Revolução Biônica

Por: JC Lemos

– Mas, e então? Vamos apenas recuar novamente? – K-Dex perguntou, deixando bem explícita a raiva impregnada no tom de voz. Bateu a mão na mesa holográfica enquanto concluía. – Eu te digo, não é isso que vai acontecer!

– Você tem todo o direito de querer agir assim. Mas isso não quer dizer que vou permitir que o faça! – O outro homem, já de idade, respondeu. Seus olhos castanhos, sombreados pelas sobrancelhas hirsutas, fulminavam o companheiro do outro lado da mesa.

– Cap, no momento, não dou a mínima para o que você pensa – suas mãos nervosas continuavam a estapear a mesa em cada palavra proferida. Os hologramas apagavam e acediam a cada baque.

– Eu ainda sou o responsável pela ala Sudoeste da cidade, então você vai dar a mínima, e vai acatar a porra da minha ordem. Você não é melhor nem pior do que ninguém, K-Dex, e suas perdas são tão dolorosas quanto as dos outros.

– Perdas desnecessárias, se você tivesse pelo menos continuado! – Virou-se de costas enquanto levava a mão à cabeça. A irritação tão avassaladora era algo incomum nele. – Se pelo menos não nos comportássemos como insetos, ou qualquer praga enxotada para a escuridão em torno da sociedade, teríamos pelo o que lutar.

– Pelo amor de Zax, homem! Olhe a sua volta. – Cap apontou para a sala, mostrando a decadência do lugar.

Algumas pessoas se acotovelavam ao redor da mesa, ouvindo atentamente a conversa. Rostos sujos e cansados fitavam ambos, demonstrando interesse, mas também a fadiga. A lassidão e as perdas haviam tomado, além de esperanças, a vontade de lutar. E nesse misto de danos e desilusões, as únicas pessoas capazes de chegar a uma mínima solução que fosse, digladiavam-se em frente a eles.

A guerra havia tomado tudo da resistência nos últimos anos.

E o que restava, morria aos poucos.

– Olhe para nós! – Cap aumentou o tom de voz. Olhares cabisbaixos preenchiam o ambiente com um ar melancólico, resignado a ponto de emitir tristeza, dissipando-se em ondas invisíveis aos olhos, mas não a alma. – Não posso dizer que somos a sombra do que fomos um dia, porque nunca fomos densos o suficiente para criar uma sombra. Olhe para as armas que usamos, para as coisas que usamos! Eles usam robôs para nos exterminar! Isso aqui é rústico, quase ineficaz.

K-Dex apenas ouviu. Seus olhos injetados exalavam a raiva em forma de lágrimas. Perscrutou a sala embaçada, fixando a atenção nas antigas armas que empunhavam. Pistolas automáticas e metralhadoras antigas, remanescentes do século 21. Ele sabia que suas ações eram um tiro no escuro, que os tornavam em uma corrente de água atingindo uma pedra. Um dia poderiam desgastá-la o suficiente para tragá-la no fluxo, mas não sabia se seriam numerosos e resistentes o suficiente para permanecer por tanto tempo.

O cheiro de ozônio da última investia ainda impregnava seu olfato. As armas de lasers e estática causaram um estrago devastador na tropa de resistência. Mais do que companheiros, ele havia perdido também um amor.

Um ciborgue da tropa de choque alvejou a cabeça de M-illa, atravessando o crânio com um feixe de energia condensada. O mundo parou enquanto K observava seu futuro tombar, caindo sem vida no asfalto molhado. As placas de néon que se abarrotavam ao redor deles, emitiram um brilho ofuscante, congelando o momento e parando o coração. Os sons riscados dos lasers pareceram distantes, intangíveis, e em um círculo vertiginoso, só o corpo de Illa parecia palpável. K estendeu a mão em direção a ela, mas foi puxado com força. Shtix sua cobertura naquela noite, o puxou antes que um raio de energia cruzasse na frente de ambos, espalhando o sabor elétrico pelo ar. Correram em direção às sombras, e ele se permitiu olhar para trás uma última vez. O vislumbre do destino abominável de sua amada era tudo que preenchia sua mente no momento.

Seus músculos cansados pesavam com o cansaço do dia. As pílulas de energia deixavam de fazer o efeito desejado, e ele se sentia fraco, exposto, experimentando a gravidade das áureas escuras preenchendo a sala. Respirou fundo, conteve as águas que ameaçavam trilhar um caminho sinuoso pelo rosto sulcado pela sobrevivência, e falou.

– Tudo bem. O que faremos agora?

– O que fazemos sempre. – Cap respondeu, agora mais calmo. – Bater em retirada, curar as feridas, e deixar que as outras alas da cidade cuidem dos problemas enquanto estivermos fora.

– O cerco está ficando cada vez mais apertado, Cap. – A voz veio de um dos cantos da sala. Seu locutor se aproximou da mesa e mostrou ser Shtix. O rosto de feições asiáticas parecia descansado. Uma de suas grandes qualidades. Genética aprimorada. Homens fundidos com máquinas. Assustador e fascinante. – Nossos esconderijos estão cada vez mais manjados. Não vamos durar muito se continuarmos no atual.

