0S MENINOS DO CARRO ALADO

Quando saio de um mercado, faco-o do mesmo modo que entro, feito flecha, rapidinho. Alias, faco tudo assim, inclusive as compras. Por isso, eh muito comum que eu advinhe o que ja temos, dificilmente erro; levo pra casa um monte de duplicatas. Ja avisei que nao vou a mercado por causa das compras mas, pra me distrair, andar, olhar prateleiras. Claro que isso eh blefe, uma tentativa de ludibriar ateh a mim mesma, minimizar o espanto geral diante do meu obvio desconhecimento da nossa despensa. Se fosse verdade, por que a pressa? Eh muito confuso mas eh assim que acontece.

Nesse dia nao foi diferente, andei quase correndo ateh meu carro, no estacionamento. Abri a porta traseira e comecei acomodar as bolsas.

Ao meu lado esquerdo, duas vagas, daquelas que daria pra estacionar duas carretas; bem diferente do que acontecia com o resto do estacionamento: completamente lotado.

Foi desse lado que veio se aproximando um carro dirigido por um senhora, atras dela um outro carro com tres rapazes.

Era tao senhora que parecia usar um capacete branco; eram seus cabelos, branquinhos como neve.

A farra estava boa no carro atras do dela, o som tao alto parecia balancar o carro. 0 motorista de brincos, tatuagem, oculos escuros. 0 carona dele com os cabelos cheios de trancinhas, pra cima, identicos a espetos. Evitei olhar muito pra eles, o terceiro devia estar pelado, de modo a chamar bastante atencao. 0 carro parecia uma grande ave, uma asa pintada a direita e outra a esquerda. Imaginei na estrada principal aquele carro voando. COMO EH MARAVILHOSO SER JOVEM!

Mas, naquele momento, o que eles dependiam mesmo era daquela senhora. Ela tinha que estacionar numa vaga pra que pudessem estacionar na outra.

Ela tentava, tentava e nao conseguia.

Pra frente, pra tras e o carro duas rodas numa vaga e duas na outra.

Apos a vigesima tentativa, ficaram irados e buzinaram na traseira dela, abriram o vidro e diziam coisas mas, eu soh via os piercings nas linguas deles porque o som do carro abafava tudo.

Pra cada tentativa dela, vociferavam dentro do carro, emputecidos, certamente, xingando a velhinha.

Enquando isso a fila atras deles crescia silenciosamente.

Parei de por as sacolas dentro do carro pra tambem prestar atencao na velhinha que por varias vezes esteve pra bater no meu carro. Pra cada manobra dela um calafrio me fazia tremer o corpo todo.

Tornaram a buzinar e de dentro do carro o garotao motorista cruzou os bracos, indicando estar muito puto com a velha.

Foi ai que ela olhou-me pelo vidro lateral e telepaticamente enviou-me a mensagem: "vou mata-los dos bofes".

Sem dizer uma unica palavra, atravessa o carro nas duas vagas (ela jamais saberah como conseguiu aquela facanha), sai e balanca a chave para os rapazes como a dizer: bye bye.

Isso foi suficiente pra que um deles saisse do carro, abrisse os bracos indignado mas, tratava-se de uma ancia, voltou a entrar no carro.

Uma coisa eu tinha como certa, nao chamariam policia pra velha, os jovens costumam odiar intervencoes policiais.

Pensei: COMO EH MARAVLHOSO SER VELHINHA!

Pra mim, gesticularam como se dissessem: "Eh mole?". Respondi com aquele sorriso cinico, de canto de labio e ainda sacudi a cabeca, negativamente.

Dai pra la, ficaram a espera que eu saisse pra tomarem minha vaga.

Tomada de admiracao pela velhinha que optou por nao stressar-se, apressei-me a colocar as sacolas dentro do carro.

Talvez o peso da caixa de garrafas d'agua e latas de pepsi, comecou a revoltar-me contra os rapazes que, certamente, deixaram nervosa a senhora e por isso ela nao conseguira estacionar; fui fortalecendo essa ideia, conversando comigo mesma.

Eram os pole positions de uma fila imensa que buzinava pra seguirem em frente mas, esperavam por minha saida.

Fechei a porta traseira do meu carro e fui ainda estacionar o carrinho de compras no lugar proprio; eles detestaram que eu tivesse feito isso. Tudo correndo, tinha que desocupar o lugar.

Ja estavam roxos comigo tambem. Pareciam tres gatos num saco.

Alguma coisa em mim cresceu, pode ser aquele monstro que alimentamos dentro de nos em algumas situacoes e optei por vingar a velhinha matusalenica que, a essa altura nao devia nem lembrar que tinha carro, quanto mais onde o estacionara.

Conferi se todas as portas estavam fechadas, entrei no carro, abri o porta-luvas, tirei dele um oculos amarelo e preto, troquei pelo preto e laranja que estava usando, passei protetor labial e, sai do carro. Liguei pra minha casa e comecei gargalhar com minha secretaria eletronica. Passei por eles e com a chave balancando nas maos gritei: BYEEEEEEEEEEEEEEEEEEEE!!!Retornei ao mercado.

Um deles subiu no carro e gritava: "vem lamber minha bunda", "f.d.p."......um repertorio extraordinario de palavroes.... 0 outro desceu do carro e chutou os pneus. Enquanto isso eu gargalhava ao telefone, ninguem sabia que era comigo, atravessei a rua e entrei no mercado.

La de dentro eu assistia ao magnifico desfile de carros, uma romaria de odios.

Tive a sensacao que todos queriam matar os rapazes, enquanto, eles dariam os dentes da frente pra me encontrarem numa estrada.

Nao me lembro de ter gasto tanto dinheiro num mercado como naquele dia. Acabei comprando ateh o que realmente precisavamos em casa.

Ainda nao defini o que detonou, em mim, aquela vontade enorme de debochar deles. Nao sei se fiz tudo aquilo pela falta de paciencia com o idoso ou se, simplesmente, resolvi medir forcas com a juventude dos meninos do carro alado.

Voltei pra casa pensando: entre a furia incontida dos meninos e a renuncia inteligente da senhora, eu, cinquentona, nao podia perder a chance de fazer uma "ponta no show" comico do cotidiano.

Rosa Maria Dias - Jotapati

jotapati
Enviado por jotapati em 05/03/2006
Código do texto: T119038