VIAGEM AOS ANOS 70

“Almost Famous” é uma máquina
do tempo em forma de filme
 

     Gosto de filmes despretensiosos. Gosto de filmes que contam uma época em que vivi, por outro ponto de vista. Gosto de música. Por tudo isso, gosto e recomendo o filme “Quase Famosos” (Almost Famous), de 2000. Dirigido e escrito por Cameron Crowe (de “Jerry Maguire” e “Vanilla Sky”, ambos com Tom Cruise), o filme é uma alegoria autobiográfica, uma homenagem aos anos 70, mais ainda ao rock dos 70. 
     Já no início, quando o protagonista, William Miller, ainda um garoto, é apresentado ao rock no final dos anos 60, acontece um momento mágico. O garoto herda a coleção “clandestina” da irmã mais velha – e lá estão o Who, Hendrix, o Yes, o Led Zeppelin, e tantos outros. Fiz essa mesma viagem, 10 anos mais tarde, quando ouvi “Black Dog” do Zeppelin pela primeira vez ... Aquilo mudou minha vida, e não dá para não sentir saudades do garoto que fui assistindo ao filme. 
     Só que os anos 70 – os dias em que vivi minha infância – foram um pedaço especial do tempo, uma era de estranha criatividade e de mudanças regadas a sangue mundo à fora. Não foram anos fáceis. A chamada revolução sexual que teve início nos anos 60, chegou ao auge na década seguinte. A ecologia teve seu primeiro grande momento com a conferência de Estocolmo, em 1972. O terrorismo deu as cartas, várias vezes, a começar com o atentado nas Olimpíadas de Munique. 
     Não tenho medo de dizer que muito do caos que vivemos hoje se originou nos 70. As ditaduras de direita em toda a América Latina, originando futuras democracias falidas e desmoralizadas. Os últimos anos da guerra do Vietnã gerando outras “cruzadas” americanas contra fantasmas do próprio passado. O milagre econômico gerando o aquecimento global, o esgotamento dos recursos naturais, a fome no terceiro mundo, o fim do comunismo para o início de sabe-se lá o que. 
     No Brasil, os 70 foram uma âncora, impedindo que o país navegue para longe de suas dores. A ditadura, a guerrilha, a tortura, a morte – um amálgama de rancores que não termina nunca. O tráfico e as organizações criminosas de hoje superaram muito os “Lúcios Flávios” da época, mas nasceram naqueles dias, como sindicatos do crime. A MPB de hoje ainda é referenciada pelos Chicos e Caetanos daqueles dias. Gil virou ministro. Wagner Tiso perdeu a ética. O futebol perdeu a magia. O parceiro de Raul Seixas virou o escritor brasileiro mais lido no mundo. Os 70 foram, como diziam os artistas da época, um desbunde. 
     “Almost Famous” não fala sobre isso, nem sabe que o Brasil existe, não nota o Vietnã, passa pelas drogas como se fosse vento, e sobre a revolução sexual só mostra a vida das “marias-guitarra”, as fãs que acompanhavam (em vários sentidos) as bandas de rock pelas turnês. Neste ponto de vista, é um filme que nada acrescenta. Na verdade, Cameron Crowe fez outra viagem aos 70, pegou outra máquina do tempo. 
     Ele viajou aos “seus” anos 70, à visão particular de um adolescente que gostava de rock, queria ser jornalista e que, por um lance do destino, embarca numa viagem pelos EUA como repórter da Rolling Stone, seguindo uma banda que tenta o estrelato, ou seja, é “quase famosa”: a Stillwater. Tudo regado a muita música – a trilha inclui Elton John, Yes, The Who, Led Zeppelin, Cat Stevens, Lynyrd Skynyrd e outros. Fala mais sobre o amadurecimento do jovem William Miller, entre paixões e amizades, do que sobre o mundo estranho que girava em volta. 
     O elenco revelou a bela Kate Hudson, trouxe Anna Paquin (a Vampira dos “X-Men”), o premiado Philip Seymour Hoffman (de “Capote”) e um garoto de talento, Patrick Fugit, na pele do protagonista. De tão despretensioso, “Almost Famous” levou o Oscar de melhor roteiro, recebeu duas indicações ao Golden Globe, incluindo melhor filme ... e virou um dos meus filmes de cabeceira – o que já é coisa à beça. 
     Olho para aquele garoto, cheio de sonhos, abraçando o jornalismo, cruzando um país ao lado de uma banda de rock, e me vejo nele. Pelo menos, vejo muito dos meus sonhos esquecidos. Se você um dia sonhou em ser roadie da sua banda favorita, talvez entenda o que eu quero dizer. 

(Direitos reservados ao autor. Versão revista e ampliada de texto publicado no jornal O ALERTA e no blog do autor)