O olhar da passageirinha
Wilson Correia
Tomo o executivo de Brasília para Goiânia. O carro é espaçoso e vou logo me aboletando no meu assento. Nem tiro os óculos escuros e começo a ler o jornal do dia. Respirar novos ares sempre me faz bem. Caio completo na leitura, fatalista, absorto.
Sem mais nem menos, minha concentração é cortada, abruptamente, pelo movimento de entrada no carro de um rapaz meio estouvado, medianamente vestido, com apenas uma gravata de trabalho a chamar a atenção. Caminha em direção à menina à minha direita.
Num piscar de olhos e ele se encosta diante dela, tinha lá seus 7, 8 anos de idade. O pai não senta, nem nada. Meio que estorva a passagem dos passageiros. O foco dele é a garota. Entrega algo para a filha e lhe diz, resoluto:
– Mês que vem você fica um final de semana inteiro com papai.
A menina responde:
– Humrum... humrum...
O modo como ela retorna ao pai puxa o meu olhar. Ela se sente colhida e, intermitentemente, me olha a devolver minha curiosidade.
O pai continua falando, desce o corpo à altura do dela, entrega-lhe um mimo qualquer e repete, enfático, mas parecendo contido em algum sentimento:
– Mês que vem nós iremos passear muito, viu filha.
O motorista gira a chave de ignição. O motor começa a roncar. O carro faz aquele barulho característico. Todos se preparam para a partida. O pai se apressa:
– Mês que vem, viu filha! Eu te amo tudo. Muito!
A menina olha o pai e me olha em seguida. Às vezes demora um pouco mais em mim.
– Que será que ela pensa a meu respeito? – Não é hora de responder. Talvez eu fizesse o mesmo que ele está fazendo...
O pai desce as escadas do ônibus. De fora ainda manda beijos:
– Te amo!!! Te amo!!! Te amo!!!
Os olhos da menina pareciam uma lampadazinha de Natal. Aquilo me fez remexer na poltrona...
Do lado da menina estava uma jovem mulher, tímida e contida desde o início, como se sentisse não legitimada naquele lugar, encolhida como que com frio:
– Você conheceu a namorada do seu pai?
– Humrum...
– Ela é bonita?
– Humrum...
Sou forçado a ouvir porque, mesmo que eu não quisesse, escutaria aquilo tudo.
– Essa menina só sabe dizer “humrum”? – indago-me mentalmente.
– Não! – Respondo e acerto: e ela repete, como se a mãe não tivesse ouvido nada, nem estivesse ali:
– Meu pai disse que mês que vem eu fico todo o final de semana com ele. Vamos passear muito.
O olho da menina. Aquele olhar. Pureza brilhando? Olho de faminto ante o prato preferido? Aquela estrela que se destaca no céu quando o breu absoluto é tudo o que a noite pode nos oferecer? O olhar esporadicamente me fitando, indo e vindo, intermitente... Que olhar!
Fecho o jornal. Deixo de encontrar o olhar curioso da infante em minha direção. Coloco a mão na cabeça, mas me aqueço dentro do peito, ainda que na posição de estátua sentada numa poltrona:
– Ah se todo dia me fosse dado encontrar o brilho a ouro como o do olhar dessa menina! Puro, puríssimo, apenas misturando a força do orgulho e a certeza da esperança...
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*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009.