Reminiscências

Por: Miguel Bernardi

O homem estava correndo.
Lembrava do dia mais feliz de sua vida.
Tivera que acordar durante a madrugada, a noite fria era pouco convidativa mas, mesmo assim, carregou a esposa até o carro e dirigiu até o hospital acima do limite de velocidade. A bolsa havia estourado, e as primeiras contrações já haviam se iniciado.
          
Estacionando o carro sem muito cuidado, carregou novamente a mulher responsável por ter lhe mostrado o significado da palavra amizade. Eram um casal, sim, e estavam tendo um filho juntos. Mas, acima e antes de tudo, eram grandes amigos.
           
Lembrava-se, como se tivesse acontecido há algumas horas, da expressão corajosa de sua esposa em meio aos gemidos de dor. Lembrava-se de ter dito que tudo iria ficar bem, e viu o sorriso doce abrir-se, gentil. Minutos depois, estava num dos quartos do hospital, ao lado da esposa, segurando sua mão, talvez tão nervoso e ansioso quanto ela.
           
Aos trinta e dois anos, Davi pensou ter experimentado todos os sentimentos possíveis que a vida poderia lhe oferecer. Viu o pai morrer antes mesmo de entrar na adolescência. Viu a mãe ficar viúva e sem saber o que fazer e, aos doze anos, começou a fazer bicos para ajudar nas despesas.
           
Eram tempos difíceis.
           
Presenciou a mãe adoecer aos poucos, caindo na profunda depressão causada pela ausência do marido e as muitas dificuldades que encontrara. E pensou que nunca experimentaria dor maior que aquela no dia em que encontrou o corpo da mãe, frio, ao chegar em casa. Nos últimos meses, comia cada vez menos e estava mais pálida a cada dia que se passava.
           
Pela primeira vez na vida, o menino se viu sozinho no mundo. Se enquanto a mãe estava viva pouco tempo lhe sobrava para se dedicar aos estudos, agora, abandonara a escola de vez. Durante a manhã entregava jornais, durante a tarde e o começo da noite, empacotava as compras num mercadinho.
           
Conheceu Fernanda neste mercado. Ela era um ano mais velha que ele e tinha cabelos escorridos, na altura dos ombros. Não saberia, no dia que a conheceu, expressar em palavras a beleza da jovem. Apenas seis meses depois, quando ele finalmente tomou coragem para chamar-lhe para sair, o adjetivo lhe veio. E ainda se recordava de como as bochechas ficaram quentes quando no fim daquela noite, antes de deixá-la na porta de sua casa, sussurrou-lhe a palavra. Ela sorriu e lhe deu dois beijos, um em cada bochecha. Apenas saiu dali quando Fernanda entrou. E naquele momento singular soube que iria vê-la novamente.
           
Alguns anos depois se casaram. Davi pôde então terminar o ensino médio e encontrar um emprego melhor como vendedor numa loja de eletrodomésticos. E trabalhava tão bem que logo subiu ao cargo de supervisor de vendas. Nenhum dos dois sabia como, mas neste ponto a ideia de ter um filho veio a tona para ambos.
           
Naquela fria noite, Lucas nasceu pequenino e rosado e fez Davi sentir algo novo. Derramou as lágrimas que havia segurado tantas outras vezes. Ali, sentia-se seguro. Pegou o menino no colo, contemplou seu pequeno rosto e sentiu-se um novo homem, depois de tudo o que havia passado. Sentiu que agora poderia reviver a infância que nunca teve.
           
Saíram dali dois dias depois. Na casa que o casal havia construído ao longo dos anos, um quarto especial para o neném o esperava, quente e aconchegante.
          
O pai ensinaria o filho a andar de bicicleta, a ler e a escrever e fazer contas. O levaria para passear no parque e, com sorte, o circo voltaria para a cidade e eles iriam juntos assistir ao espetáculo. Veria o filho crescer, entrar na pré-escola, e então no ensino fundamental. Iria sorrir, orgulhoso, quando seu menino lhe entregasse a primeira nota dez.
           
A mãe iria derramar lágrimas de alegria quando Lucas lhe trouxesse um cartão de dia das mães pela primeira vez, com um desenho da família feito a mão pelo pequeno artista. Eram apenas alguns traços e rabiscos. Para ela, era a maior obra de arte já feita.
 
