Eu queria dar uma aula*

Wilson Correia**

Sintomático que professores e professoras deem aulas. Seria estranho se eles vendessem aulas? Não quero saber. Desejo, nessa de “dar aula”, desejar uma aula única e plural, como a minha primeira e a minha última, como o melhor de mim para o melhor daqueles e daquelas entretidos em aprender.

Eu queria dar uma aula que reunisse as mais graves informações sobre a leveza que a vida pode ter para crianças, adolescentes, jovens e adultos, homens e mulheres integrados, horizontalmente, a todas as manifestações vivas da energia vital. E que essa aula, assim teoricamente fundamentada, pudesse arrancar da morte não chancelada pela burocracia que nos sufoca aqueles infantes catadores de lixo. E que os donos do lixo, ao assistirem a essa minha aula, saíssem dessa minha aula e fossem cidade afora anunciando que humanos podem encontrar formas mais saudáveis de se alimentar.

Eu queria dar uma aula que mobilizasse conhecimentos suficientes para mostrar aos presos o quanto pesa a pluma da liberdade. E que, ao sentarem na cadeira diante da minha aula, os aprisionados aprendessem a fazer de suas correntes e algemas e tornozeleiras e sentenças de prisão o pó indo ao vento, em liberdade, e que gostassem de ver o vento indo e se alinhando, caroneiros, à viagem infinda que ele empreende. E que advogados, juízes, promotores, desembargadores e ministros, operadores todos do direito, todos sensibilizados por essa metodologia da minha aula, viessem a proclamar seu desgosto em denunciar, apenar, vigiar, castigar, prender ou aprisionar.

Eu queria dar uma aula que evocasse saberes que, ao apreendê-los, homens e mulheres do planeta inteiro se posicionassem de uma maneira inusitada em face do existente, numa posição relacional, integral, íntegra, cooperativa, solidária e práxica, visando a fortalecer a dimensão comum da existência social e coletivamente mantida e compartilhada. E que ao tomarem conhecimento dessa minha aula, os senhores do mundo, no topo e no centro de tudo, que se julgam capazes de explorar tudo, conhecer tudo e a tudo subjugar como déspotas tecnocienticizados, que esses senhores do mundo escolhessem abrir mão do domínio e fizessem uma carta aberta ao mundo dizendo que todos somos iguais, livres, e que, por conta disso, nada mais poderia se interpor entre um humano e outro de modo a perpetrar a desigualdade, o mando obtuso, a servidão e a instrumentalização de uma pessoa por outra. E que, dali em diante, seríamos todos fraternos, verdadeiramente irmãos. Por conta dessa concepção teórico-metodológica que eu havia empreendido nessa aula que eu queria dar.

Que informações, conhecimentos e saberes assim investigados e transmitidos e produzidos e construídos e apropriados pudessem fazer da aula que eu queria dar o mote para nossa autoheteronomia plausível à nossa heteroautonomia vivencial. E que o milagre da liberdade humana se fizesse real e que os sonhos humanos se atualizassem até seu último grau, nesse entrelaçamento de vidas e existências e seres e pessoas.

E que ao saber dessa aula que eu queria dar, a imprensa viesse me perguntar de onde tirei essa aula que eu queria dar e que eu dissesse que ela me foi doada por uma divindade mítica, que cansou de entreveros no Olimpo e resolveu baixar na Terra e provar aos humanos quão simples é fazer a união sacrossanta de justiça e felicidade.

E que depois que a imprensa fosse embora, após ter me ouvido sobre a aula que eu queria dar, que eu ficasse a sós comigo, rindo da minha peraltice, e que eu confessasse a esse ente mitológico a divina verdade, a de que acabei mentindo para a imprensa, porque, no fundo, eu mesmo havia criado essa aula que eu queria dar para que aqueles infantes catadores de lixo pudessem entender que há modos mais nutritivos de se alimentar.

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* Publicado no Diário da Manhã, Goiânia, 11.08.2009, p. 13.

**Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins, Câmpus Universitário de Arraias. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009.