MORTE E VIDA DO MEU FILHO
 
   Nessas noites de trevas aqui no presídio, quando tantas cabeças foram cortadas, ansiei demais por me tornar novamente livre. Que me degolassem, resgatando-me dessa existência desgraçada e me fazendo livre, mas qual o quê? Ainda caçoavam de mim dizendo:
 
   - Como iremos matar a nossa mulherzinha, nossa coroa gostosa? Nossa felina devassa que além de nos aliviar nas celas, nos serve à mesa dando sempre um jeito de melhorar, nem que seja só um pouco, o rango terrível da cadeia? Morte vil assim é para os inimigos. Você é das nossas, queridinha. Fique aí na sua.
 
   Desde há muito perdi o gosto com a contagem do tempo. O que anseio por demais é com o final do meu tempo, mas esta semana, ao ver a comemoração da data da coroação da Rainha da Inglaterra, me recordei que nasci exato – mamãe fazia questão de me recordar isto –quando Elisabeth completava vinte anos de reinado. Foi em homenagem a ela que me chamei, vê se pode uma coisa dessas, Elísio e hoje deveria estar comemorando quarenta e cinco anos.
 
   Está mais que patente que mamãe sempre desejou uma filha e eu, azar o dela,foi que vim. Caiu-lhe no colo o Elísio que deveria ter sido Elisabeth... Humor negro e escrachado. Essa história da minha concepção, obviamente indesejada, ela contava tal se fora um poema: “Ao passar a noite com o cara bonito que então me surgiu, um homem belo, anjo, que veio voando feito um beija-flor, para tomar do meu mel e desaparecer para sempre”. Maldito pai que ela nem conhece o nome e que pode ter cruzado comigo aí pela vida afora.
 
   Num ambiente de pobreza cresci menino que vivia de jogar bola, empinar pipas e sair com a turma. De escola não guardo boas recordações. Não gostava de estudar e em contrapartida as professoras me detestavam, simples assim. Quando achei que poderia me virar com as letras, bem poucas, que já tinha, me safei da escola. Mamãe, preocupada com a bebida, o crack e os homens bem mais do que comigo, só se deu conta de que eu não ia às aulas quando já chegara à adolescência.
 
   Quando chegou o tempo em que meninos e meninas passam a se atrair de maneira diferente, me tornei pegador. Era o cara do grupo, o macho alfa. As garotas quase todas passaram pelas minhas mãos e isto me provocava grande orgulho, além da inveja geral. Eu era o fodão da comunidade do Carrapicho.
 
   Mas tem uma coisa, é importante que o diga. Detestava as bichas. Desses fui criando ódio. Não podia ver uma que estava logo botando para correr e se fosse alguma mais folgadae então tentasse me dar alguma cantada, ah, essa caía na porrada. Batia sem dó mesmo. Teve uma que deixei desacordada. Tive medo mesmo que a desgraçada fosse morrere então criar problemas para mim. Veado tem que morrer, estava aí o meu lema.
 
   Rogéria foi a menina que mais tive dificuldades para pegar. Ela me esnobava legal, a verdadeira fresca. Quando consegui tê-la, estava sentindo algo estranho, diferente mesmo por ela. Com Rogéria descobri o que era o amor. Apaixonado demais era bastante gozado pela turma porque tinha perdido toda a liderança que costumava ter por lá. Quem mandava agora era a minha namorada.
 
   Com seis meses ela estava grávida e então, eu com dezessete e ela com dezesseis anos, tivemos que mudar de vida. Largar a curtição boa e sem responsabilidades de aproveitar a existência, para poder cuidar do nosso destino. Não queria mexer com drogas e então fui para a pista. Isopor no ombro e saco na mão passei a vender água, biscoito e cerveja nos engarrafamentos da avenida perto de casa. Rogéria, menina cuidadosa,tornou-se faxineira nas casas das madames. Assim conseguimos arrumar o barraco no qual pudemos receber e começar a criar o nosso filhinho Roger. Eu era tão vidrado nela que até o nome da criança queria que recordasse o seu.
 
   Com o tempo fui subindo de vida. Em terra de cegos quem tem um olho é rei e eu enxergava bem, diga-se de passagem. Montei um boteco nos limites da comunidade com o bairro e poucos anos depois ele tinha virado um comércio grande e sortido, verdadeiro supermercado. Tínhamos carro novo, mudamos para um bairro bacana e até de avião a gente viajava de vez em quando para as praias de fora.
 
