A Bela Senhora

Desde que lhe morrera o marido e após levar o último filho solteiro ao altar, ela passou a viver só no velho casarão de dezesseis cômodos construído num dos quarteirões da rua Progresso, esquina com Riachuelo, perto da Igreja do Padre Eustáquio. Não tinha receio algum de morar só. Ao contrário, dizia gozar de uma boa convivência consigo mesma, não havendo assim por que temer a solidão.

Conhecia e reconhecia todos os sons provenientes da casa e da vizinhança. Morava ali há mais de 30 anos e, depois dos fatos relatados no início desta história, passara a prestar ainda mais atenção – na verdade, quase a atenção concentrada de um cego – ao bulício e à agitação existentes na rua e na vida ao seu redor: o gotejar da chuva nos telhados e janelas das casas vizinhas, o ranger de portões, o latir dos cães - fiéis companheiros na noite e o timbre de voz do padre Silvano na missa das seis. Chegava mesmo a adivinhar o chiar característico do portão da própria casa, o falar manso dos motoristas no ponto de táxi e ainda o barulho do motor dos automóveis partindo e chegando na noite. A conversa dos taxistas já a fizera adormecer algumas vezes. Noutras ocasiões, prestara maior atenção nos diálogos e se distraíra durante longos minutos remendando na imaginação certas palavras ou frases perdidas de sentido (são tantas as vezes em que as palavras ganham novos sentidos quando conjugadas no tempo e no espaço da memória...).

Havia ainda os rumores no interior da velha casa. O som do vai-e-vem do pêndulo no antigo relógio de parede e o inquieto bater das horas. Havia o badalar externo pressentido no sino da torre da Igreja e, finalmente, o ligar e o desligar automático da geladeira, o gotejar de uma torneira semi-aberta, o estalar do sinteco novo nos dias mais quentes do verão e o alegre brincar das crianças. Ela percebia que a vida era prenhe e repleta de ruídos.

Contou-me esta bela senhora uma curta história.

Alguns meses atrás despertara no meio da noite em decorrência de um som diferente, desconhecido. E, pior de tudo: com a certeza de que ele ocorrera dentro da própria casa. Não se assemelhava a nenhum dos ruídos que se acostumara a ouvir diariamente. Com algum receio, levantou-se e pôs-se a calcular de que ponto da casa teria vindo o instigante rumor. Imaginou, talvez, tratar-se de um ladrão. Se fosse, o que poderia fazer? Completara setenta anos em março e o peso da idade lhe impunha determinadas cautelas que não correspondiam aos desejos e à força da alma. No entanto, pensara rapidamente: como conseguiria voltar a adormecer sem deslindar aquele mistério, sem ter clara diante de si a simples noção de estar ou não sozinha na casa ? Definitivamente, não conseguiria dormir. Também é possível que aquele som tivesse sido produzido por algum espírito bom ou ruim! Quem sabe seriam os passos do seu esposo, arrastando os velhos chinelos de pano na casa vazia ? Durante a vida haviam-lhe contado tantas estórias a respeito das almas, logo ela que nunca acreditara muito nestas coisas. E as almas, bem, estas é que nunca lhe ousaram aparecer. Mas, e agora !?!

Recolhendo a coragem de que dispunha, procurou cuidadosamente debaixo das camas, nos quartos dos filhos, atrás de portas e armários, em todos os possíveis lugares onde uma pessoa pudesse se esconder. Não encontrou qualquer sinal que lhe denunciasse a presença estranha na casa. É certo que se lembrara vagamente de que, mocinha ainda, sentira arrepios de medo por estar sozinha numa outra casa tão grande e vazia quanto aquela. Nesta noite, porém, nada temera. Talvez tivesse sido melhor trancar-se à chave no quarto, aguardando quieta que o nascer de um novo dia trouxesse límpida luz para dentro daquela estranha situação. O ladrão que levasse o que quisesse. Ao menos a deixaria em paz, com vida. Entretanto, a curiosidade acabara vencendo o medo e ela passara todo aquele terrível pedaço de noite sem que chegasse a descobrir a origem do estranho barulho.

No manhã seguinte, lidando na habitual faxina da casa, a arrumadeira percebeu que um dos quadros da parede da sala de visitas havia caído atrás do sofá e comentou distraidamente. A dona da casa suspirou aliviada: “Ah! Então fora esta a causa de tanta confusão e da noite mal dormida”. Esquecera uma fresta de janela aberta e o vento noturno derrubara o quadro num único ruído seco. Como o seu olhar havia se concentrado apenas nos lugares onde uma pessoa pudesse se ocultar, não prestara a devida atenção no espaço vazio deixado na parede pela queda do objeto.

Assim terminou a inesquecível noite da bela Senhora.