Davi se lembrava disso tudo enquanto caminhava em meio as ruínas que restaram do último ataque aéreo, alguns minutos atrás. Voltava do trabalho quando avistou o conjunto de aviões bombardeiros passando, baixos. Atiravam as bombas para fora e desapareciam no horizonte, como se nada houvesse acontecido. No pouco tempo que teve, escondeu-se dentro de uma cafeteria, encolhido sob uma mesa, e rezou para que não morresse ali, sozinho. E teve as preces atendidas.
           
Estava vivo.
           
Levantou-se e se pôs a correr. Pensava apenas na família. Não notou as ruínas ao redor, as grandes construções caídas e nem os corpos mutilados e incinerados. Não sentia a perna direita doer, e nem o fragmento de vidro que havia se alojado ali e seria responsável pela perda do membro. Com todas as cenas – as boas e as ruins – passando por sua cabeça, ele apenas corria. E deixou as lágrimas escorrerem pela primeira vez desde o nascimento de Lucas quando viu sua casa aos pedaços.
           
Procurou pela esposa e pelo filho freneticamente, removendo grandes pedaços de pedra com uma estranha facilidade, motivado pelo medo, raiva e esperança. Procurou-os noite adentro, as mãos agora já sangrando. Sentia frio, sentia fome e sede, e uma pequena voz em sua cabeça dizia que já não havia mais jeito. Outra, mais teimosa, insistia para que continuasse.
           
A lua estava alta no céu quando encontrou uma mão. Toda suja de poeira e fuligem, provavelmente fraturada em algum ponto, mas sabia - do mesmo jeito que soube que veria Fernanda novamente quando ela o beijou pela primeira vez - que tudo iria ficar bem.
           
Colocou seu dedo indicador sobre o pulso, e esperou. Um segundo, dois, três... e ali estava. Removeu as pedras ao redor com rapidez inumana e contemplou o rosto de sua esposa, adormecido. Lembrou-se com perfeição o dia que a vira pela primeira vez, no mercado, e de como ficara maravilhado.
           
Acordou-a com certa dificuldade e ela o olhou assustada. Trocaram um olhar duradouro antes de se abraçarem, e o silêncio perdurou apenas por alguns segundos, mas pareceu, aos dois, uma eternidade. Reuniu coragem e perguntou sobre o filho e obteve um olhar molhado e triste como resposta. O homem deitou-se no chão e gritou, esmurrou as pedras em volta até que o vazio lhe preenche-se totalmente. Fernanda aproximou-se dele e estendeu a mão. Ele a segurou e se levantou.
           
Fitando-o nos olhos com uma expressão triste, mas calma, ela lhe pediu que fosse forte.
           
Os dois, então, lutando contra toda a vontade de simplesmente desistir de viver, começaram a caminhar para fora da casa. Certamente iriam enviar tropas atrás de possíveis sobreviventes. O último cômodo pelo qual passaram antes de sair foi o quarto do casal. No chão, Davi avistou um pedaço de papel com seus olhos aguçados e o pegou. Mesmo com pouca luz no local, era possível distinguir o primeiro cartão de dia das mães, feito por Lucas. Um pequeno menino, um grande homem, e um anjo.
           
Fernanda não teve que perguntar o motivo de ter sido desenhada como um anjo. Numa noite exatamente como aquela, a mulher acordou e ouviu seu esposo tentando acalmar o filho que havia tido um pesadelo. Ouviu a voz do marido, suave:

- A mamãe vai cuidar de nós, filho. Não precisa ter medo de monstros. A mamãe é um anjo e sempre estará conosco. Certo, campeão? - ela voltou a dormir e fingiu não ter ouvido aquilo.
 
Ainda se lembrava de seu primeiro encontro com Davi, especialmente de quando ele a deixou na porta de sua casa e disse-lhe baixinho em seu ouvido “Você é um anjo”.

 Ela lhe deu dois beijos, um em cada bochecha. E naquele momento, soube que o veria novamente.

 

 

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 01/05/2015
Reeditado em 18/05/2015
Código do texto: T5226459
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