Quando me Zango


Tenho humor de criança boba e sangue de barata. Zanga não é exatamente um dos meus estados de espírito mais comuns. É claro que também me zango. Tem coisas que realmente me tiram do sério: injustiças, desatenções, truculência, burrice. E, quando digo, burrice, não estou falando de ingenuidade ou ignorância. Não saber é diferente de não pensar. Com bilhões de neurônios em franca atividade na cabeça, é inadmissível alguém se dar ao desfrute de não usá-los.
Como sou transparente, normalmente é fácil perceber quando estou zangada. Já viu aquela cena de desenho animado em que a personagem vai ficando vermelha dos pés à cabeça, explodindo como uma panela de pressão, fumacinha saindo da moleira? Pois é. Tirando a parte da fumacinha. O sangue me sobe às têmporas, colorindo a face. Fecho o cenho, faço bico e a voz afina, esganiçada.
A partir daí, minha reação varia de acordo com meu entendimento sobre seu impacto. Se adianta continuar na peleja, procuro argumentos razoavelmente equilibrados para convencer o oponente de meu ponto de vista. É claro que às vezes, posso exagerar, dizer o que não queria, magoar, ofender. Justamente por isso, prefiro deixar os ânimos arrefecerem, antes de tomar qualquer atitude. Se a causa já está mesmo perdida ou se sua solução pode ser adiada, prefiro me calar. O bom e velho contar até dez, cem, se preciso, já me livrou de poucas e boas e me permitiu avaliar a situação com um pouco mais de clareza. Quando muito, atalho o encerramento da bronca com um “xá pra lá!”.
O ruim disso é que às vezes deixo passar aquele momento em que o que o outro merecia mesmo era um pouco de fúria assassina. Me pego, horas depois do ocorrido, imaginando tantas coisas inteligentemente cruéis que eu poderia ter dito ou feito para me vingar, para aplacar em mim esta ânsia de ter deixado passar em branco... Depois o tempo prova que foi melhor assim. Sei lá... diz que o mansos herdarão o reino dos céus. Esta postura rende lucros aqui mesmo, sobre solo profano. Não ir às vias de fato quando o sangue nos sobe à cabeça ajuda a conservar amizades e, o que é melhor, evitar inimizades.
E por falar em inimigos, espero viver muito para poder fazer como aquela velhinha linda da história a seguir, que circula por aí, apócrifa, pela internet – não vou usar aspas, pois estou contando à minha maneira:
Quando o padre pediu a todos que tivessem inimigos para levantarem uma das mãos, ela foi a única que permaneceu com os braços suavemente apoiados sobre o colo.
Foi, então, convidada a subir ao altar:
- A senhora não tem inimigos?
- Não, padre. Nenhum. - disse ela, com uma voz absolutamente tranqüila.
- Quantos anos a senhora tem?
- Noventa e três.
- Que bênção! Conte-nos, por favor, como é possível chegar aos noventa e três anos sem ter inimigos.
E ela, com um olhar límpido de anjo, um sorriso doce como mel e a voz suave e serena respondeu:
- Por que, a esta altura, os desgraçados já estão todos mortos!

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Quando me Zango
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