dEPOis dA ChUvA

Aquele espaço ilimitado e indefinido que jaz sobre as nossas cabeças e que dizem ser o firmamento, para mim é apenas um chuveiro intermitente, inacessível à razão, e objeto maior da fé de todos os que não podem arcar com as despesas do serviço de abastecimento de água. Pregam que as nuvens são belas e delicadas. Apaixonados pela sua alvura, poetizam ao descrevê-las como tenros fragmentos gigantes de algodão-doce. Queriam os mendigos poder saciar a fome comendo um pedaço do céu! Divinizá-lo tornou-se praticamente uma convenção social. Não há quem não goste do céu. Pensem o que quiser, mas sou do contra. O céu é um chafariz de cabeça para baixo que insiste em nos enviar gotas d’água kamikazes e sem pára-quedas.

Acendo um cigarro e espero a chuva cessar. Sou descortês com os românticos que dançam enquanto o toró vem abaixo. E impolido com as senhoras de cabelos grisalhos que grudam as suas faces nas janelas de casa apenas para admirar as “lágrimas de Cristo”. O que dizer, então, daqueles pobres coitados que, mesmo sem possuir o grau mais grave de atraso no desenvolvimento mental, insistem em sorver a água da chuva imaginando estarem tragando aguardente? Uma irrisão, como um cão sem dono vagueando desgostoso por ruas desertas, tomando um banho à força por não desfrutar do privilégio do livre-arbítrio. O livre-arbítrio é supostamente vendido pela loa dos outdoors encharcados e nefandos.

A pequena porção de tabaco picado e enrolado em um pedaço de papel não resiste ao líquido celestial. Tenho um nó em minha goela. O ar da dúvida é o que me nutre. É proibido fumar enquanto chove? Até aonde pode ser interessante manter-se imóvel em um ponto de ônibus abandonado, aguardando que desliguem o chuveiro do céu? Porque os bombeiros etéreos jamais avisam quando irão atacar? Eu sei que terei frieiras amanhã, porque atolar os pés nas poças e umedecer os espaços entre os dedos é o automatismo que herdamos da chuva.

Sem fumo, sem ônibus, solitário, perplexo e propenso a inflamações, só me resta mover a braguilha e encostar o focinho no sovaco para conferir se a fragrância de camelô resistiu ao vento provocado pela precipitação draconiana. Coçar a barba, consultar o relógio, cuspir no chão e consultar o relógio. Enquanto a torneira sagrada insiste em permitir que o suor do céu se derrame sobre nós infectado de angústia, sempre criaremos alternativas dispensáveis na esperança de amenizá-la.

Tiritando, ainda prefiro sonhar com ofurô, lareiras e Pink Floyd.

E, até que possa dizimar a minha quizila, contento-me em direcionar um olhar colérico para aquele espaço ilimitado e indefinido que jaz sobre as nossas cabeças e que dizem ser o firmamento. Por um instante, eu tenho a certeza de que tudo mais irá passar. Mas só depois da chuva.

Angello
Enviado por Angello em 11/08/2006
Reeditado em 12/08/2006
Código do texto: T214389