Numa certa altura, porém, o homem me olhou firme nos olhos e me chamou de turrão e foi ai que eu senti que tinha ficado vermelhinho que nem pimentão maduro. Então, percebendo em mim aquele sinal de fraqueza, o amigo me disse que “já não era sem tempo, que passara da hora de eu me livrar dos caixões, que a gente honrada da cidade andava mesmo falando muitas coisas terríveis a meu respeito e que um vivente não deveria brincar assim com os mistérios do além, pois que algumas vezes os referidos mistérios costumam mesmo se manifestar através de sonhos e que...”

Tenório cuspiu um borbotão mais de palavras, algumas com certo sentido e outras nem tanto, mas todas recheadas da sua peculiar temeridade. Depois de receber pacientemente toda aquela saraivada e ouvir o compadre apontar mil e uma razões para que eu desse fim nos bacamartes, acabei cedendo e desabafei:

- Está bem, amigo velho: você me convenceu! Vou me desfazer já-já desses trambolhos...

Aproveitando-se do meu momento de fraqueza, Tenório ajustou dramaticamente o tom de sua voz e me perguntou o que afinal eu pretendia fazer com os caixões, agora que eles não tinham mais serventia alguma.

- Bom – respondi lentamente, tentando divisar no seu rosto qualquer leve sinal de emoção – serventia até que os bacamartes sempre têm, o compadre há de convir! Um deles eu vou guardar pra mim mesmo, pois que a morte é o caminho natural, o fim a que todos nós chegaremos e mais cedo ou mais tarde lá chego eu também, não é verdade?!

O compadre assentiu com a cabeça carrancuda. Então foi a minha vez de descarregar a cartucheira:

- Agora o outro... bem... saiba o amigo que o outro já está bem reservadinho pro meu companheiro de todas as horas, aquele que me é mais querido nos caminhos dessa vida e do coração, o irmão escolhido a dedo feito verdura viçosa e fruta madura em véspera de feira, vosmecê mesmo!...

É possível que o leitor nem acredite no que eu vou afirmar agora: o fato é que essas últimas palavras foram mais do que suficientes para fazer com que o compadre Tenório desaparecesse num “zás” da minha frente, feito um corisco. Eu fiquei tão aparvalhado com esse negócio que ainda permaneci ali imóvel durante algum tempo, igual a um “Zé Bobo”. Quem me observasse de longe poderia até pensar que eu estava mesmo era conversando com a bendita da Marmota. E olhe que a bichinha permaneceu quietinha no galho mais alto do seu galinheiro, me observando sempre com aquele seu olhar cheio de galinácea sapiência...

Mas nada disso tem de fato muita importância: Deus sabe que o bacamarte do compadre ficará guardadinho debaixo de umas telhas que mandei levantar por detrás do galinheiro da marmota e que servem pra gente guardar as coisas que a chuva não pode molhar nem estragar.

Como conclusão de toda essa história, vejam agora vocês o verdadeiro valor de uma amizade: depois daquela conversa com o compadre decidi uma série de artimanhas. Uma é que no sábado vindouro eu aqui não fico e nem permaneço e ainda rezo três ave-marias para que isso aconteça. Dou porque dou um jeito de me ausentar ligeiro-ligeirinho dessas terras ou não me chamo Mané Libório.

Não que me atormente esse negócio de morte com hora marcada ou anunciada. A morte – eu bem sei! – a morte não manda notícia nem recado nem lembrança vaga: quando chega, ou chega de mansinho ou vai entrando de supetão e abrindo caminho a ferro e fogo por dentro e por fora da gente, derrubando tudo e tudo levando feito enxurrada. E esperar a morte sentado eu não vou, que isso não é coisa de homem nem faz o meu feitio. Se ela quiser que venha atrás de mim: sexta-feira à tardinha embarco num lotação e já amanheço o sábado tomando café na rodoviária da Capital ou na casa de meu primo Pacheco. O certo é que em terras do Indaiá eu não fico nem permaneço, não amanheço nem anoiteço...