Favela – Caminhando pelo Rio, cap III

Na verdade esta seria a quarta crônica da série “Caminhando pelo Rio”. Eu já tinha escrito sobre uma favela, mais exatamente um posto de saúde na entrada de uma favela. Apaguei o texto, pois este aqui complementa o que antes ficou pendente.

O "passeio" foi feito enquanto eu estava sentada num banquinho, na frente de um posto de saúde do município, esperando um táxi para ir embora, depois que eu decidi não trabalhar mais no setor. Os motivos que me levaram a isso foram basicamente administrativos, o que não vêm ao caso agora.

Aguardo o táxi que chamei pela central. Já no pedido, perguntaram-me onde exatamente ficava a tal rua, pois dependendo do lugar, o motorista decide se vai ou não vai. Olho o cartaz com o nome do PS. No outdoor, o emblema da cidade, e quase imperceptivelmente, o slogan: "Cidade Maravilhosa".

A rua não é rua, apenas uma via onde pessoas se misturam e eventualmente entra um carro. Um porco passeia com seu companheiro, um cãozinho. Biroscas vendem biscoitos, café e coisas afins.

Passa uma senhora com aspecto de alcoólatra, apesar de não estar no momento sob efeito da bebida. Alguém grita: "E aí? O que você está vendendo hoje?". A mulher aponta para seus genitais e diz um palavrão. Senti necessidade de virar o rosto para observar algo diferente.

Uma fila enorme de pessoas esperando serem consultadas. Um homem resmunga para a esposa que estava com seu bebê no colo: "Estou aqui na fila desde cinco da madruga. Agora toma o meu lugar que eu tenho que trabalhar!". Ela concordou: "Vai, amor. Pode ir" – a rotina de uma família pobre.

Um homem sentou ao meu lado, talvez imaginando que eu era uma paciente, e começou a conversar comigo como se já me conhecesse há tempos: "Esse povo é muito burro. Se tem batida policial, por que saem de casa? É por isso que o guri ontem morreu aqui na esquina! Eu é que não saio. Tenho pelo menos três parentes bandidos. Se eu não paro para a polícia, to ferrado. É por essas e outras que eu estou indo pra outra comunidade...".

Entrei no esquema, tentando ser cordial, mas mudando de assunto: "Pois é... As casas estão sendo desvalorizadas aqui no bairro. Vejo um monte de anúncio de venda e provavelmente ninguém compra, ninguém vende".

Acho que ele deve ter rido por dentro e entendeu que eu não era dali. Ele estava falando de barraco, não de “imóveis”. Adivinhando que eu era uma estranha no ninho, ele respondeu: "A senhora pensa que a gente mora aqui porque quer? Não! É porque precisa! Mas aqui já foi um paraíso...".

Ele tinha poder de decisão, mesmo sem muitas alternativas: ele estava indo embora de vez dali. Eu também...

Ao chegar o carro, um garoto atravessa na frente do mesmo e quase é atropelado. Ninguém na rua se assusta, mas ai do motorista se machucasse a criança...

Quando eu já ia abrindo a porta, veio me saudar uma paciente que eu tinha examinado. Ela não conseguiu ser atendida por um clínico. Fora encaminhada para a ginecologia devido a uma dor de cabeça – podia ser a menopausa... Constatei que sua pressão arterial estava alta, mas aproveitei para fazer preventivo, pedir mamografia e outros exames, que ela jamais fez. Disse que o melhor caminho seria ir a uma emergência, pois marcar consulta ambulatorial demora meses, mas provavelmente ela nunca saía daquele local para nada: não sei se por achar que jamais conseguiria pronto atendimento ou por dificuldade de transporte.

Ela me revelou: "Depois que eu saí de sua consulta naquele dia, eu fui à minha igreja e rezei pra minha santa. Minha cabeça rodava, eu me senti muito mal. Uma depressão enorme se apoderou de mim". Será que aquela senhora sugou algo de ruim vindo de mim?

Alertei que ela tinha direito a um médico especialista e deveria brigar por isso. Eu não podia nada mais fazer, pois estava me despedindo daquele trabalho. Ela me olhou surpresa: "Mas como?! Logo agora que eu avisei pra favela toda sobre a nova médica! E agora? Onde é seu consultório?".

Se eu fosse candidata a cargo político, já teria alguns votos... Fui honesta: "A senhora não terá como ser tratada em particular, nem por mim, nem por outro médico. Faça como orientei: exija um atendimento com um clínico ou cardiologista por aqui ou em outro posto. Todo cidadão tem este direito!" – agi como política, decerto...

Antes de ir embora, pensei por alguns segundos e me voltei novamente para ela, abraçando-a: "Se seu problema for físico, espero que encontre quem cuide de você. Se for espiritual, desejo que este meu abraço possa lhe trazer energias positivas". Era a única coisa a fazer. Não é assim que precisava ser.

Dentro do carro cocei a perna, pois muitos mosquitos me morderam por lá, então eu lembrei que o aedes aegypti pica de dia e que chega o calor. Senti vontade de chorar, por uma sensação enorme de impotência como cidadã e profissional.

Leila Marinho Lage
Rio, 9 de setembro de 2009
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