Um Frasco de Lírios 
 
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   Cerrou as vidraças das grandes janelas antes que o vento gelado derrubasse os papéis contendo as anotações que fizera durante toda a tarde. Era outono e, no pátio abaixo da torre central, as folhas secas se espalhavam pelas pedras lisas do antigo castelo. Ainda que fechadas, as janelas, o vento não desistia:batia com força contra as árvores, sacudindo os galhos, sibilando,enquanto entrava pelas fendas das telhas gastas da torre. O canto do vento era como a voz de sua amada Helena chamando o seu nome, sussurrando-o entre os dentes, alongando as sílabas.
 
   - Sssalomonn... Sssalomonn...
 
   Helena! Mulher da sua vida, talvez, perdida para sempre. Nas paredes da torre, entre tapetes e armas, seu rosto se multiplicava em várias superfícies e se eternizava em seus pensamentos. A chuva lá fora cessou, e as gostas deslizando docemente sobre o vidro, replicavam seus olhos verdes, pesarosos.

  - Não me deixe, Salomon... Não me deixe...

   Olhou para o seu trabalho sobre a mesa de estudos, e percebeu que algumas gotas haviam caído sobre as fórmulas, fazendo a tinta se espalhar em bordas irregulares e mais claras, como estrelas se derramando pelo éter, criando um halo negro que se espalhava pelo papel.

 
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    A noite ia morrendo pela rua deserta, o último ônibus havia deixadoa moça e outras pessoas sob a marquise do prédio do correio e de lá cada um seguira seu destino incerto. Cecília caminhou,em silêncio,até a velha casa amarela com a pintura descascada, estranhando a quietude sepulcral daquele início de madrugada. Não precisou abrir o portão de ferro, mal sustentado pela dobradiça gasta, balançava em um movimento torto, produzindo um som rangente, meio agudo, desagradável. A porta estava trancada. Tentou forçar, apostando na deterioração do material, esperando que a maçaneta cedesse sob a pressão de seus dedos. Bateu. Gritou. Chamou pelo namorado. Foi andando pelo corredor lateral do terreno,testando cada janela. O mato alto lanhava suas pernas. Então colocou a mochilinha amarela no chão e subiu na goiabeira para tentar alcançar o beiral do telhado. Sabia onde havia algumas telhas quebradas e poderia pular do buraco para o colchão rasgado onde o cachorro dormia. O buraco não estava mais lá, e certamente, nem o cachorro. Alguém havia consertado as telhas. Nem pensou em afastar as novas porque não queria levar uma surra do Jorge. Estava tarde, e o cansaço era grande. Saiu andando pela rua fria, sem muita decisão, procurando alguma luz acesa pelas casas dos vizinhos. Naquela altura não havia nenhum acordado, que pudesse socorrê-la. Nenhum dinheiro no bolso para procurar uma pousada. Olhou para o relógio e viu que em breve os padeiros iam chegar para começar a primeira fornada. Pediria para se deitar sobre as sacas de farinha, e ainda ganharia um pão fresquinho quando acordasse. Já havia feito isso antes.Ajeitou-se nos degraus da padaria, com a mochila sobre os joelhos. Não teve tempo de descansar. Um carro apareceu na esquina e foi chegando bem devagar até onde ela estava sentada. O homem desceu do carro e avançou em direção a ela. A menina percebeu o perigo e correu, mas, antes que pudesse se proteger sob o abrigo das sombras, sentiu uma dor aguda na coxa direita e caiu. Ainda tentou levantar, mas seu corpo inteiro adormecia.

 
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   Quando o Dr. Ricardo chegou em seu gabinete, a mulher já o esperava no banco desconfortável do corredor. Mandou entrar. Não era a primeira vez que colhia o seu depoimento, e, provavelmente, não seria a última. Por algum motivo, puro instinto de delegado, não acredita no que ela dizia. O jornal sobre a mesa, cuidadosamente dobrado, trazia a manchete sobre o desaparecimento de algumas pessoas, ainda sem solução.
 
   - Fale mais uma vez, Senhora.

   -Não sei mais o que dizer. Eu já falei tudo. Foi no caminho para a escola.

   - Conte de novo.
 
