O dia da sua morte

Há muitas coisas mórbidas que me despertam prazer desde a infância: Histórias de terror, noites escuras, pio de coruja, som de cuíca (já reparou que, principalmente nas produções nacionais, uma cena de terror vem sempre precedida pelo gemido de uma cuíca?), cemitérios, acidentes fatais, assassinatos e mortos. Qualquer um. Conhecido ou não.

Meu fascínio ganhou corpo com o advento da internet. Com ela pude “apreciar” cadáveres de diversos tipos, famosos e anônimos, suicidas, vitimas de tragédias temporais ou provocadas e aparições mal explicadas. Quem assistiu três solteirões e um bebê deve ter visto o garoto atrevido que se escondia atrás da cortina, e que depois do filme já nos cinemas, ficou constatado que ele não poderia estar ali, estava morto dez anos antes das cenas terem sido gravadas.

Com todo esse fascínio, meu primeiro livro publicado não poderia ter sido sobre outro tema: Lendas Urbanas, histórias que o povo conta (acreditem isso não foi um comercial), uma reunião de histórias que me metiam medo quando ainda acreditava em assombração (acho que ainda acredito).

Por mera curiosidade, acabei descobrindo que a grande maioria dos que morrem, “optam” por fazer isso em uma data próxima ao mês de seu aniversário. Tancredo Neves nasceu em março e morreu em abril; Juscelino Kubitschek nasceu em setembro, morreu em agosto, Raul Seixas nasceu em junho morreu em agosto, Tom Jobim nasceu em janeiro e morreu em dezembro, cinegrafista da TV União (MG) nasceu em treze de maio e morreu em treze de maio, William Shakespeare, nascido em vinte e seis de abril, faleceu no dia vinte e três de abril. A lista não tem fim.

Por causa deste meu estranho hábito, outros surgiram: colecionar lembrancinhas de missas de sétimo dia, visitar o cemitério após cada velório ocorrido, ler os obituários publicados nos jornais locais, ficar horas caminhando entre as fileiras de tumbas e mausoléus anotando as datas de nascimento e falecimento para comparar depois, até me tornei amigo íntimo de um agente funerário.

Curiosamente, ele era conhecido na cidade como “Zé do caixão”, por ser ainda solteiro e não ter familiares na cidade, residia ali mesmo entre as urnas vazias e, eu, claro, não saía de sua casa. Gostávamos de tomar uma cervejinha, ou um conhaque nos momentos de folga. Algumas vezes, enquanto ele preparava o corpo para o velório, eu estava ali ao seu lado, observando seu trabalho, tomando alguma coisa e papeando sobre o mundo dos que se foram.

Certa vez, depois de um sepultamento doloroso, de uma jovem que se acidentara, onde o remorso fazia seus familiares de desmancharem em lágrimas, seguimos para seu “atelier”. - Estou muito cansado, preciso relaxar um pouco, tomar umas cervejas e torcer para que não morra mais ninguém hoje. Me acompanha? – Claro, respondi de imediato. E lá fomos nós

Já na funerária, abrimos uma cerveja e começamos a conversar. Zé foi ao fogão, fritou alguns pedaços de carne em uma frigideira velha, colocou no prato, desligou o fogo, pegou dois copos sobre a pia que ficava ao lado do fogão e voltou para onde eu estava. A nossa volta tudo era mórbido: caixões baratos, urnas sofisticadas em madeira maciça, talhadas a mão e disponíveis ao “cliente” pelo preço de um automóvel zero, velas, cruzes, coroas de flores artificiais e toda parafernália necessária para uma despedida digna.

Entretemo-nos na conversa. Já era noite. De repente, do nada, um grande estalo se deu e vimos a frigideira velha saltar do fogão para a pia. Meu sangue gelou nas veias, minha boca secou, queria me levantar, correr, sair dali o quanto antes, não podia, minha mente entrava em um turbilhão de pensamentos que não conseguia raciocinar sobre a lógica do acontecimento, uma explicação, eu só queria fugir dali. Zé já estava longe. Senti meu corpo gelar, minhas vistas escurecerem...

Acordei com um clarão forte e um grande murmurinho ao meu redor. Havia varias pessoas a minha volta, as luzes estavam todas acesas. Estava deitado em uma cama e ao meu lado um enfermeiro, todo de branco, me fazia inalar um líquido esverdeado de odor intenso. Eu havia desmaiado.

O Zé tentava, sem muito sucesso, convencer os incrédulos de que algo sobrenatural acabara de ocorrer ali.

Nunca mais pisei em uma funerária novamente. Também, jamais soube o que de fato ocorrera ali. Nos meses próximos a data de meu aniversário, evito qualquer situação de risco: viagens, bebidas, parque de diversões; sei que tudo não passa de uma simples coincidência, mas não faz nenhum mal a cautela. Afinal, existem mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia.

E você? Qual o dia da sua morte? O mês você já pode prever.

Luciano de Assis
Enviado por Luciano de Assis em 14/09/2011
Código do texto: T3218622
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