Supremo corte*

Wilson Correia**

Brasiniil chegou ao Palácio da Justiça. Reparou que a estátua feminina a representar a justiça tinha mesmo os olhos “amordaçados”, no que foi logo cortado: “Amordaçados não!... vendados”, ensinou o acompanhante.

Vista a disposição de ensinar, problematizou: “Porque é uma mulher, cega e com espada na mão?”

O ensinante se empolgou: “Então... Segundo Junito de Souza Brandão, em seu ‘Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega’ (Petrópolis: Vozes, 2000), na cultura grega existiam as ‘Horas’, filhas de Zeus e Têmis, casal supremo do Olimpo. Sim, os gregos tinham muitos deuses. Entre as doze ‘Horas’, três se ligavam a assuntos jurídicos: Dique (Justiça), Eunomia (Equidade) e Irene (Paz). Dique encarregou-se de cuidar da Justiça humana. Eunomia, a segunda, aceitou velar pela legislação. A terceira, Irene, cuidava da paz e da riqueza. Vem daí a representação da Justiça como estátua feminina, que muitos dizem ser Têmis; vários entendem ser Dique; outros, Eunomia; e outros, ainda, Irene. Mas o que interessa é o sentido da coisa, entende?”

Admirado, Brasiniil ouviu toda aquela sabedoria, e não deixou a curiosidade fugir: “Mas faltou falar da tira tapando os olhos e da espada...”

“Olha”, continuou o mestre, “essa venda nos olhos da estátua significa a imparcialidade da Justiça. Ela não pode favorecer uma parte e prejudicar a outra. A Justiça tem de ver o que é verdadeiramente justo”.

Brasiniil fazia ares de entender e o professor emendou: “Já a espada simboliza a força da justiça que a Justiça deve mobilizar, visando ao bem entre os seres humanos”.

Esclarecidas essas partes, Brasiniil fez a última pergunta: “Eu esqueci de perguntar sobre a balança. O que ela quer dizer?”

“A balança”, disse o professor, "representa o equilíbrio. Imagine o cidadão comum em um embate por justiça contra o Estado?... Será necessária muita sabedoria por parte da Justiça para que o segundo não esmague o direito do primeiro. Esse equilíbrio na demanda é um desafio. Sempre, quem pode menos tem a corda arrebentada em suas mãos e a Justiça deve evitar que isso ocorra, exatamente para que mais violência contra o homem comum não seja perpetrada injustamente”.

Brasiniil deu-se por satisfeito com essas opiniões e ambos adentraram o suntuoso Tribunal, causador de medo pela imponência. Aquele luxo todo diminuiu Brasiniil. Ele ficou nervoso perante o aparato material e humano que viu na Corte. E, no julgamento a que assistiu, um poderoso senhor foi absolvido e um intermediário entre grandes e pequenos resultou culpado por um crime compartilhado pelos dois. Como aquilo pode acontecer, se o que foi livrado de culpa era, inclusive, o chefe que ordenava as ações do segundo à época do ocorrido? Que teatralidade e tecnicisse são essas da Justiça, que se vale de filigranas jurídicas para limpar a cara de um e culpabilizar o outro, ambos igualmente responsáveis pelos mesmos fatos?

Essas indagações calaram o professor. Brasiniil ficou desolado: “Isso não tem nada a ver com a simbologia que aprendi”, lamentou ao acompanhante. “Mais que isso: vim à ‘Suprema Corte’ e recebi um ‘supremo corte’. Está quebrado o meu entendimento... Como dizia meu pai, ‘Na briga entre a onda e o rochedo, o marisco é quem apanha'”.

Com essa frase, Brasiniil Decepcionado da Silva abandonou o Tribunal.

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*Publicado no Diário da Manhã, dia 01/09/2009, p. 20.

**Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009.