   A mulher parou. Olhou para os próprios sapatos, intimidada. Não conseguia lembrar nenhum outro detalhe, já havia falado tudo. O delegado bateu a caneta no maço de papéis e enxugou o suor da testa com um lenço branco.
 
 - Estávamos de mãos dadas, caminhando. Aí ele pediu que parássemos um pouco. A mãozinha estava molhada, depois ficou fria e mole, e ele caiu. Estava muito quente naquele dia, acho que foi o calor.

   -E a senhora, fez o que?

   - Gritei. Juntou gente. O homem se ofereceu para nos levar ao hospital.

   - A senhora sabe o nome do homem?

   - Rubem.

   - Rubem do que? Como ele era?

   - Não sei o sobrenome. Ele era um homem alto.
  
   Era bonito, elegante. Não sei explicar.

   - Não existe registro no hospital, senhora. Para onde levou o menino?

   - Eu fui preencher a ficha e o homem ficou com meu filho nos braços, na sala de espera. Eu me virava para olhar os dois de vez em quando.

   - Não existe ficha.

   - Mas eu fiz a ficha. Lembro da moça que me atendeu. Era uma morena, usava uma touca estampada prendendo todo o cabelo.

   - O nome da moça?

   Maria parou de falar, fechou os olhos para visualizar a garota por trás do balcão. A roupa azul, o cabelo completamente oculto pela touca de tecido estampado, e um pequeno crachá prateado com letras vermelhas. Qual era mesmo o nome?

 
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   - Sssalomonn... Sssalomonn... Venha me ver...

   Abriu a gaveta. Lá dentro o relicário de madrepérola onde guardava uma mecha dos longos cabelos castanhos.O casamento era ainda recente, quando a doença de Helena começou a se manifestar, primeiro foram os fios de cabelo espalhados sobre o mármore do banheiro. Depois foram as manchas arroxeadas em seus braços. Ela o olhava assustada. Moravam em uma ilha distante do continente, sendo ele médico, cuidava, pessoalmente da esposa.

   Helena empalidecia aos olhos vistos, o talhe tão esbelto em contraste com aqueles grandes olhos, lhe dava uma aparência etérea, suave e ainda mais bela do que era quando o conheceu.

   Em seu laboratório, testava fórmulas produzidas a partir de plantas exótica coletadas em expedições pelo mundo. Testou algumas em suas pequenas cobaias, sem muito sucesso. Precisava de indivíduos maiores, um gato, talvez.
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    Antes mesmo de abrir os olhos, sentiu o frio, e a falta de ar. Percebeu, então, que estava submersa em uma espécie de tanque cheio de água. Tocou com os pés uma superfície lisa, indicando que estava no fundo. Tentou nadar para a superfície, mas uma tornozeleira de aço prendia sua perna esquerda a um gancho que saía do chão. Desesperada, agitava o pé, tentando se soltar. O fôlego duraria pouco, precisava que fazer algo. Desceu a mão até a argola em seu tornozelo, e encontrou um pequeno botão. Experimentou puxar, mas nada aconteceu, tentou movê-lo para frente e para trás, mas não funcionou. Então resolveu girar, e sentiu a pressão afrouxando. Estava livre! Impulsionou o corpo para cima, buscando alguma luz, subiu alguns metros até que suas mãos esbarraram em uma superfície áspera. Concreto. Tateou em busca de uma saída. Arranhou a tampa de concreto até quebrar as unhas e encher os pulmões de água.
 
    Desligou.

 
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   A cada quarenta e cinco dias o pequeno rebocador do velho Esteves modificava a rota de costume para levá-lo ao continente. Naquele dia, Salomon foi ao cais logo cedo. Quando o pequeno barco aportou ele já esperava sentado sobre a pequena maleta, com algumas roupas e livros.Estava ansioso. Recebera a notícia da chegada de uma encomenda, junto com a carta com as explicações de um colega seu.

    Acompanhava os estudos realizados na universidade em que o amigo era pesquisador, e por ele soubera de uma nova substância, extraída de uma variedade de lírios selvagens, colhidos na Ilha de Bornéu e usados em rituais religiosos.

   Quando retornou, dois dias depois, encontrou a esposa caída em seus aposentos. Felizmente, ainda respirava. Desta vez, não erraria.

