Noite de Insônia

Noite de Insônia

Ana Esther

Foi numa noite de insônia...

...sem dormir comecei a dar vazão a pensamentos recorrentes que ocupam minha mente.

Há quem diga que o esquecimento é que salva a nossa sanidade mental. Seria mesmo um fardo emocional por demais pesado se constantemente nos lembrássemos de pessoas, eventos, sentimentos de todo e cada dia que vivemos. Com o passar dos anos acumularíamos um banco de dados insuportável para o cérebro e o coração. Mais para o coração, é claro, símbolo que bombeia nossas emoções.

Contudo, o fato de esquecermos uma grande percentagem de nossas ações e vivências diárias pode vir a encobrir a raiz de muito do que somos, do que nos constitui, da formação da nossa personalidade e mesmo, possivelmente, da continuidade da nossa própria existência. E aí é que entram as minhas conjecturas mirabolantes... discorde quem quiser... concorde quem ousar! É simples, eu explico.

Sempre me fascinou o caráter passageiro de certos relacionamentos com as centenas, de pessoas com quem no nosso dia-a-dia entramos em contato. O grau de transitoriedade dessas relações é tão relativo e variado que chega a ser estonteante. Em um só dia podemos nos expor a um número maior ou menor de contatos com pessoas mais íntimas, amigos, colegas de trabalho, prestadores de serviço. Com a tecnologia da comunicação modernosa em que chegamos, esses contatos nem precisam ser necessariamente presenciais mas via e-mail, todos os tipos de redes sociais, celular e o que vier pela frente! A duração desses relacionamentos pode ser de poucos segundos, alguns minutos, horas ou dias, outros durarão por muitos anos ou pela nossa vida toda. Algo semelhante ocorre com o grau de intimidade dos relacionamentos. Podemos conhecer pessoas que farão parte de nossa vida inteira de uma maneira casual, superficial, distante. Outras pessoas , ao contrário, poderão ter um convívio curto (ou curtíssimo) porém de uma enorme intensidade e intimidade, pessoas cuja influência nos marcará indelevelmente.

Neste ponto é que eu fico a matutar. Volto a nossa fraca memória que simplesmente ‘deleta’ da nossa mente certos eventos e pessoas. Tendemos a nos esquecer daqueles relacionamentos curtos e superficiais. Quem lembrará do cobrador do ônibus que recebeu da nossa mão uma nota de dinheiro e nos deu o troco, digamos, no dia 28 de fevereiro de 1978? Lembrar da moça que nos atendeu na livraria quando compramos um livro, digamos, no dia 15 de abril de 1981? Não dá nem para imaginar o rapaz com quem falamos durante 5 minutos inteiros pelo telefone para registrar uma reclamação dos serviços de telefonia, digamos, em 9 de setembro de 1999. Ou seja, sequer lembramos de onde nos encontrávamos em tal data muito menos do fato em si ou da pessoa... Por isso é bom podermos esquecer esse tipo de acontecimento, lembrar para que?

Mas e aquelas pessoas que mal conhecemos direito e, no entanto, fazem parte de nossas vidas diariamente e por vários anos? Porteiros dos prédios que frequentamos regularmente, motoristas e cobradores da nossa linha de ônibus, secretárias, garçons, atendentes de toda a sorte, colegas dos diferentes setores da empresa... e a lista vai longe. Essas pessoas, geralmente, entram e saem de nossas vidas sem que nos demos conta e, muito provavelmente, esqueceremos da maioria delas.

Há já pessoas que, mesmo por pouco tempo de relacionamento, deixam sua marca e jamais as esqueceremos. Um primeiro namorado, um médico que tratou-nos em um grande sufoco, uma professora ou professor (foi-se o tempo em que nos lembrávamos de todos os nossos professores!), um ex-marido de um casamento relâmpago, um colega que deu-nos uma baita força ou um chefe que rebaixou-nos, um bêbado que atropelou-nos... Ah, vale lembrar também que pessoas deixam lembranças ou marcas positivas ou negativas, sutis ou óbvias, com resultados e efeitos em níveis psicológicos e emocionais e/ou físicos.

Aqui entra em ação a próxima conjectura dos meus devaneios mais criativos. Imagino a utilização da Teoria do Caos (com direito a divagações sobre o Efeito Borboleta e tudo o mais) aplicada às estimativas e especulações sobre as possíveis influências diretas e indiretas em minha vida de todos esses tipos de relacionamentos com todos esses tipos de pessoas.

