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Ainda que o luaceiro eclodisse entre as nuvens túrbidas e lacrimejantes, molestadas pela partida da chama solar, não seria ele mais do que um reles e ínfimo bálsamo para a inelutável neurastenia da noite que se debruça sobre a urbe. O céu, carregado de dolência, é leviatã. Ventoso e trovejante, hostiliza a candura das flores, bloqueia a eletricidade dos postes e desafia a bravura dos cães que tentam preservar o estado letárgico dos seus donos. Logo, aqueles que hesitam em criar cães, ingerem sedativos. Os alérgicos a sedativos são, inevitavelmente, insones. Como a tia Eleonore.

Depois do terreno baldio há uma tapera. É lá que tia Eleonore, que não tem um amigo fiel e é aposentada por invalidez, opera a sua vacuidade. Não recebe visitas. Não sintoniza estações de rádio. Não gosta de happy-hours. Cheira a resina e usa dentadura. Definitivamente, ela não tem nada de elegante, e durante a puberdade adiquiriu o hábito de roer as unhas. Outrora, fora condenada à fogueira inquisitorial, por se devotar a adivinhar o futuro alheio através da leitura das linhas das mãos. Mas os bombeiros chegaram a tempo, e a tia Eleonore cometeu apostasia. Perneta, não usa roupas, guardanapos ou papel higiênico. Mas, coleciona olheiras.

Habituada à intempérie, é indiferente à ira das lufadas que deformam as cortinas da janela soaberta. Nestes dias de tempestade, titia é sarcástica, e não pára de ranger os dentes um só segundo, como se o frio lhe atingisse com a mesma violência de um terremoto, inflando-lhe as pelancas e enrijecendo-lhe os mamilos dos seios murchos à base da cintura. Ela chega a ficar excitada quando a água da chuva escorrega pelo telhado gasto e lhe adentra os ouvidos. E a sua face, tão minguada de levedura, logo torna-se coralina. O romantismo de titia, em outros tempos, estava aquém de um passeio de charrete, rosas vermelhas ou poesia declamada. Beijos, nem pensar: Eleonore era beiçuda, e este sempre fora o seu maior trauma nos tempos de escola. Eis o motivo pelo qual jamais usara batom. Além disso, era fumante e vivia a sofrer com aftas. Pra piorar, adorava omelete, e, sempre que abria a boca, os garotos costumavam se queixar do odor de ovos batidos. Titia nunca gozou.

Uma vez, numa rara ocasião em que permitira se entregar ao sono, tia Eleonore teve um sonho, talvez o único em toda a sua vida. Nele, ela surgia jovem e sem muletas, usando um xale aveludado e brilho sobre os lábios de Marylin Monroe. Estava feliz porque conseguira trocar o cigarro por palitinhos de chocolate, e os omeletes por sapatos de saltos bem altos. Era Natal, e ela admirava, através da janela do seu castelo, o aspecto atraente das montanhas e o raiar arrebatador da lua acendendo a superfície gelada do lago. Acariciada pela suave cantiga do vento, titia adormeceu como uma princesa à espera de um beijo do príncipe encantado, um dândi que deveria despontar em um trenó, atravessando os céus com um pinheiro nas mãos e cantarolando Jingle Bell.

Porém, da colisão entre fantasia e realidade é que brota o despertar da consciência. Debaixo de goteiras e ao som mofino dos cães uivantes da vizinhança, Eleonore acordou para voltar a viver a sua angústia perpétua. Era madrugada, e o frio eriçava o seu corpo nu. Ainda jacente, olhou em volta com toda a sua languidez, e então tudo era como antes: louças sujas sobre a pia, rastros de muletas no chão empoeirado, luzes de castiçais na cabeceira e sombras oníricas refletidas no espelho.

Angello
Enviado por Angello em 03/10/2006
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