DIAGNÓSTICO ATRAVÉS DO OLHO MÁGICO
(DE UM OBSERVADOR INDISCRETO)
Os colegas enfatizam a observação através da atitude do paciente: o olhar, reações físicas, o seu comportamento, o facies (expressão), a maneira de se posicionar - tudo indicando características de alguma doença orgânica ou mental.
Alguém já os observou pelo olho mágico de uma porta? Aquele primeiro momento perante a porta do consultório, só que do outro lado. É a antecipação do primeiro contato, uma averiguação prévia da pessoa com quem vamos travar conhecimentos. Aquele momento de curiosidade quase infantil pode captar emoções equivocadamente protegidas por uma barreira – a porta com um olho mágico. Com o constante hábito de olhar por um buraquinho, a gente passa a fazer uma seleção dos caracteres em comum.
Toca a campainha. A secretária foi ao banco. A gente olha pelo vídeo, mas, mesmo assim, como um reliquat do nosso passado, quando não havia essas coisas modernas, lá vamos com a mão na maçaneta e a célebre olhada através da porta.
Se for homem, pode ser um propagandista, o funcionário do laboratório, um vendedor, um marido preocupado, um ladrão.
É mulher... Não a reconheço e fico sem graça de falar pelo interfone. Ela olha pra os lados do corredor, distraída. Não se deu conta do olho indiscreto. A moça esfrega nervosa suas mãos e tenta secar gotículas de suor acima dos lábios.
A porta se abre e os olhos ansiosos pedem
socorro. Depois das formalidades, a conversa faz perder aquela impressão do começo. O que ela trouxe? O que ela deixou lá? Seus olhos síram, entretanto, mais serenos.
Novamente calmaria. "Eu vou enforcar a secretária se ela não chegar logo!", penso eu. "Será que minha atendente também vê olhomagicamente? Tenho que trocar o som da campainha - é irritante. Ninguém toca o interfone. Por quê? Não posso reclamar. Elas, como eu, não se acostumam com o porteiro eletrônico".
Consigo agora ver outra cliente - sorriso elétrico, dentes brancos e pele morena. Passar alegria por um orifício é proeza de poucos.
Deixo a dona do sorriso entrar, cheia de intimidades, e descubro a razão da euforia: "Estou grávida!".
Várias frases podiam ter sido ditas: “Estou melhor”; “Vou casar”; "Passei só pra dar um abraço”; "Não estou grávida”. Mas qualquer coisa dita com aquele ar de descontração, quase teatral, só podia ser muito bem-vinda e nos melhorar o dia.
E lágrima no visor? Brilha a própria tristeza - porque tristeza tem brilho, tem aura. Mesmo que a lágrima tenha secado, ao entrar na sala, fica o brilho daquele sentimento traído pelo meu espião óptico. Das utilidades de uma porta, nunca pensei que a mesma pudesse ser para mim, naquele dia, uma psicóloga.
Lá vem o som estridente de novo - esta hora, eu já estou olhando o relógio e pegando a carta de demissão da secretária.
Olho no olho. Um outro olho se encontra com o meu. Olho vivo. Viva o olho. Os olhos se apresentam. Olhar o olhar é mais do que enxergar. Quem será que se esconde atrás dos próprios olhos? A cabeça daquele olho não percebe que ela está se deixando ver?
O pior é o dedo no olho, que tapa minha visão. Aí, eu alucino. Descobriram minha estratégia!
Vários sentimentos se deixam à frente de minha porta. Podemos entender tudo se pensarmos rápido. A condição sine qua non para não fazer a pessoa se sentir vigiada, é dar aquela sacada em segundos. Nós, médicos, desenvolvemos particulares táticas e métodos para abordar um problema. Tentamos desenvolver diálogos, lapidamos nossas próprias reações. Esquecemos da principal arma – a observação.
A minha teoria do olho mágico, certamente, não seria válida num congresso de medicina, nem aplicável às práticas modernas. Nem eu mesma teria inspiração para tanto em outros dias, mas foram divertidas aquelas horas. Como num jogo de adivinhações. Graças à futura ex-secretária.
Para quem nunca tem disposição de olhar fundo, fica a lembrança de que olho é mágica - todos têm. É a mágica do olhar e de olhar. Nem sempre o olho clínico é a coisa mais importante. O olhar antecede a palavra e todos nós precisamos de um olho de mago. Mesmo os cegos olham, com a alma no olhar. Não precisam ver para se expressarem com ele.
Que todos pudessem ter, pelo menos num dia, um olho mágico e ver, além da aparência, o que cada um tem da mágica de viver.
