Os OlhOs de tOdOs Os eStranhOs

Tim não era um arlequim chinfrim. Era um colecionador de sorrisos sem doblez. O gáudio era o seu estandarte. A comédia, sua seiva. Tal qual um colendo concertista enlevado pela plenitude da sua obra, arrebatava-se intimamente ao fazer brotar risos inofensivos nos rostos de todos os mirins com os quais cruzava nas esquinas da vida. Sob garoa ou calidez, mantinha a sua comunicabilidade vivificante, tão diferente dos sáfaros modelos das vitrines de butiques caras da cidade grande. Ele era assim, epidémico. Aos olhos das crianças, um herói que as protegia do tédio. Aos olhos dos adultos, um simples homem travestido de pavão tentando se livrar de alguma tensão. E à noite, quando as meretrizes começavam a entrar em ação disputando o asfalto das avenidas mais quentes, ele retornava para o lar, talvez um pouco exausto e umbroso. Aos olhos delas, ele era apenas um bibelô melindroso que valia algum trocado. Pobres rameiras. Não conheciam o abecê da hombridade.

A velha calça larga, listrada e multicor era o seu quimono. E, como todo saltimbanco que se preze, usava, sim, o tão popular nariz artificial grande e arredondado. Aliás, esta era uma pergunta que se fazia todos os dias quando, em frente ao espelho, incorporava Tim: por que todo nariz postiço para palhaços é vermelho? Resolveu estudar a psicodinâmica das cores. E descobriu porque o céu era azul e a natureza, verde. Escreveu uma tese sobre o significado das cores da bandeira nacional. Passou a tingir os cabelos e a coleção de perucas. Substituiu os óculos por lentes de contato. Jogou fora todas as fotos antigas em branco e preto que guardava numa caixa empoeirada na última gaveta do armário. Comprou uma TV a cores. Pintou sete narizes com as sete cores do arco-íris. Um para cada dia da semana. E, finalmente, pintou o sete, literalmente.

Não atuava em palcos montados debaixo de lonas gigantes e pomposas. O seu circo eram as praças, as feiras livres, os botequins, as sinaleiras. Era um andarilho destemido de lonjura. Não gostava de mapas. Apenas lançava o olhar em direção ao horizonte e seguia, pugnaz. Distribuindo abraços, caretas e peripécias. Sem se preocupar em cometer gafes. Sempre radiante, raiando na quintessência da simpatia de quem vive a pronunciar repetidamente a letra xis. Por trás de todo o disfarce, encontramos um homem com a sabedoria crônica de viver intensamente. E pouco importava se passava pelo crivo de boateiros e homens de calundu. Tim era um radar de felicidade em que toda a ojeriza e acinte a ele direcionados eram convertidos em anedotas capazes de deixar desconcertado até motorista de rabecão.

Para o seu espetáculo, não era necessário quorum ou camarim. Nem guarda-costas com a mesma empáfia de quem veste ternos de luxo. Para vê-lo, não era preciso ter bilhete de entrada, convite vip ou licença judicial. Nem era obrigatório possuir sobrenome importante. E, mesmo assim, a burguesia aplaudia de pé. Não havia descansadores de traseiros em seus shows.

Em casa, após entreter crianças, enfrentar homens enrufados, receber aplausos de figurões e cruzar com prostitutas siliconadas, ele podia, enfim, voltar a ser si mesmo. Enquanto, diante do espelho, se despia de toda a indumentária multicor, trazia à memória cenas do quotidiano, de pessoas das quais arrancara um sorriso ou uma palavra de admiração e as quais, certamente, não voltaria a ver nunca mais. Era quando, invariavelmente, uma nostalgia lhe invadia o peito. Nestas horas, Tim não era mais nenhum arlequim. Absolutamente só, ele sabia, de verdade, a dimensão do vazio provocado pela fugacidade dos olhos de todos os estranhos.

Angello
Enviado por Angello em 16/09/2006
Reeditado em 02/11/2007
Código do texto: T241751