Foguinho

Wilson Correia*

Foguinho ganhou esse apelido porque tinha cabelos que lembravam labaredas. E não era só! A carinha era bonita de se ver, salpicada de sardas. A Foguinho – apelido mais carinhoso do que caricato, depreciativo, desqualificador – não aconteceu de os amigos da escola atazanar e o magoar, pregando-lhe epítetos ruins por conta do fenótipo. Ele era é invejado, isso sim.

Pois bem! Foguinho nem sonhava com o ‘Menino Maluquinho’, do Ziraldo, mas já se fazia o menino de brasas nos olhos. Um cara legal! Vivia cada coisa a seu tempo, não se esquecendo do que, certa vez, havia ouvido na aula de catequese: “Há um tempo para tudo embaixo do céu”, ao que ele teria retrucado: “E acima?”, já mostrando suas asinhas.

Enquanto resposta não vinha, meio que sabendo que quando se tem todas as soluções a vida vai mudando os problemas, Foguinho ia levando: estudar no tempo de estudar, ajudar a família quando o auxílio lhe era solicitado, peraltiar quando peraltices cumpriam a séria função de fazê-lo experienciar a fundo a infância, e a rezar quando era a hora de rezar... Rezar?

Pois foi numa reza em família – na verdade, entre famílias, porque, na roça onde morava, reza na casa de uma atraía a circunvizinhança que o maluquinho aprontou “uma das suas”, catalogadas na memória de quem presenciou e se divertiu à beça.

A casa de madeira era alta, com espaços abaixo do assoalho que servia de “Hotel Subsolo” para os carneiros criados pelo grupo familiar. A sala era ampla o suficiente para acolher metade dos rezadores; a outra metade dos visitantes ficava no alpendre. Colada à parede foi montada a mesa-altar: imagens dos santos cultuados, flores naturais e de plásticos, velas, uma toalha imensa cobrindo a mesa. As extremidades dessa toalha chegavam ao assoalho, fazendo como que uma casinha para imaginação de Foguinho foguetear, à vontade

Era exatamente na "casinha" que ele estava metido. Levou consigo a Tianinha, a gata superquerida naquela casa. Lá ele ficou, do sinal da cruz inicial até a ladainha, a parte final do terço, como chamavam a rezação. Bem no instante, em que os devotos suplicavam “Rainha das virgens, rogai por nós”, Foguinho deu uma torção arrochada demais no rabo de Tianinha. O grito que a coitadinha soltou pareceu um urro de outro mundo, coisa do dema.

Aquele berro felino causou o maior pandemônio, o maior entrevero. Assustou tão fortemente os rezadores que todos, como ensaiados, afastaram-se de um golpe da mesa-altar, silenciando abruptamente a ladainha, alvoroçados para saberem de onde vinha aquele grito diabólico. Seria das profundezas dos infernos? O deus-nos-acuda! A toalha da mesa acabou arrastada. Era tudo que é coisa no chão: santo se misturando com flores e água do jarrinho e vela pingando no assoalho de madeira e café melecando tudo e mais um pouco e o povo já esvaziando completamente o recinto.

Tianinha acabou nem sendo percebida por ninguém em meio àquela confusão. Foguinho já se encontrava em meio aos rezadores, uns tremendo de medo, outros amarelos de pavor.

O burburinho de todos contra todos, de todos a favor de todos, de ninguém entendendo bulhufas, de frenesi à lá pó de mico sarnento, só foi cortado pela matriarca da casa, a dona Zica:

– Irmãos, recomecemos tudo. O capeta não pode ser o vitorioso.

Sorrateiro, de olhar a meia quadra, escondidinho na anca da mãe, lá estava Foguinho. Deliciava-se, matreiramente. Dizem que, além de brasas nos olhos, Foguinho também apresentava raios de sol na pontinha do nariz.

_________

*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009.