 
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   Ouviu um zumbido distante e fez esforço para abrir os olhos. Tentou levantar, apoiando-se nos cotovelos e sentiu uma forte câimbra, os músculos não respondiam e ele deitou, novamente, no chão lamacento.

   Aos poucos a visão foi adquirindo foco, delineando-se à medida que a névoa espessa diluía. Olhou para cima e sentiu uma espécie de reconhecimento, como se já tivesse feito isso outras vezes. Parecia saber onde estava, mas não tinha certeza. Percebeu que ainda não era noite, pois uma réstia de luz entrava pela estreita falha, no alto da parede circular de pedra. Lá fora o vento forte zuniu anunciando tempestade. Um fio oscilante de ar fresco avançou pela fresta do buraco lhe dando um pequeno alento de felicidade.

   Sabia quem era, mas não conseguia lembrar o próprio nome. De algum modo, sabia que seu tempo estava acabando. No escuro do recinto tentou recordar como foi parar ali.

   O silêncio dentro do poço foi quebrado por um chiado, um som pinicado, e intermitente. Ficou tenso. Não sabia porque, mas aquele som era apavorante. Foi quando sentiu o arranhar de patinhas subindo pelo seu braço. Baratas, milhares delas, arrastou-se de costas até o muro de sua prisão, tentando se erguer, enquanto sacudia os pequenos braços e pernas, procurando se livrar dos insetos imundos.
 
   - Mãe! Mãe! Me ajuda, mamãe, vem me buscar!
 

 
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   Quando Cecília voltou a si, sua cabeça estourava de dor. Respirou profundamente como se ainda estivesse lutando por ar dentro daquele tanque. Estava deitada sobre um colchão fino e havia tubos introduzidos em seu nariz e boca. Quis chorar. Não havia morrido. Ao lado do seu leito, um monitor com números e gráficos luminosos. Ouviu passos.
 
   Sentiu as mãos mexendo em seu corpo, e um líquido sendo derramado diretamente em seu estômago. Aos poucos a dor foi se dissipando, e a moçamergulhou num mundo de sonhos acolhedores.

 
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   O primeiro teste que fez com o substrato de lírios selvagens e com alcaloides sintéticos foi desalentador.  Abriu as pequenas gaiolas e colocou os bichos já entorpecidos em sua mesa cirúrgica. Introduziu a substância na corrente sanguínea dos animais, e começou a anotar os sinais verificados:

   - Dilatação das pupilas;

   - Espasmos

   - Inconsciência;

   - Enrijecimento muscular;

   - Óbito.
 
   Omitia os resultados para Helena, ainda havia um fio de esperança naquele semblante desafortunado. Os últimos fios de cabelo sustentavam-se debilmente sobre o seu crânio. Daqueles que caíam pelo chão do quarto ele fez uma pequena trança e atou com fitas vermelhas, alegres. Helena já quase não comia. Passava várias horas olhando para os pratos que ele colocava ao seu lado, sem coragem de comer. Para que não tentasse o suicídio, falava que se servisse com as próprias mãos, que eram desatadas para este fim e depois atadas novamente.

   Os dias se sucediam e todas as tentativas de obter resultados positivos contra a doença de Helena fracassaram.

   Passou dos ratos aos preás e destes para os gatos, depois foram galinhas e porcos.

   Ele sabia o que precisava fazer. Sabia.

 
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   Naquele ano a páscoa caiu em março. O pequeno Levi olhava animado para a fantasia de coelho que a mãe havia alugado. Quando ela estava distraída até mesmo a vestia e ficava desfilando vestido de coelho da páscoa de frente para o espelho. A festinha seria à tarde. Deviam levar a fantasia em uma sacola e trocar a roupa nos camarins do teatrinho, mas o menino tanto insistiu, que Maria permitiu que o filho fosse fantasiado.
 
   Saíram por volta de meio dia, apesar de já estarem entrando no começo do outono, a temperatura daquele dia estava incrivelmente quente. A roupa de malha grossa com aplicações de veludo e o gorrinho com orelhas que Levi usava, pinicavam seu corpo. O menino suava e arfava pelo caminho.  Quando faltava apenas uma quadra para chegarem ao portão da escola, Maria sentiu que o menino estava com dificuldade de respirar. No minuto seguinte ele caiu no chão. Logo uma multidão se formou em torno deles, no meio de tantos rostos um homem alto e bonito com uma voz agradável se ofereceu para levá-los ao pronto socorro.