Leila Marinho Lage
Rio, 08 de maio de 2007
http://www.clubedadonameno.com
(DE UM OBSERVADOR INDISCRETO)
Os colegas enfatizam a observação através da atitude do paciente: o olhar, reações físicas, o seu comportamento, o facies (expressão), a maneira de se posicionar - tudo indicando características de alguma doença orgânica ou mental.
Alguém já os observou pelo olho mágico de uma porta? Aquele primeiro momento perante a porta do consultório, só que do outro lado. É a antecipação do primeiro contato, uma averiguação prévia da pessoa com quem vamos travar conhecimentos. Aquele momento de curiosidade quase infantil pode captar emoções equivocadamente protegidas por uma barreira – a porta com um olho mágico. Com o constante hábito de olhar por um buraquinho, a gente passa a fazer uma seleção dos caracteres em comum.
Toca a campainha. A secretária foi ao banco. A gente olha pelo vídeo, mas, mesmo assim, como um reliquat do nosso passado, quando não havia essas coisas modernas, lá vamos com a mão na maçaneta e a célebre olhada através da porta.
Se for homem, pode ser um propagandista, o funcionário do laboratório, um vendedor, um marido preocupado, um ladrão.
É mulher... Não a reconheço e fico sem graça de falar pelo interfone. Ela olha pra os lados do corredor, distraída. Não se deu conta do olho indiscreto. A moça esfrega nervosa suas mãos e tenta secar gotículas de suor acima dos lábios.
A porta se abre e os olhos ansiosos pedem
socorro. Depois das formalidades, a conversa faz perder aquela impressão do começo. O que ela trouxe? O que ela deixou lá? Seus olhos síram, entretanto, mais serenos.
Novamente calmaria. "Eu vou enforcar a secretária se ela não chegar logo!", penso eu. "Será que minha atendente também vê olhomagicamente? Tenho que trocar o som da campainha - é irritante. Ninguém toca o interfone. Por quê? Não posso reclamar. Elas, como eu, não se acostumam com o porteiro eletrônico".
Consigo agora ver outra cliente - sorriso elétrico, dentes brancos e pele morena. Passar alegria por um orifício é proeza de poucos.
Deixo a dona do sorriso entrar, cheia de intimidades, e descubro a razão da euforia: "Estou grávida!".
Várias frases podiam ter sido ditas: “Estou melhor”; “Vou casar”; "Passei só pra dar um abraço”; "Não estou grávida”. Mas qualquer coisa dita com aquele ar de descontração, quase teatral, só podia ser muito bem-vinda e nos melhorar o dia.
E lágrima no visor? Brilha a própria tristeza - porque tristeza tem brilho, tem aura. Mesmo que a lágrima tenha secado, ao entrar na sala, fica o brilho daquele sentimento traído pelo meu espião óptico. Das utilidades de uma porta, nunca pensei que a mesma pudesse ser para mim, naquele dia, uma psicóloga.
Lá vem o som estridente de novo - esta hora, eu já estou olhando o relógio e pegando a carta de demissão da secretária.
Olho no olho. Um outro olho se encontra com o meu. Olho vivo. Viva o olho. Os olhos se apresentam. Olhar o olhar é mais do que enxergar. Quem será que se esconde atrás dos próprios olhos? A cabeça daquele olho não percebe que ela está se deixando ver?
O pior é o dedo no olho, que tapa minha visão. Aí, eu alucino. Descobriram minha estratégia!
Vários sentimentos se deixam à frente de minha porta. Podemos entender tudo se pensarmos rápido. A condição sine qua non para não fazer a pessoa se sentir vigiada, é dar aquela sacada em segundos. Nós, médicos, desenvolvemos particulares táticas e métodos para abordar um problema. Tentamos desenvolver diálogos, lapidamos nossas próprias reações. Esquecemos da principal arma – a observação.
A minha teoria do olho mágico, certamente, não seria válida num congresso de medicina, nem aplicável às práticas modernas. Nem eu mesma teria inspiração para tanto em outros dias, mas foram divertidas aquelas horas. Como num jogo de adivinhações. Graças à futura ex-secretária.
Para quem nunca tem disposição de olhar fundo, fica a lembrança de que olho é mágica - todos têm. É a mágica do olhar e de olhar. Nem sempre o olho clínico é a coisa mais importante. O olhar antecede a palavra e todos nós precisamos de um olho de mago. Mesmo os cegos olham, com a alma no olhar. Não precisam ver para se expressarem com ele.
Que todos pudessem ter, pelo menos num dia, um olho mágico e ver, além da aparência, o que cada um tem da mágica de viver.
Leila Marinho Lage
Rio, 08 de maio de 2007
http://www.clubedadonameno.com