Queixa principal
(Homossexualidade e Bissexualidade)
 
Geralmente numa consulta de rotina, uma vez que atendo muitas pessoas ao dia, procuro ser muito objetiva na anamnese, ou seja, nas perguntas feitas ao paciente, a fim de sabermos a história patológica pregressa de cada um, seus hábitos, conhecermos a queixa principal e como foi a evolução da mesma, não necessariamente nesta ordem - tudo vai depender do que nos falam ao entrar.
 
Muitas vezes já entram jogando em minha mesa um bolo de exames, querendo que eu veja especificamente algo que desejam, esquecendo que eu preciso seguir uma rotina para meu próprio raciocínio. É comum eu pedir para que deem uma pausa, para que eu possa direcionar a coisa, tal como quando eu pergunto (como um jargão): “O que te trouxe a mim?”.
 
Certa vez recebi uma senhora de meia-idade, que voltava muitos anos após sua última consulta. Eu não lembrava mais dela. Seu prontuário era tão antigo que estava guardado num arquivo morto. Ela adivinhava isso e fez exatamente este comentário: “Você não vai lembrar mais de mim”.
 
A consulta seguiu normalmente, pois era apenas um atendimento rotineiro, até que ela entrou num setor que deixo por último ou até omito em meu questionário básico, que é a sexualidade. Sei que faz parte da ginecologia perguntar sobre isto, mas se eu o fizer logo no começo, em metade dos casos a consulta se prolongará por muito mais tempo que o desejado e certamente vou me desviar da queixa principal ou da finalidade do atendimento, a não ser que a queixa principal seja esta.
 
Ao prescrever a esta paciente uma medicação para ser usada pelo marido também - "estado civil: casada" - ela me informou que era homossexual. Eu não emiti qualquer reação de espanto, até porque isso não surpreende, mas observei que ela se sentia constrangida e muito empenhada em me explicar sobre sua vida sexual.
 
“Quando eu vinha aqui não era homossexual...”, ela esclarecia. Neste momento eu parei de escrever e vi que ela precisava que eu prestasse mais atenção ao que falava, que conversasse com ela. Alertei, séria, mas educada: “Eu estou aqui para cuidar de seu corpo e, até de certa forma, de sua mente. Não faz diferença sua opção sexual”.
 
Mas ela não precisava falar de sexo. Ela apenas queria se justificar para mim o que mudou em sua vida. O que realmente me surpreendeu foi sua alegação: “Foi você quem mudou a minha vida. Foi depois de uma conversa que eu tive contigo!”.
 
Eu nem lembrava dela, muito menos do que eu possa ter dito a ela anos atrás. Até fiquei preocupada em ter dado algum palpite errado, ter falado algo que não devia, mas, como me conheço muito bem, jamais o faria profissionalmente. Se ela utilizou alguma conversa nossa para tomar decisões, certamente essas atitudes já faziam parte de sua vontade.
 
Ela continuou, ainda, a se explicar “Mas eu não sou promíscua, não, viu? Tenho parceira fixa e também sou muito feminina no meu comportamento...”. Eu larguei o prontuário de lado e disse: “Quem quer ser promíscuo, o é, até sendo hetero...”.
 
Ela conseguiu realmente desviar minha consulta. Talvez sua “queixa principal” fosse exatamente não poder conversar sobre sua vida íntima. Eu perguntei se ela era bissexual, no que respondeu prontamente: “Não! Meu marido e meus filhos sabem de tudo e nós nos respeitamos muito!”.
 
Vi naquela resposta uma vida inteira de muita coragem ao assumir uma postura que ainda é extremamente preconceituosa e que mexe com a vida de qualquer pessoa, por mais convicta que seja de seus desejos e aspirações, pois é muito difícil, neste caso, ser respeitada socialmente, participar sem conflitos de uma sociedade tão mista e tão cheia de discriminações.
 
Ela novamente adivinhou meus pensamentos e disse: “Seria mais cômodo ser bi, não é?”. Discordei daquilo, pois muitas vezes observo que ser bissexual é justamente opção. É uma constatação, apenas. Ela, então, me olhou fixamente e, como que se quisesse me “ensinar” algo, afirmou: “O problema sabe qual é? É a hipocrisia! A maioria dos bi quer ser homo. Vivem uma vida dupla e até escondem de todos e de si seus verdadeiros desejos, mas quando seus segredos são revelados, podem detonar a vida do(a) parceiro(a) hetero".
 
Eu posso ter contribuído com meus conselhos em algum momento passado da vida daquela mulher (que eu não soube qual foi até hoje), mas naquele dia quem “assumia" as rédeas de alguém "entendido” no assunto era ela.
 
Leila Marinho Lage

Leila Marinho Lage
Enviado por Leila Marinho Lage em 03/03/2010
Reeditado em 06/03/2010
Código do texto: T2117450
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