 
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   Não teve coragem de revelar seus planos para Helena, sabia que ela não iria permitir que ele os colocasse em prática. Era tão boa, tão doce sua Helena.
 
   Há algum tempo ela não falava mais. Seus lindos olhos pareciam embaçados. Não se alimentava mais a menos que ele colocasse a comida em sua boca, e não era raro que ela a deixasse cair para fora.
 
   Sabia que precisava de cobaias maiores, mas quando viu o menininho vestido de coelho, pensou em como Helena ficaria feliz se pudesse criar um filho dos dois.
 
   Apesar de ser um cientista, acreditava em desígnios divinos, enquanto observava mãe e filho caminhando, o menino parou de andar pela calçada e desmaiou. Ali estava a sua oportunidade. Depois pegaria outro indivíduo para os novos testes.

 
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   Aquela seria uma semana de corte de pessoal, não se falava em outra coisa no pronto-socorro infantil. A auxiliar de enfermagem Cecília Gouveia era a mais novata do grupo, sabia que sua chance de ser demitida era muito maior, por isso não reclamou quando foi mandada ficar no posto da recepcionista que havia adoecido. Deram uma farda para vestir, mas não havia um crachá no momento com o nome dela, então entregaram um ainda não gravado. O dia transcorreu normalmente até um pouco depois do meio-dia. Havia acabado de almoçar e a recepção estava quase vazia quando a mulher nervosa chegou. Ela andava com um menino vestido de coelho e um homem muito bonito.
 
   Enquanto preenchia a ficha o homem sumiu com o garoto. A mulher fez um escândalo e depois de procurar em vários consultórios foi até a delegacia.
 
   Quando a polícia chegou lá Cecília negou o ocorrido, falou que nunca havia vista a mulher, o menino e o homem. Ninguém a contestou. As pessoas que estavam na recepção no momento do tumultoeram pacientes e seus acompanhantes. Já haviam ido embora e quando a polícia chegou, não encontrou nenhuma pessoa que houvesse presenciado o ocorrido. Cecília sabia que se envolvesse o hospital naquela história era certo que seria chutada para fora. Pensou rápido. Preservou o emprego e ganhou a simpatia da gerente.
 
   Na saída do trabalho jogou a ficha do menino numa lata de lixo da recepção, mas não percebeu que também havia jogado junto a solicitação de bolsa para a faculdade de enfermagem, contendo todos os seus dados. Também não viu quando o homem bonito daquela tarde a recolheu.

 
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   Salomon era um velejador hábil. Alugou um veleiro na marina e esperou cair a noite para levar o menino. Deixou-o lá trancado na cabine do barco e foi atrás da mulher.

   No dia seguinte chegou à ilha. Colocou a moça em uma cela e injetou a essência de lírios com o psicotrópico, logo ela entraria na fase dos delírios.
 
   Levou o menino, ainda desacordado para mostrar à Helena.
 
   - Veja, amor. Nosso filhinho. Você vai melhorar e vamos cria-lo juntos. Seremos felizes de novo. Helena sequer voltou seus olhos para os dois. Rejeitou o menino. Mas agora já não podia devolvê-lo à mãe, já haviam visto o seu rosto. Era tarde demais. Não havia outra solução. Levou o garotinho para a cela vizinha à da moça, e aplicou nele a metade da dose.
 
   Esta noite dormiria com Helena. Foi até o quarto onde a mantinha cativa, tomou um demorado banho, e deitou-se ao lado do cadáver em decomposição de Helena Hirst. A primeira moça que havia sequestrado.
 

 
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   No mês seguinte Dr. Ricardo pegou a ficha do menino sumido, e mandou o inspetor ligar para a casa da mãe pedindo que ela comparecesse à delegacia no dia seguinte, para colher, mais uma vez a sua declaração. Tinha certeza que ela estava mentindo. Nunca se enganava com aquelas vagabundas.

 
Fim