Chico Trangolista

            Chico me apareceu como por encanto em um repentino acordar, mais precisamente as 03h32min da madruga do dia dois de maio de 2015. Ele estava só esperando o feriado do dia primeiro de maio adiantar-se para puxar meu pé. Acordei meio desorientado sem conseguir entender o que estava acontecendo ao meu redor, tinha um punhado de pensamentos incompreendidos e um tanto quanto enigmáticos. Parece que eu estava entre desperto e dormindo em um estado letárgico indefinido.
            Antes disso, preciso contar que estava sonhando com a Vó Tuarpa, outro personagem que só conheci em meus sonhos. Depois de bem velha ficou tereré das ideias, não batia lé com cré. No sonho eu tentava conter as suas loucuras, coisa quase impossível de contornar. Realmente ela vivia em um mundo cheio de fantasias e disparates que não concatenava com a realidade dos ditos normais.
            Com o Trangolista foi diferente. Mesmo depois de semiacordado ele ficou ali sem arredar pé. Senti um pouco de medo, escutei uns barulhos estranhos e rezei um bocado para afastá-lo. Apesar do breu que estava o quarto, podia sentir a sua presença exigindo que eu psicografasse seu desabafo. Porém, a racionalidade teimava em afirmar que tudo não passava de uma alucinação. Como o danado não voltava para a catacumba de onde saíra, eu, entre o sono e a lucidez, resolvi lhe dar ouvidos.
            Ele fora um sujeito solitariamente normal, marceneiro de primeira qualidade. Trabalhava e morava em sua pequena oficina, sujeito de pouca conversa e muito bater de martelo e reco recar de serrote. Fugindo dessas características resolveu tagarelar! Confidenciou-me que apeou da Jardineira na porta da única venda do arraial, uma catarina com suas ferramentas e outra com umas mudas de roupas já bem surradas. Arrumou um pouso na pensão da Dona Bita, e logo alugou um cômodo para trabalhar e morar.
            Apareceu na cidade sem me precisar de onde e nunca falava de seu passado, caso que ficava trancafiado em sua cachola, apesar de não faltar espícula e fofoqueiros de plantão. Depois de muitos anos resolveu voltar para elucidar o que nunca ninguém ficara sabendo, apesar dos Sherlock Holmes de plantão.
            As pessoas da cidade tinham certo receio de quem era realmente aquele carapina, mas a amnésia de seu passado era uma das únicas coisas estranhas que causava certa suspeita. Se bem que uma de suas vizinhas tagarelava nos cantos das ruas pedindo confidências, que depois que o dito cujo encerrava os trabalhos da madeira trancafiava todas as portas e janelas. Não que fosse bisbilhoteira, mas podia jurar de pé junto que tinha mais alguém lá dentro com ele, escutava conversas sem conseguir definir direito o vozerio. Algumas vezes ficou de butuca espreitando na esperança de ver alguém entrar ou sair lá de dentro.
            Um belo dia, as portas de seu trabalho amanheceram fechadas. Os vizinhos bateram chamando pelo Chico sem nenhuma resposta. Será que ele tinha desaparecido sem dar nenhuma satisfação, assim como um dia aparecera? Procuraram o único policial da cidade e lhe contaram o fato. Resolveram arrombar uma das portas e adentrar o recinto, para surpresa de todos encontraram facilmente o funesto Chico.
            Apareceram milhões de explicações para o ocorrido! Uns diziam que o Trangolista era doido, outros que ele participava de alguma Ceita maluca, vivia conversando com alma penada ou estava escondendo de algum mal feito. Quem teria razão? O coitado do acusado não poderia explicar, pois estava morto dentro de um caixão que ele mesmo acabara de fazer. Para quem estaria fazendo aquele caixão? A currutela toda procurou desvendar o caso, e cada qual tinha sua versão do episódio. E tantos falsos levantaram no pobre coitado que ele revirou no sepulcro e veio elucidar o caso!
            Ele morava com sua mãe em um canto do mundo qualquer, já bem velhinha teve esclerose e perdeu a memória. Quando esta morreu ficou desgostoso e saiu pelo mundo vindo parar neste arraial.
            - Acredito que é a tal Tuarpa que eu estava sonhando antes é sua mãe. Ela deu muito trabalho até sua morte, pelo fato de ter ficado completamente aluada.
            O fato de ter sido encontrado morto dentro do caixão não passava de coincidência. Tinha o costume de deixar um caixão pronto para o caso de uma emergência, como havia vendido o último para uma viúva, resolveu construir outro.
            Este último caixão ele tinha caprichado em seu feitio, e ficara uma verdadeira obra prima. Como havia gostado muito da agourenta criação resolveu experimentar, deitou dentro do caixão e adormeceu. Para seu espanto só acordou com o alvoroço de seu velório, tentou levantar e então percebera o seu fim.
             Em sua última fala sorrateiramente disse que havia enjoado deste mundo e resolvera aproveitar a ocasião e morrera.
Post scriptum:
Quase me esqueço de contar a vocês o que significa Trangolista! Perguntei ao dono de tal alcunha o que significava, de imediato fiquei sem resposta. Insisti que deveria ter um motivo o tal apelido! Relatou que herdara de seu pai a profissão e o nome mesmo não tendo o conhecido! Acrescentou que era filho único e sua mãe dizia que era a cópia cuspida e escarrada de seu progenitor. Um homem alto, magro, moreno, não muito apessoado (riu ao dizer isso e acrescentou que era melhor do que feio), conciso e muito gentil. De certa forma me tornei a mesma cria, e acabei de repente como a criatura.
            Confesso que não fiquei muito satisfeito com sua explicação, procurei no pai dos burros a palavra Trangolista e não obtive resultado. Continuei minha investigação até que achei plausível um resultado que encontrei na internet.
            “Trangolo”: indivíduo muito alto, feio e magro. “Ista”: sufixo nominal, de origem grega, que exprime a ideia de adepto de doutrina, teoria ou sistema artístico, político, filosófico ou religioso, ou que tem uma certa ocupação ou ofício e ainda de nomes gentílicos.
            Tirem suas próprias conclusões! A menos que ele retorne e me dê uma nova versão diferente dessa, vou aceitar a que tenho.
 
Kennedy Pimenta.