Dona de casa
 
Depois de dias de folga, quase que forçados, pois no fim do ano ninguém quer ser atendido no consultório, posso dizer que hoje começo o ano, de trabalho. Comentei isto com uma paciente e ela disse que o ano (produtivo) começa em março, depois do Carnaval. Que seja...
 
Apesar de poucas pessoas marcadas, demorei mais do que o normal nos atendimentos. Por coincidência, todas as pessoas estavam um tanto, vamos dizer, "kármicas". Trouxeram dramas diferentes, situações sérias. Eu me vi como uma fita isolante, um fio terra...
 
No final do dia vim caminhando devagar para casa. Parecia que a distância era enorme. Ainda cansada, não parecia que eu tinha tido folga por tantos dias. Levo o peso de coisas sérias nas minhas costas. Estas traem a aparente tranquilidade.
 
Lembrei de um colega neurologista que trabalha quase que 24 horas ao dia. Toda vez que eu ligo para ele, já me desculpando por incomodar, ele diz: "Graças a Deus que estou trabalhando!".
 
Quem vê a vida pelo lado monetário, entenderia assim: "Graças a Deus que eu estou ganhando o meu!". Mas não é isso. Eu conheço a figurinha e sei que o que ele quer dizer é: "Graças a Deus que eu tenho saúde para cuidar de quem não tem!".
 
Procurei satisfação no meu trabalho e percebi que minhas palavras eram importantes, apesar de soarem tão comuns para mim. Porém hoje eu disse frases que acabaram com a alegria de certas pessoas, como por exemplo: "No seu caso não há solução!". Eu tive que dizer, pois me pediam uma opinião, mas deixei a porta aberta a futuras tentativas terapêuticas.
 
Também disse: "Como pode uma moça tão jovem e bonita se submeter a tais humilhações? Saia dessa!". E recomendei vender quentinha na esquina, mas manter a dignidade.
 
Também ri com o recado na secretária eletrônica: "Leila, quem é esse puto que tá falando em inglês? Cadê você?!". Era a minha amiguíssima Mairá, que interpreta Dona Menô em minhas palestras, reclamando da gravação original do telefone.
 
Eu disse tanta coisa... Vi gente chorar à minha frente. A cada meia hora a cena mudava. Não senti o tempo passar e olhei o mundo além de minhas portas de casa.
 
Quando cheguei à minha casa, estranhei tanta limpeza, tanto perfume, tanta ordem. Foi dia da faxineira. Liguei a máquina de lavar roupas e automaticamente liguei meu computador para começar a incorporar a "escritora". Como eu ainda demoro algum tempo para me desligar da "outra realidade", comecei a ler colegas que escrevem em uma página literária. Não deixa de ser uma boa forma de relaxar.
 
For assim que li Ceres Damasceno, numa crônica sobre a dona de casa, a mãe. Eu senti de repente minha vida voltando anos atrás.

Através de minha janela senti cheiro de refogado de arroz, talvez um risoto. Sou boa em olfato - todo médico é. Como também sou dona de casa, sei como é cheiro de qualquer comida do vizinho, geralmente melhor que a minha...
 
Uma cigarra começou a cantar, anunciando que no dia seguinte não choverá. Um silêncio enorme, neste apartamento que, graças a Deus, é longe da balbúrdia da rua, ao ponto de eu ouvir os talheres do vizinho.
 
Misturados os sons com o da máquina de lavar ligada, eu viajei para minha infância. Eu me senti uma adolescente estudando na mesa da copa enquanto o pai assistia ao Jornal Nacional. A família chegando da rua; o cachorro fazendo bagunça no sofá; a gata miando e pondo a patinha sobre o livro para chamar a atenção.
 
No centro de tudo, uma mulher, minha mãe, fritando "bolinhos de resto" na cozinha, proferindo algum palavrão em protesto a algo trivial. Lembro de meu pai dizendo "Olha os vizinhos!" e minha mãe dizendo "Eu quero que os vizinhos vão pra PQP!".
 
Recordo que um dia ela me disse que tinha que pedir desculpas aos vizinhos por tê-los ofendido, mesmo que genericamente. Fomos, as duas à vizinha do lado. Acho que ela se chamava Irani, mãe de minha coleguinha Maria Helena. A senhora, muito educada, disse que jamais ouvira nem um palavrão vindo de nossa casa. Impossível isto!
 
A seguir, fomos ao vizinho da direita, seu Juca. Ele disse: "Dona Lola, a senhora pode falar quantos palavrões desejar, desde que frite bolinhos todo dia, pois eu como o cheiro deles...". 

No dia seguinte seu Juca comeu todos os bolinhos que sonhou em sua vida. Em troca, eu comi filhoses, pois era Natal. Alguns anos depois eu fazia seu último atendimento domiciliar, antes de sua morte.
 
Muitos anos se passaram até eu escrever este pequeno texto. Eu aprendi a fazer bolinho de resto, a ser dona de casa, a ser desbocada e, ao mesmo tempo, educada. Também aprendi a ser médica nas horas vagas.
 
Sem um lar para me abrigar e ter todas a"irresponsabilidades" da juventude; sem uma mãe que me ensinou a dar valor às pequenas façanhas da vida, hoje eu não seria o que sou.
 
Leila Marinho Lage
Rio, 6 de janeiro de 2009

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