   Entregava-me demais ao trabalho e deixava com a mulher a tarefa de educar Roger. Foi este o meu erro fatal. Quando comecei a reparar melhor nele vi que o menino não estava legal. Um garotinho esquisito que nem gostava de soltar pipas, jogar bola, sair por aí pra zoar com a turma. O que ele apreciava mesmo era de cuidar da casa ajudando a mãe que mesmo não precisando mais de trabalhar, desde uns tempos cismara em vender produtos de beleza para as suas antigas patroas.
 
   Então veio o pavor. Meu Deus, será que o meu filho é gay? Ah, jamais iria admitir algoassim. Eu implantaria o terror, como tantas vezes tinha feito com as bichas da região. Sim, arrancaria o couro se ele fosse isto. Com certeza eu iria esfolar o desgraçado se confirmasse o fato de que ele era homossexual. Deixar em carne viva. Dar porrada até machucar minhas mãos, bater até virar homem e se não virasse, acabar de vez com a raça dele.
 
   Aí pensei. Trata-se de um garoto apenas. O menino, ainda nos seus doze anos, devia de ter jeito. Resolvi então me aproximar mais. A obrigação de educar então passara a ser só minha. Que Rogéria, não se metesse. Aliás, por esse tempo eu já não gostava mais dela. Vida de cada um se dava no seu canto. Ela não me enchia o saco com as namoradas que eu estava sempre arrumando e eu não implicava com as vendas de perfumes dela.
 
   Foi então que vi que era tarde e me desesperei. Bati demais no garoto no dia em que descobri as fotos dos ídolos dele escondidas nos cadernos. Só tinha machos e vários deles só de sunga. Queimei tudo. Tentei até conversar, mas não houve jeito, tudo só piorava. O cara tinha se tornado gay mesmo. Fato é que eu tinha perdido. Solução que via era só uma: dar fim àquele ser. Terminar de uma vez com aquele garoto que para mim nada mais era do que uma aberração da natureza. O mais absurdo e triste é que havia nascido de mim.
 
   Mas não iria tomar cadeia por conta do que achava que fosse o mais justo a ser feito, mas que a sociedade pensava diferente e protegia. Foi então que armei o plano. Estávamos em meados de dezembro e geralmente em janeiro a gente costumava ir para alguma praia. Cada ano num lugar diferente. Dessa vez precisava ser em uma praia já conhecida para que nada desse errado e aí me lembrei de uma que vinha a calhar. A praia perfeita para os planejamentos feitos.Fomos para Ilha Bela.
 
   Tentava ser o máximo gentil com Rogéria e Roger. A mãe, que ficou ressabiada depois da surra que lhe apliquei, precisava ter resgatada a confiança em mim de que eu gostava do garoto. Não queria e muito menos podia levantar suspeitas. No segundo dia por lá saí quando estava ainda escuro e na praia de colonos aluguei um barco para pescar. Um bem pequeno, pintado de amarelo e de nome Amor Eternografado com letras azuis. Voltei à pousada e acordei o garoto. Ele não queria ir de jeito nenhum comigo, mas um pouco de sutis ameaças terminaram por convencê-lo.
 
   No barquinho, dia nascendo, o desafortunado ainda me perguntou se podia deitar no fundo dele. Sentia ainda muito sono por ter ficado até tarde da noite vendo televisão com a mãe. Disse que sim e fui remando para o lugar do qual lembrava muito bem. Era um no qual tinha passado sufoco uns anos antes ao pescar com amigos. Havia uma fossa profunda no mar e uma corrente bem forte constantemente a puxar para fora da baía.
 
   Ao chegar ao local procurei ser bem rápido. Tirei o saco de plástico do bolso e o enfiei na cabeça de Roger ainda adormecido. Permaneci segurando, o pescoço do meu filho protegido por uma toalha, que era para não deixar marcas quando o corpo fosse encontrado. O garotoesperneou demais até que foi se acalmando, ficando quieto. A língua saiu toda e aqueles dois olhos me miravam por dentro do plástico, com o maior ódio que o universo é capaz de sentir. Segurei mais uns dois minutos que era para ter certezado serviço bem feito. Arranquei o saco, olhei para os lados e vi que estávamos sozinhos. Entãotirei a camisa dele, enfiei a língua para dentro da boca e apertei o queixo, aguardando mais um tempo para me assegurar de que a boca não iria abrir e só então larguei o mulherzinha dentro da água. O boiola ficou boiando por ali, até que começou a ventar e a corrente foi levando o corpo. Segui atrás, remando lentamente e aí reparei que ele devia ter, enfim, afundado.
 