Segundo a Teoria do Caos, uma mudança ínfima bem lá no início de um determinado evento poderá acarretar consequências gigantescas e inimagináveis no futuro. Concentro-me na minha fixação, o contato com pessoas, e imagino a influência que aquela vendedora da livraria em 1981 teve em minha vida. Alguma ou nenhuma influência? Não sei dizer pois nem me lembro dela... provavelmente nenhuma. Mas e quanto ao ex-marido, nossa, que efeitos devastadores. Onde estaria a pequena mudança que originou os resultados catastróficos que culminaram em separação?

Mas não paro por aí, sigo viajando na maionese e adiciono a este raciocínio as milhares de possibilidades, preconizadas por cientistas, de causas e efeitos, conexões de redes humanas (human webs), teoria das cordas (string theory) e o escambau –tudo quanticamente dimensionado, é claro. Estas outras possibilidades potencializam infinitesimamente a influência que cada pessoa que conhecemos venha a ter em nossa vida.

Piro de vez. Começo a imaginar possíveis desenlaces advindos de encontros fortuitos. Uma moça que me para e pergunta as horas no parque onde eu caminhava me exercitando. Respondo e ela segue seu caminho e eu o meu, nunca mais nos veremos e logo, logo a esqueço e ao próprio fato. Pensamento lógico: ela não teve nenhuma influência em minha vida. Pode até ser pois é uma das possibilidades. Todavia, busco por outra possibilidade e valho-me de imaginação fértil. E se ela ali adiante encontrou seu parceiro de ladroagens e o avisou que o meu relógio valia a pena ser roubado e o cara vem me assaltar... Outra possibilidade ainda (dentre as milhares): um rapaz charmoso pergunta as horas a tal moça, que agora não é bandida, mas ela por não possuir relógio, me indica. Ele então chega-se a mim e entabulamos uma conversa agradável, ou mais que agradável, viramos amigos e com o tempo... bem, neste caso a moça nem nunca soube que nos servira de cupido!

A essas alturas vibro com a infinidade de possibilidades de acontecimentos em consequência dos novos destinos decorrentes a que estamos expostos a cada dia, hora ou minuto (segundos). Aí é que o sono não vem mesmo. Vem-me à mente utilizar-me dessas divagações alucinantes para algo produtivo. Seria fascinante se transformássemos essas ideias difusas num poderoso exercício de criatividade para as horas de insônia!

Ao percebermos a insônia se aproximando recorreríamos então ao Jogo das 1001 Possibilidades, ou outro nome mais apelativo (cuidando para não plagiar algum espertinho que por ventura tivesse ousado ter ideia semelhante antes de mim)... Bem, o jogo constituir-se-ia em buscar em nossa memória alguém que tenha passado por nossa vida em alguma ocasião sem aparente consequência e num segundo passo testaríamos nossa imaginação inventando possibilidade após possibilidade de incríveis estórias que pudessem ter ocorrido... O jogo é gratuito e, o melhor, infinito, pois como vimos, passamos todos os dias por centenas de pessoas e milhares de possibilidades abertas de decorrências! Um jogo com inesgotáveis desenlaces nos deixaria sem tédio, sem pânico em noites de insônia. Além disso, poderíamos usar esse jogo mental em salas de espera, longas filas e quiçá em dinâmicas de grupo ou até mesmo em reuniões e festas com os amigos... Que ideia genial!

Ah, e isso que eu me esqueci da Teoria dos Seis Graus de Separação, uma das minhas favoritas. Segundo ela, quaisquer duas pessoas no mundo estão separadas por até seis laços de amizades, os famosos amigos dos amigos. Mais um item a acrescentar ao jogo para as noites de insônia! Podemos pegar um de nossos amigos como exemplo e tentarmos rastrear algum dos seus amigos, um que não conheçamos. Uma vez escolhido o amigo do amigo, retornamos ao exercício de criatividade para imaginarmos mil formas que este desconhecido possa ter influenciado nossa vida indiretamente. O cara pode até mesmo ter roubado o meu ex-futuro marido! Digamos que o meu amigo me convidasse para uma festa. Na hora em que ele fosse me telefonar o intrometido do amigo dele chegaria e se ofereceria para acompanhá-lo. Resultado, acabei nem sendo convidada para a festa de aniversário da irmã do charmosão que eu viria a conhecer e me apaixonar se tivesse ido à festa.

E as possibilidades se desenrolam aos milhões. A minha vida poderia ser totalmente diferente devido a tais ‘detalhes’. Por isso, preciso estar sempre alerta. Todo e qualquer contato pode mudar o nosso destino para melhor ou para pior... Enquanto isso, contento-me em ter esse joguinho para me distrair em noites de insônia.