– Isso não é problema. Organize a transferência para o hangar 32 – pegou uma mochila ao pé da mesa enquanto concluía – e vamos bater em retirada agora. Precisamos de tempo para chorar pelos nossos mortos e nos organizar.

– Esse é o problema, Cap, – Shtix falou – máquinas não precisam chorar. Eles voltarão o quanto antes. Os buscadores estão cada vez mais sofisticados. A ala Sul perdeu um hangar munido de artilharia e um esquadrão inteiro na semana passada. Eu sei que essa tecnologia, a minha própria tecnologia, – o olho direito piscou em vermelho enquanto ele falava – é o motivo de estarmos combatendo. Mas precisamos dela para continuar. Estamos ficando cada vez mais distantes de alcançar nossos objetivos.

– E que sentido haveria nisso, soldado? Lutarmos contra a tecnologia escravizadora deles, usando-a? – Olhou para K-Dex ao terminar.

– Agradeço pela sua ajuda, Shtix. – K falou. – Na verdade, devo a você minha vida. Mas não compartilho de seus pensamentos. Vamos continuar como estamos. Nossos infiltradores têm tentado burlar os sistemas das G-COrps. Logo esse jogo irá virar.

– Mas você mesmo acabou de...

– Eu sei o que acabei de dizer. Estava de cabeça quente. M-illa morreu hoje, mas sua morte não será em vão. Vamos nos reagrupar e...

Uma explosão levantou o teto e espalhou uma nuvem de fumaça dentro da sala. Os sobreviventes se dispersaram e empunharam as armas. Feixes de luz iluminaram o ambiente e uma voz robótica fez-se ouvir.

Aqui é a polícia pacificadora de X-city. Abaixem as armas ou abriremos fogo. Obrigado pela compreensão.

Um dos rebeldes se apressou ao meio da sala e mirou um arremesso para cima. Trazia uma granada nas mãos. Flexionou os braços e um raio condensado atravessou seu peito. O corpo caiu e a granada correu pelo chão.

– Cubram-se! – Cap gritou.

As pessoas se esconderam como puderam e a granada explodiu, espalhando fragmentos para todos os lados. Alguns feridos já se apresentavam segundos após a explosão, anunciando suas dores ao mundo. Cap e K se esconderam atrás de uma parede que dava para a saída, e respiravam fundo enquanto a adrenalina subia ao sangue. Agora, K-Dex podia sentir que o efeito da pílula não era tão ineficaz quanto havia pensado.

– Cap, precisamos tirar os outros daqui.

– Eu te dou cobertura – respondeu, engatilhando a submetralhadora que trazia a tiracolo.

– No três!

– Três! – Cap gritou e se lançou à frente de K, abrindo fogo contra a nave que pairava acima deles. Não percebeu uma massa de metal se movimentando em sua direção, vindo de frente. Caiu com um buraco fumegando na testa.

K-Dex ameaçou uma corrida, e parou. Com uma arma apontada para ele, o ciborgue parecia uma estátua de metal. As placas peitorais emitiam um leve brilho azulado, indicando sua condição de membro das Forças Armadas de Contenção. Uma unidade especial criada pelas G-COrps, no intuito de controlar a manifestação das revoltas rebeldes.

Sistema de reconhecimento de interface concluído. – O som foi emitido pelos alto-falantes acoplados no pescoço do ciborgue. – Krayzist Dex, você é procurado pelo crime de perturbação da ordem e atentado ao Governo Maior.

Ao redor, as tropas robóticas rendiam a resistência. Um a um, largaram as armas e levantaram os braços. Alguns feridos se apoiavam em outros, e a fumaça começava a se dissipar, dando um panorama geral da situação. No meio da sala, o corpo desfigurado do soldado abatido contrastava com o cinza e branco dos escombros. Krayzist abaixou a arma e sentiu o entorpecimento tomar conta do corpo. O zunido da explosão ainda ecoava em seu ouvido.

Vocês são culpados pelos atentados recentes envolvendo a destruição de tecnologia governamental e patrimônio público. – As vozes saíram em uníssono, enquanto os fuzis de energia emitiam o som estranho de carregamento. – A sentença é a morte.

– Não! – K- Dex gritou, em vão, enquanto cargas elétricas atravessavam o que restava de sua tropa.

Olhou para o brilho branco saindo do cano do fuzil e fechou os olhos. O raio o atingiu, como de costume, na cabeça. O corpo sem vida tocou o chão, enquanto as luzes abandonavam a sala, dando espaço à escuridão.

Mortos restavam no cenário caótico, e as máquinas batiam em retirada. Missão dada e cumprida, mentes vazias e cheias de circuitos. Em nenhum deles havia um resquício de remorso.
 
 

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Enviado por Contadores de Histórias em 02/05/2015
Reeditado em 18/05/2015
Código do texto: T5228222
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