   Precisava arrumar a cena e então pulei na água, dei uns mergulhos saltei de novo para dentro do barco e retornei remando o mais rápido que podia, fingindo grande cansaço e aflição, para a praia que tinha ficado oculta pela curva do barranco alto. Ao ver outra barca, acenei, gritei pedindo ajuda. Meu filho tinha dado um mergulho e desaparecera.
 
   O primeiro barco veio, chegou o segundo. Apareceu o terceiro maior e com motor. Com pouco tempo havia gente olhando da praia e várias embarcações envolvidas nas buscas. Fazia esforços para chorar e sou bom ator, consegui convencer aquele pessoal. Ao me deixarem na areia“que era melhor eu descansar”, uma velha me abraçou dizendo que meu filho iria breve ser encontrado e, melhor ainda, com vida. “Devia ter me pregado uma peça nadando até o mangue do outro lado”, ela continuava.
 
   A notícia tinha chegado à pousada e Rogéria chegara desesperada. Chorava demais e aquilo nos reaproximou. Ela me abraçava balançando de tanto soluçar. E eu repetia, não sei o porquê, as palavras da velha. “Ele deve ter nadado para o mangue para me dar um susto. Já que retornará sorrindo”.
 
   Foi um pescador de lá mesmo que, cinco dias depois, encontrou o corpoinchado e meio comido pelos peixes. Encontrava-se preso a umas pedras uns dez quilômetros adiante. Os olhos não brilhavam mais. Ao contrário, onde antes tinham existido, havia agora dois feios buracos. Alguém comentou que para afogado aquele, mesmo inchado, parecia ter a barriga muito lisa de quem dava a impressão de não haver bebido água. Fiz de desentendido. Levaram para a autópsia e para meu alívio aquele foi um trabalho muito dos mal feitos. Uma semana depois, já em São Paulo, enterrávamos Roger. A vida enfim poderia seguir adiante sem maiores senões. 
 
   Rogéria me olhava de jeito estranho e uma manhã me fez umas perguntas esquisitas. Disse-lhe que era inadmissível que suspeitasse de mim. Que o fato de não gostar de pervertidos não quereria nunca dizer que seria capaz de matar meu próprio filho. Dei-lhe umas boas porradaspara que calasse a boca e ela foi embora silenciosa.
 
   Uns dois meses depois da morte do menino foi que comecei a notar as mudanças. Meu corpo estava se tornando liso. Os pelos, como que por encanto, iam desaparecendo do peito, das pernas, dos braços e principalmente do rosto. Um dia, ao gritar para chamar a atenção do idiota de um empregado, a voz se deu em falsete. Fina como naqueles tempos em que, adolescente, não sabia quando ela iria sair aguda, como de criança, ou grossa e grave, tal de homem adulto. Fingi que não havia notado os risinhos da turma que estava vendo o meu desconforto com aquilo.
 
   Ao tomar banho uma noite notei os mamilos intumescidos e pareceram-me também mais sensíveis. Apalpei o peito e a princípio achei que aquilo fosse mera impressão. Que eu estava sugestionado ao achar que eles estavam se desenvolvendo qual garota entrando na adolescência. Resolvi procurar um médico e ele,ao me ver nu, foi logo me perguntando que hormônios eu estava me aplicando. Respondi que não havia hormônio porra nenhuma e que eu odiava gays, veados, travestis, trans e o escambaude todos os pervertidos que usavam hormônios. Que mataria qualquer uma que passasse na minha frente com hormônio ou não. Ele se assustou, pediu desculpas, mas disse que meu corpo parecia viver uma transformação. Com certeza que tomou cuidado em não completar a frase dizendo transformação de que, para não levar uma porrada nas fuças. Resolvi mudar de restaurante onde almoçava. Sei lá se não metiam remédios nas comidas, mudei também a alimentação, passei a só beber água mineral, mas nada disto adiantou.
 
   Comecei a usar camisas mais largas, a evitar camisetas de malha. Estava ficando aterrorizado. Aos poucos fui concluindo que não precisava mais me barbear. Não havia nada a ser cortado pelo aparelho. Tinha dificuldades em dormir e vira e mexe me pegava a vigiar-me no espelho, sempre descobrindo assustadoras novidades. Uma hora a sobrancelha mais arqueada, em outra o contorno dos lábios se fazendo mais delicado, as mãos que pareciam ir diminuindo, os quadris afinando, o bumbum a crescer e esses peitos cada dia maiores...
  
   Após ter falhado com uma mulher, parei de procurá-las. Mas precisava tirar aquilo a limpo e aí busquei um antigo caso. Uma que considerava amiga e que possuía três ótimas vantagens: Não pertencia à turma, era paciente e também bastante discreta. Na cama a primeira coisa que me perguntou, rindo, foi o porquê de eu só ter tirado calça e cueca, bem como se estava vindo do Polo Norte, porque tudo estava minúsculo, parecendo sofrer muito frio. Claro que, além da grande raiva, não consegui nada.
 
   Nessa noite sonhei com Roger. Ele com o rosto dentro daquele saco me dizia, sorridente, que eu iria pagar bem caro aquilo que tinha feito com ele. Meu Deus, comecei a cair em conta. Será que estava sendo punido pelo assassinato do meu filho? Que o terror de acontecer em mim tudo aquilo que eu mais odiava nada mais era do que a punição pelo meu feito: ter assassinado aquele que veio da minha própria carne?
 
   Uma tarde, no metrô, um cara olhou para mim e sorriu com malícia. Assustei-me demais com a minha reação por ter retribuído. Sem dúvidas que aquele era o sorriso de um anormal pervertido. Resisti a este e a tantos outros que fui reparando. Mas isto me custava demais e um dia não suportei a tentação. Caí nos braços de um homem e, por mais absurdo que possa parecer, adorei a experiência.
 
   Aos poucos fui mudando minha forma de vestir, de caminhar, de viver enfim. Estava ponderando mesmo mudar de nome, no momento em que a segunda paixão entrou na minha vida. Esta tem umas coincidências incríveis e não é que o cara se chamava Rogério? Começamos a namorar e o levei para o meu apartamento. Um dia descobri que o puto me roubava. Fingi que não vi. O coração falava mais alto. Muito mais. Outro dia reparei que ele me traía com um caixa do supermercado. O coração continuava a pedir cuidado da minha parte. Fingi que não percebi. Mais um tempo e ele disse que estava indo embora. Que detestava bicha velha.
 
   Veio subindo em mim aquela raiva, uma ira tremenda que não consigo controlar e quando dei por mim o estava estrangulando. Serviço que tem início não pode ser parado no meio. Deixei que esperneasse sob o meu corpo até que fosse se acalmando. Quietinho qual criancinha que dorme junto da mãe.
 
   Enrolei-o num cobertor, deixei chegar a madrugada e o carreguei para a garagem. Meti aquele pacotão no porta-malas do carro e o joguei do alto de uma pedreira. Quando deram pela falta do traidor vieram atrás das câmeras do elevador e da garagem do prédio e estas me incriminavam. Fui preso, julgado e condenado.
  
   No começo apreciei demais ter aquele tanto de homens à disposição, sempre animados, ávidos pelo meu corpo. Ao poucos os pesadelos com Roger foram se tornando recorrentes ea cada noite eles se davam de maneira ainda mais terrível. Assustadores demais aqueles sonhos. Apavorantes e desesperadores. Neles foi ficando evidente o que ele me desejara naquele instante em que deixava de existir pelas minhas mãos: eu iria me tornar aquilo que ele quisera ser e eu não deixei.
 
   Aqui na prisão, para passar o tempo, enfiei a cara nos estudos. Formei-me professora e até dou aulas para outros detentos. Foi a partir daí que nessas noites de insônia resolvi escrever. Ir contando a minha história. Aquela pela qual nunca fui condenada pelos homens, mas sim pelo diabo a me prender e atormentar a cada dia, a qualquer hora, em todo segundo. A existência se tornando pior, impossível de ser vivida e mesmo assim tendo que ser por mim levada.
 
   Roger não me larga e não tenho para onde fugir. Como deixá-lo se ele passou a viver dentro da minha cabeça? Por isto quis demais que a cortassem, mas os caras só querem que lhes continue a servir. Os bandidos não cumpriram a minha vontade. Resta-me, não sei até quando, seguir viva, com ele, pelas trilhas do meu inferno.
 

Temas: Em Família e Prisão
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